Alunos negros, professores negros

Patricia Faermann
Jornalista, pós-graduada em Estudos Internacionais pela Universidade do Chile, repórter de Política, Justiça e América Latina do GGN há 10 anos.
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Por Janaína Penalva
Professora de Direito Constitucional da Faculdade de Direito da Universidade de Brasília/UnB, membro da Coordenação do Centro de Estudos em Desigualdade e Discriminação/UnB. Ex- Diretora -Executiva do Departamento de Pesquisas Judiciárias do CNJ e do Centro de Estudos Judiciários do CJF
 
Por Evandro Piza Duarte
Professor de Direito Processual Penal e Criminologia da Faculdade de Direito da Universidade de Brasília, membro da Coordenação do Centro de Estudos em Desigualdade e Discriminação/UnB
 
Por Gianmarco Loures Ferreira
Mestrando em Direito, Estado e Constituição pela UnB. Pesquisador do Centro de Estudos em Desigualdade e Discriminação/UnB
 
Por Marcos Vinicius Lustosa Queiroz
Mestrando em Direito, Estado e Constituição pela UnB. Pesquisador do Centro de Estudos em Desigualdade e Discriminação/UnB
 

Do JOTA

Em  vigor desde 9 de junho de 2014, a Lei Federal nº 12.990, que reserva aos negros 20% das vagas oferecidas nos concursos públicos do Poder Executivo Federal, tem tido um desempenho muito aquém do esperado.

Dados da Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial – SEPPIR comprovam que, muito distante dos 20% previstos na lei, na maioria dos concursos públicos que exigem formação superior este percentual chega, ao máximo a 14%, sendo que, no caso de universidades e institutos federais de ensino este percentual tem girado em torno de 7% .

Assim, não é de se surpreender que o fato da Universidade de Brasília (UnB), uma das mais tradicionais instituições de ensino do país, já pioneira pela adoção de cotas raciais no vestibular, nos idos de 2004, e, mais recentemente, nos processos seletivos de pós-graduação em Sociologia, Antropologia, Direito e Direitos Humanos, tenha ganhado as páginas dos principais veículos de imprensa para noticiar a abertura de edital com cotas raciais para contratação de professores de direito. Cumprir a lei, no Brasil, parece, realmente, ser motivo de destaque.

O dilema gira em torno da regra que prevê a aplicação do percentual de reserva (20%) sempre que o número de vagas oferecidas for igual ou superior a três. Em concursos em que há grande oferta, como os de nível médio, por exemplo, cumprir a exigência é mais fácil, tanto é que, ainda que abaixo do mínimo legal, as reservas têm ficado próximas à 16% (dezesseis por cento). No entanto, em concursos em que o número de vagas não passa de uma ou duas, como é o caso do magistério superior, o risco de a lei não surtir efeito é grande.

Segundo a Decana de Gestão de Pessoas da UnB, Maria Ângela Guimarães Feitosa, o sucesso do Edital para docente de Direito Público e Privado para a Cidadania, da Faculdade de Direito, que cumpre a reserva de vagas para negros e negras, deve-se a uma “adaptação à lei”, em que foram atualizadas as “condições gerais do edital”. De fato, tradicionalmente, os concursos para professores são limitados por disciplinas, dada a especialização exigida para o exercício dos cargos. No entanto, mesmo respeitando os níveis de especialização, é possível que se faça o que tem sido denominado “ampliação do espectro de atuação do cargo”, o que possibilita que as vagas, mesmo em especialidades diferentes, sejam aglutinadas. Dessa forma, o que a UnB fez no concurso para a Faculdade de Direito foi interpretar a lei  para garantir o cumprimento das cotas raciais.

Como comumente se observa em questões que envolvem concursos públicos, a reserva de cotas raciais já chegou ao Judiciário. Além dos debates sobre falsidade na autodeclaração, como havido nos concursos da Polícia Federal e no Instituto Rio Branco, a burla ao cálculo da reserva de vagas surge como violação mais sofisticada da lei. De forma aparentemente legítima, a distribuição das vagas por especialidades esvazia completamente o objetivo da lei, na medida em que não materializa as cotas.

Nesse sentido, a atuação do Ministério Público Federal e da Defensoria Pública da União resultou em ações contra o Institutos Federais de Educação, Ciência e Tecnologia do Maranhão (IFMA) e de São Paulo (IFSP). No caso do IFMA, a Defensoria Pública da União propôs uma ação civil pública, questionando o fracionamento das 210 vagas para a carreira de magistério do Ensino Básico, Técnico e Tecnológico da instituição, que resultou, ao invés de 42 vagas para pretos e pardos, em apenas 6 vagas.

