Aderir a estado policial pode ser opção eleitoral; sair dele nunca é, por Marcelo Semer

Lourdes Nassif
Redatora-chefe no GGN
[email protected]

do Justificando

Aderir a estado policial pode ser opção eleitoral; sair dele nunca é

Por Marcelo Semer

-Mostrem a eles, o quanto precisam de nós.

Em uma cena de V de Vingança, o ditador Sutler, representado por John Hurt, dá a ordem que resulta em uma série de reportagens de televisão sobre epidemias, inflação, catástrofes climáticas e terrorismo.

Tinha sido o próprio medo que levara a Inglaterra futurista ao totalitarismo, e com o medo transmitido em cadeia nacional, o poder se mantinha.

As imagens daqueles noticiários são até tímidas perto daquelas que assistimos diariamente na hora do jantar. O risco em cada esquina, a violência incontida e incontrolável, o catastrofismo econômico, doenças em contínua progressão.

Tudo nos faz ter a certeza de que seremos a próxima vítima. Tão temerário, que nos torna capaz de aceitar os remédios mais intragáveis.

O medo sempre foi o estimulante mais contundente da repressão.

Já dizia Mia Couto, “Para fabricar armas é preciso fabricar inimigos. Para produzir inimigos é imperioso sustentar fantasmas…. Eis o que nos dizem: para superarmos as ameaças domésticas precisamos de mais polícia, mais prisões, mais segurança privada e menos privacidade”[1].

A provocação de V. não é gratuita.

Mesmo sem o controle estatal, ninguém exercita melhor do que a mídia essa tarefa de amedrontar e causar o pânico necessário para forjar medidas draconianas, que habilmente são convertidas em anseios sociais.

E onde existe formação de opinião pública, sempre haverá políticos capazes de transformar, pelo intermédio de um oportunista populismo legiferante, estes desejos em realidade.

O direito penal vem a ser o principal repositório deste medo e, por consequência, presa fácil do populismo legal. Neste campo, as impressões e sensações são muito mais poderosas do que a razão.

Não é por outro motivo que o direito penal se constitui hoje no único produto que quanto mais falha, mais ganha prestígio.

Uma lei severa que não surte efeito contra a criminalidade é quase sempre sucedida por outra ainda mais rigorosa e assim por diante. São em escaladas como essas que abrimos mão, gradativamente e quase sem perceber, do estado democrático, que custamos a construir.

A campanha eleitoral que se apresenta nos mostra que o direito penal segue firme, como vítima da demagogia legal.

Quando menos se espera, a redução da maioridade penal, que vinha sendo tratada até então como uma combalida proposta de setores ultrarreacionários, reassume lugar de ponta na disputa presidencial.

E vem ainda acompanhada da abjeta ideia de privatização de presídios.

Pouco se pode agregar de razão a um debate que se firma, sobretudo, pelo sensacionalismo.

Os adolescentes são responsáveis por um percentual ínfimo de crimes graves; é a guerra contra as drogas, sobretudo, e seu lado atavicamente seletivo, que fazem lotar as instituições juvenis, com precoces operários do microtráfico.

A eficácia de dissuasão da redução da maioridade chega a ser risível, sobretudo se considerarmos a pouca serventia que o aumento das penas tem provocado entre os adultos. Por que seria diferente com adolescentes?

À custa de alguns tantos votos, milhares de jovens podem ser prematuramente entregues à tutela das facções criminosas -elas mesmas um subproduto do hiper-encarceramento. A situação só tende a piorar.

A privatização dos presídios, por outro lado, como resposta à degradação dos estabelecimentos prisionais (causada também pelo encarceramento sem fim), seria a consagração do capital sobre o sistema de segurança pública.

Quando o crime compensa financeiramente e entra de forma ativa no mercado, não mais se pensará em ressocialização, medidas alternativas ou descriminalizações. O sistema se realimentará continuamente.

Nos Estados Unidos, empresas que administram presídios fazem lobby vigoroso por medidas que mais encarceram, por motivos que não são muito difíceis de entender. Não à toa, o país é o que mais encarcera no mundo –campeonato do qual o Brasil, hoje, já ostenta uma vergonhosa medalha de bronze.

Jonathan Simon, em seu Governing Through Crime[2], mostra como os Estados Unidos inverteram a lógica e a preferência de sua política para a área criminal, alterando o epicentro do cidadão e contribuinte para o da vítima.

Fortaleceram-se, enormemente os poderes policiais e do Ministério Público. A repressão criminal segue servindo como uma política segregatória –com índice de encarceramento de negros sete vezes maior do que o de brancos.

Nesse ponto, seguramente não vimos decepcionando.

