A incredulidade seletiva do discurso de “manipulação”, por Eugênio Bucci

Jornal GGN – Em artigo no Observatório da Imprensa, Eugênio Bucci satiriza a incredulidade seletiva presente na direita e na esquerda brasileira, que vê manipulação em qualquer informação que possa prejudicar partidários do mesmo ponto de vista.

Além da histeria em torno da H1N1, com a classe média altíssima acorrendo em massas aflitas aos postos de vacinação VIP, uma nova epidemia varre a cidade: a Síndrome Antimanipulatória Aguda (S.A.A.). Os sintomas são conhecidos. Os que contraem essa infecção do espírito desenvolvem uma ira súbita contra tudo o que afirmam ser um truque de “manipulação”.

Abaixo, a íntegra do artigo:

Do Observatório da Imprensa

Manipulações e contramanipulações

Por Eugênio Bucci 

Além da histeria em torno da H1N1, com a classe média altíssima acorrendo em massas aflitas aos postos de vacinação VIP, uma nova epidemia varre a cidade: a Síndrome Antimanipulatória Aguda (S.A.A.). Os sintomas são conhecidos. Os que contraem essa infecção do espírito desenvolvem uma ira súbita contra tudo o que afirmam ser um truque de “manipulação”. O contágio se dá pelo discurso enunciado alguns decibéis acima. Em ambientes de muita falação inflamada contra os “manipuladores” e suas ardilosas armações para tapear o povaréu crédulo e desprotegido, o mal se espalha com mais facilidade. Também pode ser transmitido pelas redes sociais.

A Síndrome Antimanipulatória Aguda é uma tragédia para a saúde da esfera pública, atacando na raiz os vasos comunicantes pelos quais deveria fluir a razão. Quando a S.A.A. se alastra, o argumento racional silencia. Nos surtos epidêmicos mais graves – ainda não é o caso do Brasil – a esfera pública entra em fase agônica.

Há pacientes de tipos diversos. Os que se declaram “de esquerda” creem que toda denúncia de corrupção envolvendo gente do Partido dos Trabalhadores (PT) é obra da “manipulação da direita”. Os pacientes que se declaram “antipetistas” asseveram que os compositores Chico Buarque e Caetano Veloso, quando repetem o bordão “não vai ter golpe”, estão a serviço da máquina de manipulação da esquerda maligna.

Embora a doença se manifeste tanto em populações “à esquerda” quanto em populações “à direita”, existem diferenças entre um campo e outro, o que não surpreende os cientistas, já que a enfermidade está associada ao córtex ideológico.

Comecemos pelos pacientes “de esquerda”, que também gostam de se classificar como “progressistas”. Um sintoma que os distingue são as menções nervosas ao legado teórico da Escola de Frankfurt. O modelo mental que mobilizam, no entanto, não é frankfurtiano – é superficial, anacrônico, melodramático e não tem nada de dialético. Quando acontece de se explicarem (o que é raro), esses pacientes alegam que a “manipulação” é “de direita” e se reduz a um expediente mal-intencionado por meio do qual os proprietários dos meios de comunicação travestem suas mentiras com a aparência de verdade para tapear o público. Outro traço recorrente na fala sintomática é a convicção inabalável de que os tais proprietários dos meios de comunicação agem de modo “orquestrado”, numa sincronia perfeita em que até mesmo os silêncios do âncora no telejornal cumprem um roteiro preestabelecido para melhor iludir as audiências.

Para os pacientes de S.A.A. que se declaram “de esquerda”, os principais canais de TV, bem como as revistas e os jornais brasileiros, articulam-se num complô com o propósito de golpear de morte a democracia (cuja instituição maior é o mandato de Dilma Rousseff) e aí acabar com o Bolsa Família (farol do socialismo em construção). São contraditórios e incoerentes, mas não se dão conta disso.

Até ontem repetiam que a imprensa não tem mais poder algum e que os “formadores de opinião empregados na grande mídia” já não formam a opinião de mais ninguém. Agora bradam que a imprensa é a grande culpada pela aprovação da admissibilidade do processo de impeachment na Câmara dos Deputados.