Em sede liminar, o TRF da 1ª Região já se pronunciou contrário ao fracionamento das vagas reservadas, suspendendo os certames e determinando a incidência do percentual de vagas por cota sobre o total de vagas ofertadas.

Já no IFSP, o Ministério Público Federal em São Paulo ingressou também com ação civil pública, pelos mesmos motivos, em razão do fracionamento das 166 vagas para a mesma carreira de magistério do Ensino Básico, Técnico e Tecnológico, que deixou de oferecer qualquer vaga a negros e pardos, embora o total de vagas oferecida fosse de 166.

A efetivação da Lei Federal nº 12.990/2014 exige dos aplicadores o rompimento com as formas tradicionais de realização de concurso público nas universidades. A necessidade de que as disciplinas sejam lecionadas por professores especializados não implica que os concursos públicos sejam também segmentados. Até porque, no cotidiano das universidades, não é incomum, malgrado a especialização crescente, o docente lecionar em disciplinas de áreas afins.  Logo, é possível, como fez a UnB, a construção criativa de formas de seleção que assegurem o perfil acadêmico do professor, atentando, na mesma medida, para o mandamento constitucional que impõe processos seletivos antidiscriminatórios e comprometidos com a igualdade racial.

O concurso da UnB, portanto, inova em dois sentidos. De um lado, atenta ao risco que a divisão por disciplinas (direito público e direito privado) pudesse esvaziar o conteúdo da lei, lançou o certame com vagas na área de conhecimento, o que exige dos candidatos e candidatas um conhecimento de todo o conteúdo, mas também amplia a oferta, sem sair da especialização – formação em Direito – exigida. Por outro, demonstra uma competência administrativa de planejamento, possibilitando que ao invés de três concursos, em momentos diferentes, um só se fizesse, cumprindo, a uma só vez, dois deveres constitucionais: o de atender ao princípio da igualdade, viabilizando as cotas raciais na formação de seu corpo docente, e o de cumprir o princípio da eficiência, fazendo mais, com menos.

Não obstante, ainda há muito o que se feito. Apesar de a UnB ter aprovado, no final de 2015, um Edital de Condições Gerais para os próximos concursos de docentes, no qual se prevê a reserva de vagas, ainda não se consolidou na instituição, assim como em outras, uma discussão pública intensa sobre a importância da admissão de professores negros. Assim, é urgente que a própria Universidade debata e elabore estratégias institucionais, a serem seguidas por cada departamento, visando dar efetividade à Lei Federal nº 12.290.

De igual forma, as ações afirmativas não devem ser entendidas como mera reserva de vagas, mas sim no seu verdadeiro sentido de reestruturação profunda de ambientes historicamente excludentes. Há, assim, um longo caminho de democratização da gestão universitária, que passa, entre outras medidas, pela revisão de como o conhecimento é produzido na academia (bibliografias, ementas, disciplinas, grupos de estudos, linhas de pesquisa, etc.) e por compromissos institucionais muito mais delicados que a simples adoção das cotas. É justamente nesse aspecto que é possível visualizar a maior relutância da Universidade em assumir, de fato, posturas que impliquem na mudança efetiva do seu saber-fazer profundamente desigual.

O que se espera é que, da mesma forma como nos idos de 2004, as cotas raciais adotadas pela UnB criaram escola, a atual forma de condução dos concursos públicos para professores e professoras também sirva de bom exemplo para as demais instituições de ensino fazerem o que exige a Constituição, deixarem de lado a cultura institucional e se adaptarem para o cumprimento do princípio da igualdade.

Patricia Faermann

Jornalista, pós-graduada em Estudos Internacionais pela Universidade do Chile, repórter de Política, Justiça e América Latina do GGN há 10 anos.

6 Comentários

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  1. Há problemas, porém

    Talvez seja possível unificar Direito Público e Direito Privado. Mas como unificar, por ex., Linguística, Literatura Brasileira, Literaturas de Língua Inglesa, de Língua Francesa, Teoria da Literatura, etc (essas sao apenas algumas entre as muitas disciplinas que há só num Instituto de Letras; há diversas outras, e professor algum está capacitado para ensinar todas elas, na maioria dos casos nem mesmo duas delas).

