As demissões no CAPS Franco Basaglia, por Luís Paulo Lopes

Com o fim do CAPS, são as vidas de pessoas que serão afetadas com o desmonte da saúde mental pública

Por Luís Paulo Lopes

Hoje depois de receber a notícia sobre a demissão dos profissionais do CAPS Franco Basaglia fui me sentar nos banquinhos do estacionamento do CAPS em que trabalho (Manoel de Barros) e fumar o meu cachimbo pra tentar digerir o significado desta notícia. Um usuário que acompanho me viu e foi falar comigo antes de sair do CAPS. Sentou do meu lado e me agradeceu mais uma vez. Disse o quanto era grato pelo trabalho do CAPS. Citou vários profissionais pelo nome; e contou, pela milésima vez, a sua história.

No início do acompanhamento, sua história era somente um monte de fragmentos soltos em que algumas cenas terríveis eram contadas e repetidas, como quando viu seu irmão ser assassinado em um assalto ou quando precisou limpar uma guarita em que um de seus amigos havia se suicidado com um tiro na cabeça. Mas depois, novas cenas foram sendo contadas (não menos terríveis) e, aos poucos, foi recuperando sua história.

Tenho a sensação de que a cada vez que conta sua história consegue se lembrar um pouco mais de quem ele é; pois fora demasiadamente esmagado pelo encarceramento e a tortura na época da ditadura, além dos tempos em que passou nos manicômios. Esses últimos guardam as memórias que ele tem mais dificuldade em falar. Nem os porões mais sinistros da ditadura foram capazes de mortificar seu espírito quanto o Núcleo Ulisses Vianna na antiga Colônia Juliano Moreira.

Antes, nas prisões dos militares, conta que sofreu diversas torturas e se orgulha de não ter chorado, mesmo quando lhe quebraram as duas clavículas (que sempre faz questão de mostrar) e um dos joelhos. Ou quando fez amizade com um rato que subia da “boca do boi”, buraco usado para fazer suas necessidades, em uma solitária onde ficou por trinta dias. Ainda aí, o seu espírito estava vivo, apesar de seu corpo ter sido quebrado.

Foi o manicômio que conseguiu lhe dobrar o espírito. O excesso de medicações, a dor terrível da impregnação, os choques elétricos, as condições desumanas de alojamento, o quarto forte. Ele diz que era como um campo de concentração. Conta sobre o quanto era ruim ficar no “bolo”, um quarto com dezenas de internos dopados, sem roupas, camas ou qualquer coisa parecida. Conta que morria muita gente e que já precisou fazer muitos “pacotes”, para retirada dos defuntos. Os internos que contavam qualquer coisa do que acontecia ali para suas famílias eram terrivelmente castigados, e, apavorado, ele se calou. Bem aí seu espírito foi dobrado. Diz que pensava que iria morrer ali dentro e que não sabe como conseguiu sair vivo.

Mas conta também o quanto a sua vida mudou depois que chegou ao CAPS. De como ele não conseguia falar com ninguém quando chegou e de como, hoje, ele tem uma vida. Em uma das últimas aparições do Anjo Gabriel, um ser que lhe aparece através de alucinações, lhe foi dito que sofreria muito nesta vida, mas que encontraria pessoas boas e que sua vida um dia mudaria. O anjo então, lhe entregou uma missão: divulgar o trabalho do CAPS para que o passado nunca mais se repita. Pouco antes desta aparição do anjo, ele escutou as vozes de centenas de mulheres desesperadas pedindo por socorro; que identificou como sendo as almas das antigas internas dos Núcleos femininos Teixeira Brandão e Franco da Rocha da antiga Colônia. Essa missão seria como uma resposta ao pedido destas mulheres.

A vida dele, com certeza, mudou. Mudou muito. Hoje ele me disse, enquanto eu estava as voltas com a notícia do desmonte dos CAPS, o quanto foi importante ter conseguido confiar em mim. Que ao longo do tempo, foi conseguindo confiar cada vez mais. Pôde assim, confiar a mim não somente suas dores do passado e as pequenas alegrias cotidianas do presente, mas também suas culpas e arrependimentos. Teve a chance de chorar o grande peso que carrega sua consciência. Disse o quanto a convivência do CAPS foi importante para a sua melhora. Senti como se ele tivesse vindo se despedir de mim. Fiquei emocionado e me levantei para me despedir, pois estava difícil pra mim suportar aquela conversa.

São as vidas de pessoas como ele que serão afetadas com o desmonte da saúde mental pública. É disso que se trata toda a minha tristeza em assistir a destruição que recaiu sobre nosso país; pois sabemos que a questão é muito maior do que o prefeito da cidade. Se instalou no país a política da morte e, sem nenhuma dúvida, é o povo mais vulnerável quem mais vai sofrer.

 

Redação

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