Acreditam que a burguesia tenha colocado um supermanipulador onisciente para editar cada legenda de jornal e teleguiar os movimentos das sobrancelhas de William Bonner. Esperto como a peste, esse supermanipulador controla corações e mentes da massa (e também os votos dos deputados federais). A massa, principalmente ela, cai em todos os contos do vigário que vê na TV. Seguidores de Pelé, que na década de 1970 fez a sua declaração mais notável – “o povo não está preparado para votar” –, os pacientes “de esquerda” da Síndrome Antimanipulatória Aguda não têm a menor dúvida: o povo brasileiro não está preparado para ver televisão.

As coisas já seriam bem complicadas se a epidemia tivesse feito estragos apenas “à esquerda”. Nosso problema é que no outro lado do chamado “espectro ideológico” a devastação não é menor. Aí, os infectados apresentam sintomas análogos, mas distintos. Acham que os apresentadores de televisão que exultam quase saltitantes diante de gráficos que mostrariam que o avanço do impeachment faz a Bolsa subir e o dólar cair estão sendo apenas objetivos, apartidários, imparciais e fiéis aos fatos.

Os pacientes de S.A.A. no campo dos autodeclarados “antipetistas” não veem desequilíbrio nenhum na desproporção entre artigos de opinião que defendem o impeachment e os que rejeitam o impeachment. Acreditam que toda defesa do mandato de Dilma Rousseff é uma defesa velada – e “manipulatória” – do “maior escândalo de corrupção da história da humanidade”. Logo, só haveria sensatez na defesa do impeachment já. Acreditam que não há nada de esquisito nas romarias de engravatados em carros pretos acima do limite de velocidade na direção do Palácio do Jaburu, onde o vice-presidente, ainda vice, já nomeia e desnomeia seus ministros (vice-ministros) pelas páginas dos jornais, num sinistro shaddow cabinet com as pernas de fora, um shaddow cabinet que só não é “reality show” porque parou no tempo do teatro cancã.

Diante de qualquer crítica que questione a postura dos que já estão formando o governo paralelo, saem aos gritos contra a “manipulação de esquerda”. Imagine! Onde é que já se viu? A ferveção política no Jaburu está absolutamente adequada à normalidade institucional e ao Estado de Direito. O vice está apenas cumprindo o seu dever constitucional de montar o vice-governo.

Se alguém pergunta por que é que a Operação Lava Jato já não tem tanto destaque como antes, o paciente “antipetista” de S.A.A. logo aponta a “manipulação de esquerda”. Para ele, distorção só existe na TV Brasil. O quê? Você não viu a TV Brasil ontem à noite?

***

Eugênio Bucci é jornalista e professor da ECA-USP

Redação

20 Comentários

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  1. Considero que é desonesto

    Considero que é desonesto ridicularizar uma situação real que é a manipulação desmedida na mídia brasileira. A sua mídia inteira é manipulada, a única dúvida é “how much”. E não é só na area política, eu conheço mais de um que gosta de pagar matérias denegrindo ou elogiando um produto/empresa/pessoa (como se fosse um fato e não uma propaganda) para ter sucesso em um negócio.

  2. Que maravilha,

    entre mais de 200 milhões de habitantes, a Federação de Corporações, conta com apenas uma pessoa racional, bem pensante, todos nós, à esquerda e à direita, só falamos merda. Não devemos estranhar as sobrancelhas de William e Renata. Nunca imaginar que o acordo secular de elites é de caráter claramente manipulatório. Se não, como sobreviveria? Concentração de renda, má distribuição, aparelhos socias insuficientes, quem disse? “Carinha” largou a Radiobrás, no 1º mandato de Lula (creio – preguiça de procurar). Seu feito, mudar o ritmo do “Guarani”, mas é jornalista de jornalões, pois a sua presença na ECA/USP faz com que ele seja sempre o primeiro a opinar. Ninguém sabe nada. Como a filósofa Marilena Chauí e todos os que assinaram o manifesto contra o golpe não perguntaram a Eugênio Bucci como não entrar na lenga manipulatória?Como escreveram e falaram tanta besteira. Querem saber? Mais um para a minha AK-47.

