Michel Aires
Graduação em filosofia pela UNESP. Mestre em filosofia pela UFSCAR. Doutor em educação pela USP. Tem experiência nas áreas de Filosofia e Educação, com ênfase na Teoria Crítica, em particular, nos pensamentos de Herbert Marcuse e Theodor Adorno. Possui artigos publicados nas áreas de educação, filosofia e ciências sociais.
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A racionalidade técnica e a produção do homem eficiente, por Michel Aires de Souza Dias

Em um mundo dominado pelas mercadorias, onde as relações humanas são relações entre coisas, o indivíduo deve abandonar suas pretensões de liberdade e autonomia

A racionalidade técnica e a produção do homem eficiente

Por Michel Aires de Souza Dias

Todos os dias as propagandas, de tênis a  bancos, procuram nos convencer que devemos nos superar, ser resistentes, audaciosos e capazes de lutar por nossos sonhos. Elas nos incentivam a ter foco e disciplina, a buscar com todas as forças o que desejamos, como um desafio e uma obrigação. Somente assim alcançamos um lugar ao sol. Hoje, as propagandas se tornaram meios privilegiados de administração do espírito. Para o sociólogo polonês Zigmunt Bauman, a sociedade do consumo concentra seu treinamento assim como as pressões coercitivas exercidas sobre seus membros  desde a infância e ao longo de suas vidas, na administração do espírito. Ela deixa a administração dos corpos ao trabalho individual, supervisionado e coordenados por indivíduos espiritualmente treinados e coagidos. O objetivo é que cada um aperfeiçoe o eu para que ele se torne cada vez melhor como uma mercadoria vendável. É a ideologia do esforço e do mérito que deve coordenar o comportamento e as ações dos indivíduos.

Na sociedade do consumo o próprio indivíduo deve se tornar uma mercadoria de consumo: “Os membros da sociedade de consumidores são eles próprios mercadorias de consumo, e é a qualidade de ser uma mercadoria de consumo que os tornam membros autênticos dessa sociedade” (BAUMAN, 2008, p.76). Para se tornarem parte da sociedade é necessário que os indivíduos atendam às condições de elegibilidade  definidas pelos padrões do mercado. Cada um deve se tornar disponível no mercado e que busquem, em competição com outros, seu “valor de mercado”. Os que não são elegíveis são “consumidores falhos”,  por vezes subcategorizados como subclasse, não sendo reconhecido por classe nenhuma, quase sempre dispersos de modo anônimo nas estatísticas sobre os pobres ou abaixo da linha de pobreza (BAUMAM, 2008).

Em um mundo dominado pelas mercadorias, onde as relações humanas são relações entre coisas, o indivíduo deve abandonar suas pretensões de liberdade e autonomia: “Desde o dia do seu nascimento, o indivíduo é levado a sentir que só existe um meio de progredir nesse mundo: desistir de sua esperança de autorrealização suprema” (HORKHEIMER, 2002, p.145). O sucesso de cada um depende de sua capacidade de adaptação e da resistência às pressões que  a realidade exerce sobre ele. O pensamento é reduzido ao mundo concreto das coisas, levando o indivíduo a racionalizar sua ação para satisfazer as grandes exigências da realidade.

O filósofo frankfurtiano Herbert Marcuse, em seu artigo Algumas implicações da tecnologia moderna, procurou mostrar que a racionalidade tecnológica se tornou um instrumento para se obter um maior controle sobre os indivíduos. Da linha de produção  aos programas na  televisão, esse aparato técnico estabeleceu padrões, modos de pensar e formas de comportamento que predispõe os indivíduos a assimilarem e introjetarem seus mandamentos. Desse modo, o indivíduo somente pode se tornar um membro ativo na sociedade ao se submeter aos padrões externos de adaptação, desempenho e eficiência. Para Marcuse (1999), a eficiência se caracteriza pelo fato de que o desempenho individual é motivado, guiado e medido por padrões externos ao indivíduo, padrões que dizem respeito a tarefas e funções predeterminadas: “O indivíduo eficiente é aquele cujo desempenho consiste numa ação somente enquanto seja a reação adequada às demandas objetivas do aparato, e a liberdade do indivíduo está confinada à seleção dos meios mais adequados para alcançar uma meta que ele não determinou. Enquanto o avanço individual independe de reconhecimento e se consuma no próprio trabalho a eficiência é um desempenho recompensado e consumado apenas em seu valor para o aparato” (MARCUSE, 1999, p.78).