Nosso direito penal cresce sem parar. Nossos presídios estão cada vez mais abarrotados, especialmente de jovens pobres e negros.

E nada mais demonstrativo da centralidade do direito penal do que uma delação premiada virando destaque da campanha presidencial.

Com a eleição do Congresso mais conservador do período democrático e o incremento da tradicional bancada da bala dificilmente se adotarão medidas a retomar o desarmamento, de modo que a letalidade social tende a se manter em crescimento.

Nesse panorama, jogar milhares de adolescentes no barco opressivo e já superlotado do direito penal, para agradar eleitores seduzidos pelo ilusionismo penal, não será apenas uma proposta mistificadora.

Se ultrapassada a barreira constitucional da cláusula pétrea –quem pode garantir a interpretação do STF, sujeito ainda a mudanças em sua composição?- ela tende a provocar mais supressão de direitos, mais sofrimento e mais abandono.

E como a reincidência é tradicionalmente maior em relação ao encarcerado, é provável que provoque ainda mais crimes, preparando a antessala de outras propostas de recrudescimento penal.

Isso significa jogar querosene no fogo até causar incêndio maior, que reclamará intervenções mais vigorosas e, por consequência, interpretações ainda mais conservadoras do Judiciário.

A ideia de suprimir direitos, sufocar defesas e ampliar punições de forma generalizada, tendo como álibi o “combate à impunidade”, também não é novidade. Sua fácil popularidade, todavia, costuma esconder armadilhas pouco refletidas.

O historiador Robert Gelatelly mostra como o endurecimento penal se transformou em um fator de legitimação da ditadura nazista[3]:

“As novas propostas favoreciam julgamentos mais rápidos e a redução das proteções legais. Os cidadãos foram informados que o princípio liberal de “nenhum crime sem uma lei” (nullum crimen sine lege) foi trocado para “nenhum crime sem uma punição” (nullum crimen sine poena). … O sinal era impossível de ser ignorado: os tribunais ficariam mais “radicais” ou simplesmente se tornariam supérfluos.

Aderir ao estado policial pode até ser uma opção eleitoral. Mas sair dele quase nunca é.

Marcelo Semer é Juiz de Direito em SP e membro da Associação Juízes para Democracia. Junto a Rubens Casara, Márcio Sotero Felipe, Patrick Mariano e Giane Ambrósio Álvares participa da coluna Contra Correntes, que escreve todo sábado para o Justificando.


[1] Conferência do Estoril, 2011. Em https://www.youtube.com/watch?v=jACccaTogxE
[2] Governing Through Crime. New York City. Oxford University, 2007 [e-book].
[3] Apoiando Hitler – Consentimento e coerção na Alemanha nazista. Tradução de Vitor Paolozzi. Rio de Janeiro. Ed. Record, 2012.
Lourdes Nassif

Redatora-chefe no GGN

4 Comentários

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

  1. Salvação

    “Não se desespere – no momento em que a vida lhe parecer realmente insuportável, desligue a televisão e converse um pouco.” Millôr Fernandes 

  2. privastizar penitenciárias é

    privastizar penitenciárias é tão grave quanto

    privatizar a economia brasilera, o banco central, tc.

    é dar a chave ao bandido ou aos amigos e parentes

    que atendem ao seus interesses para que se perpetuem as

    injustiças sociais, economicas e políticas.

  3. Resolução de crimes

    Se a polícia resolvesse mais que 5% dos crimes (nos EUA são resolvidos fantásticos 85%!!!) haveria menos gente para prender. O problema não é bem a sensação de impunidade do pouco que chega a julgamento, mas o fato justamente de que pouco chega a julgamento (como citado, mais pretos e pobres, porque rico fica em prisão domiciliar, quando muito!)

  4. mídia
    Pra que haja uma Estado ditatorial é preciso que se crie uma sociedade que anseie por uma ditadura. Uma mídia mesmo sem o controle do poder político é o instrumento pra moldar a opinião pública. Campanhas de medo e o ódio direcionam o público a aceitar uma nova ordem política cada vez menos democrática.

    A manutenção no poder do PSDB há 20 anos em SP pelo eleitorado é uma resultante de uma ideologia antipetista propagada pela mídia paulista, que se utiliza de ódio de medo para a população crer que nada melhor pode vir de qualquer força política fora o PSDB. O Estado de São Paulo ainda não é uma ditadura mas se perdeu muito do que caracteriza um Estado Democrático.

Você pode fazer o Jornal GGN ser cada vez melhor.

Apoie e faça parte desta caminhada para que ele se torne um veículo cada vez mais respeitado e forte.

Seja um apoiador