  3. A manipulação

    Eu concordo com o professor e jornalista Eugênio em parte. Ao meu ver a manipulação que existe na grande mídia é focar apenas em um lado da moeda, sem mostrar que do outro lado existe o mesmo tipo de podridão ainda mais aprofundado, até por estar a muito mais tempo chafurdando no lixo. O erro da esquerda foi utilizar o mesmo método existente para se manter no poder e achar que é inocente porque o outro também é culpado.

    O que não podemos deixar é a emoção do momento tirar a razão e confundir nossa mente. Como fazem os favoráveis ao impedimento da presidente, “impedimento está garantido na legislação e não é golpe”. Porém se a presidente for impedida sem que aja a mesma ação a quem faz as mesmas coisas nos governos estaduais e prefeitos, daí então é GOLPE. Inclusive deverá servir de base para o julgamento das ações semelhantes que correm contra os governantes anteriores.

  4. O autor foi inoculado pelo

    O autor foi inoculado pelo virus do “centrismo”, da falsa neutralidade, da utópica terceira via.

    Mas parece que nem tem idéia disso …

    1. Sem partido, ok. Mas sem… ideologia?

      Justo. Todos os coxinhas de Junho de 2013 diziam-se apartidários, a ponto de agredirem quem expressasse preferência partidária através de palavras, bandeiras… o que fosse. É óbvio que esses coxinhas não carregavam bandeira partidária não por neutralidade e sim por disfarce, auto-censura, auto-repressão. Se não porque é que tentavam coibir a liberdade de expressão dos outros?

  5. “eu, gênio”.

    Esse é o típico caso do auto-engano. Ele acredita no seu nome e age como. Só que o lê na forma “eu, gênio”. Grande amigo da Haddad. 

  6. Ai que gênio!!!!
    Vou

    Ai que gênio!!!!

    Vou consulta-lo sempre antes de abrir a boca.  Será que ele dá aconselhamento para que eu vote certo  nas próximas eleições? Deve ser caro vindo de alguém tão genial. Como disse  Somebody ”é desonesto ridicularizar uma situação real ”.

    Nassif: não faz a gente perder tempo não, críticas sérias são muitissimo bem vindas mas baboseira é chato porque a gente só fica sabendo quando lê e aí já jogou tempo fora.

  7. 3o. turno

    É bem esse o discurso da mídia oligopolizada: somos neutros e criticamos tanto os setores socialistas quanto os privatistas. Mais os primeiros, claro. É como se estivéssemos vendo duas correntes participando de eleições, como se estivéssemos numa espécie de 3o. turno, em que ambas as correntes têm igualmente legitimidade para ascender ao poder institucional, e aqui está o erro: na verdade uma das correntes já ascendeu ao poder por via da democracia, e a outra está tentando derrubar a primeira ilegalmente. Fora das falácias e disfarces de Bucci não há neutralidade: ou você é legalista ou é golpista. Não há legalidade, repito, na corrente de Aécio Neves da Cunha, Eduardo Cunha e Eugênio Bucci.

  8. Sou uma vítima da tal

    Sou uma vítima da tal sindrome, daquelas que tem o hemisferio esquerdo afetado, e não tou procurando cura não. Não quero deixar de perceber quando jornalistas veteranos jutificam o impeachment pela má governança da Dilma, como se este punição extrema  estivesse prevista para corrigir impopularidade. Não acho que a mídia necessariamente se orquestre, ela vai em direção a seus interesses corporativos ou de classe como sempre foi, com uma certeza, intuição e  timing treinados que não excluem orquestrações. Devemos ignorar a parceria entre  midia e judiciario, só para aparecer equilibrados? a direita não encara isto numa birra infantil, ela se movimenta  habilmente contra qualquer forma social mais justa que ameaze seu lugar na distribuição do poder a cultura e a riqueza. Neste momento as ameaças (fracas eu sei) são a Dilma, Lula o  PT e suas, ainda, potencialidades. Vai que a presidenta  acerta na revisão de rumo, vem Lula em 2018, e ai se consolida um espaçõ de centro esquerda definitivo. A esquerda deveria fazer o mesmo em sentido contrário, mas estamos desorganizados, muitas vezes somos sectarios, mas principalmente não temos os recursos do poder. Não venha o autor a tentar nos colocar em um pé de igualdade…

     

    1. Deve ser pelo mesmo motivo a sua companhia a Eugênio Bucci

       

      Caetano (sexta-feira, 06/05/2016 às 21:18),

      Você deve se sentir o máximo pertencendo a esses 10 por cento. Ainda mais que você se sabe na companhia de Luis Nassif e Eugenio Bucci. O problema é que Luis Nassif e talvez Eugênio Bucci desempenham esse papel de neutralidade e ausência de ideologia por motivos comerciais. A aparente neutralidade traz audiência dos dois lados. E no mundo do jornalismo se essa neutralidade não for construída, ela redunda em um buraco negro que só atrai gente de uma mesma espécie.