O filósofos Theodor Adorno e Max Horkheimer (1985) procuraram mostrar em sua obra,  Dialética do Esclarecimento,  que a sociedade se tornou no capitalismo tardio cada vez mais administrada. Ela tornou-se administrada porque a dominação social é calcada na racionalidade técnica e administrativa, transformando os indivíduos em objetos de controle, planejamento e organização. Desse modo, a partir do aparato técnico, os indivíduos são talhados para fazer coisas, para manipular objetos, cultuando a eficiência, a organização e o controle. Eles são educados para serem sujeitos ativos, produtivos e eficientes.

A grande consequência da racionalidade técnica e da lógica mercantil no plano da subjetividade é o desenvolvimento de personalidades reificadas. Os indivíduos se tornam frios, calculistas e adquirem uma mente manipuladora. Se tornam indivíduos sem escrúpulos e racionalizam sua ação para obter vantagens sobre os outros. Eles usam as pessoas como objetos. São incapazes de desenvolver experiências humanas afetivas. Esse tipo de personalidade pode ser encontrados entre os grandes empresários que, sem escrúpulos, usam de todos os meios para obter poder e dinheiro.  Pode ser encontrado também em ladrões e criminosos, que apresentam traços de incomunicabilidade e psicopatia.

Ao analisar o diário de Höss, as anotações de Himmler e Eichmann, membros da alta cúpula Nazista, Adorno percebeu traços de personalidade reificada. Esses líderes se distinguem pela fúria organizativa, pela incapacidade de levar experiências humanas diretas, por apresentarem um déficit de emoções e por um realismo exagerado. Eles são incapazes de pensar um mundo diferente do que ele é, são seres que mimetizam a realidade, ávido pela vontade de fazer coisas, sem capacidade de refletir sobre suas ações. Eles fazem da ação, do ser atuante, da chamada efficiency enquanto tal, um culto, cujo eco ressoa na propaganda do homem ativo (ADORNO, 1995, p.129). O resultado disso foi que os nazistas foram capazes, com a eficiência da ação e a frieza do caráter, levar ao morticínio  milhares de inocentes. Auschwitz não pode ser comparado a nenhuma outra forma de barbárie, porque buscou na eficiência técnica uma racionalidade cada vez maior para assassinar milhões de pessoas.  

Hoje, vemos pessoas amando cada vez mais equipamentos eletrônicos, carros, computadores e toda espécie de tecnologia que aparece. Adorno (1995) observou que essa relação com a técnica é exagerada e irracional, chegando a ser patológico. Os homens esquecem que os equipamentos técnicos são extensões do corpo, para tornar a existência mais fácil para o ser humano. Em nossa atualidade,  a técnica foi fetichizada, tornou-se um fim em si mesmo. Os indivíduos passam a valorizar mais os equipamentos em detrimento das relações humanas. Como afirma Adorno (1995): “Um mundo em que a técnica ocupa uma posição tão decisiva como acontece atualmente, gera pessoas tecnológicas, afinadas com a técnica” (ADORNO, 1995, p.132).  Esse amor por equipamentos é o indicio que as condições objetivas estão criando personalidades reificadas capazes de aderirem ao discurso fascista.

Referências

ADORNO, Theodor.  Educação e Emancipação. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1995.

ADORNO, Theodor; HORKHEIMER, Max. Dialética do Esclarecimento. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985.

BAUMAN, Zygmunt, Vida para consumo: a transformação das pessoas em mercadorias. Tradução de Carlos Alberto Medeiros. Rio de janeiro: Zahar, 2008.

HORKHEIMER, Max. Eclipse da Razão. São Paulo: Centauro, 2002.

MARCUSE, Herbert. Algumas Implicações Sociais da Tecnologia Moderna. In: Tecnologia, Guerra e Fascismo, São Paulo: Editora Unesp, 1999.


Michel Aires de Souza Dias – Doutorando em educação pela Universidade de São Paulo. Email:[email protected]

Michel Aires

Graduação em filosofia pela UNESP. Mestre em filosofia pela UFSCAR. Doutor em educação pela USP. Tem experiência nas áreas de Filosofia e Educação, com ênfase na Teoria Crítica, em particular, nos pensamentos de Herbert Marcuse e Theodor Adorno. Possui artigos publicados nas áreas de educação, filosofia e ciências sociais.

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