    Me parece que melhor seria se, entre TODAS as disciplinas de uma universidade, fosse aplicado o percentual total, mas cada concurso continuasse feito por disciplina, com a ressalva de que, ENTRE OS CANDIDATOS APROVADOS, os negros e pardos colocados em segunda ou terceira colocaçoes pudessem ter prioridade na nomeaçao

    E na verdade há um problema mais sério ainda: concursos universitários normalmente exigem doutorado, e nao convém abrir mao dessa exigência, ou o nível dos professores desceria muito. E nao creio que já haja tantos doutores negros quanto os que seriam necessários.

     

    1. Estado racial,

      ANA-LU, 

      A população afro-brasileira tem sido violada em sua dignidade humana com o estado fazendo a segregação de direitos em bases raciais e tua proposta visa ainda mais aprofundar o tratamento desigual de humanos que merecem a igualdade de tratamento. 

      A oposição crítica ao sistema de cotas raciais é que a tendência será sempre de aprofundamento do critério do uso da ´raça´ como identidade jurídica para o exercício de direitos. A diferenciação de brasileiros pela cor da pele, viola os princípios iluministas da Constituição Federal: todos são iguais perante a lei, conforme o art. 5º e em especial ao art. 19, inciso III da CF:

      Art. 19. É vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:

      (…)

      III – criar distinções entre brasileiros ou preferências entre si.

       

      Na Índia isso já ocorreu, pois as cotas étnicas para os ´Dallits´ já são empregadas desde 1910 como instrumento de controle pelo colonizador britânico e criou-se uma pequena elite de menos de  5% dos ´Dallits´, porém uma poderosa elite de 20 milhões que cada vez mais exige novos privilégios, enquanto os demais 400 milhões continuam excluídos, segregados, discriminados que são  “intocáveis”, totalmente hipossuficientes para exigir direitos.

      Esse artigo de professores da UnB já revela isso: antigos cotistas da graduação, já postularam cotas também na pós-graduação e agora as cotas no ingresso na carreira docente. Enfim, novas demandas serão geradas, e em uma ou duas décadas, a idéia de ´doutores´ de primeira e segunda classe estará plenamente concretizada.

      Manuela Carneiro da Cunha, em ´Negros, Estrangeiros´, publicado nos anos 1980, nos revelava como funcionou o instituto das alforrias, a primogênita das leis de cotas, em que os beneficiários, compreensivelmente, aceitavam a condição de ´cidadãos de 2a classe´, o mesmo papel que as cotas raciais nos reservará no futuro.

      As alforrias somente foram extensamente utilizada no Brasil e com seu uso, criando uma classe intermediária entre os senhores e os escravos, retirando poucos da miséria na senzala, para serem miseráveis nos puxadinhos da Casa Grande, fez o nosso escravismo sobreviver décadas a mais que nas demais nações. Pelo menos de 1831 até 1888.

      A rigor para a inclusão de pretos e pardos, com dignidade, bastariam as cotas sociais em que 50% das vagas em universidades públicas tivesse o ingresso pela renda familiar ´per capita´. Se os afro-brasileiros são 70% dos mais pobres, estariam potencialmente disputando 35% das vagas, em igualdade de condições com os pobres brancos, oriundos da mesma classe social, do mesmo ambiente escolar e até da mesma família miscigenada brasileira.

      Portanto, ampliar e aprofundar critérios de inclusão baseados em ´igualdade racial´ é praticar o racismo nos exatos termos desejados pelos ideais do racismo, tão bem sintetizados na doutrina norte-americana ditada pela Suprema Corte em 1867 e vigente até os anos 1960 nas leis americanas: iguais, mas separados. Ou seja, para se efetivar tal mandamento, o estado podia outorgar direitos segregados.

      E isto, todos sabemos, até mesmo os defensores de cotas raciais doutrinados pelas Foundacion´s ianques que investiram centenas de milhões de dólares nas universidades brasileiras, são sabedores: é racismo institucional!

       

      1. Nao concordo com seus argumentos; MAS

        Acho que nesse caso em especial deveria haver alguma progressao. As cotas para a pós acabam de ser decididas. Se deveria esperar algum tempo antes de aplicá-las no ensino superior, nao pelos argumentos que vc dá, mas pela própria falta de doutores negros em número suficiente. Temo que a tentativa de aplicá-las de qualquer maneira diminua o nível de exigência DE FORMAÇAO (títulos) dos candidatos, o que seria péssimo para as universidades.

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