      Tenho acompanhado os melhores sites na internet e quanto melhor ou quanto mais assertivo e afirmativo de uma ideologia for o site mais reduzido é o número de audiência dele. E mesmo quando a audiência é grande são os mesmos comentaristas que tomam conta do espaço.

      Agora a neutralidade natural, a falta de ideologia só existe na cabeça vazia, na cabeça oca. O ser humano é parcial e tem ideologia. Ela pode ter escolhido a ideologia errada, mas não há como, a menos que seja o cabeça oca, ficar desprovido de uma ideologia.

      Clever Mendes de Oliveira

      BH, 07/05/2016

  9. Como descrever esse texto..

    Peguei uma xícara e um pires. Preparei o café. Coloquei o pires sobre a xícara e me servi. Raso. E o café esfriou tão logo.

    ECA, logo, cUSPe.

  10. O maior truque do diabo é

    O maior truque do diabo é convencer a todos de que ele não existe. Basta se falar em jornalismo desonesto, partidarizado, para alguém bradar o coro irônioco e pejorativo da “teoria da conspiração”. Não é necessária qualquer conspiração. O ideário do poder está bem cristalizado na sociedade humana há milênios. Os memes da informação replicam, tal como o DNA, os genes dessa ideologia. Basta seguir suas diretrizes, sem necessidade de orquestração. O curioso é um intelectual se negar a perceber a manipulação da informação, fato que permeia toda a história, a começar pelo pecado bíblico de “acesso à árvore do conhecimento”. Enfim, talvez eu seja o tolo nessa história.

  11. Eugenio Bucci esta para a

    Eugenio Bucci esta para a comunicaçáo assim como Marco Antonio Villa esta para a historia. Não leio e procuro não houvir o que esses caras dizem. Seletividade por Eugenio Bucci? É brincadeira não é?

  12. “A mídia corporativa

    “A mídia corporativa brasileira age como os verdadeiros organizadores dos protestos e como relações-públicas dos partidos de oposição”, Glenn Greenwald.

    Deve tambem está sofrendo da tal doença…. que se alastra pelo exterior (provavelmente transmitida por esquedistas brasileiros …)

    1. Na mosca!

      Aliás, segundo essa “teoria” do nobre jornalista e professor Bucci,  pode-se dizer que não só Glenn Greenwald, mas também muitos dos maiores veículos de comunicação do mundo, incluindo alguns dos mais conservadores, foram infectados por essa praga…

  13. Desproporcional

    O autor tem alguma razão, mas esqueceu de dizer o quanto nós “de esquerda” estamos mais sujeitos à radiação manipulatória que provoca o que ele chama de S.A.A., do que os ” de direita”. O número e a abrangência de veículos no primeiro caso são infinitamente maiores. Entretanto, se o Bucci me provar que dizer que a ” a Cristiana Loboé petralha” – como li várias vezes – demonstra o meu grau de sanidade de alguém dizer que Reinaldo Azevedo é antipetista obcecado…eu me rendo aos argumentos dele.

  14. Para o nível ruim deste texto, o título está de bom tamanho

     

    Luis Nassif,

    O blog é seu e o título do post você escolhe como lhe convém, mas para mim não resta dúvida que o título correto deste post “A incredulidade seletiva do discurso de “manipulação”, por Eugênio Bucci” de sexta-feira, 06/05/2016 às 16:31, com este texto de Eugênio Bucci deveria ser “A incredulidade seletiva do discurso de Eugênio Bucci”.

    Agora entendo a sua preferência por ser condescendente com os textos de Eugênio Bucci.

    Clever Mendes de Oliveira

    BH, 07/05/2016

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