Bolsa Família, equidade e universalização – Unificação de programas não pode ser estratégia para extinção de direitos, por Tereza Campello e Sandra Brandão

Os ínfimos 0,8% do PIB gastos com os quatro programas a serem reestruturados (extintos) são o limite para o redesenho do sistema.

Bolsa Família, equidade e universalização – Unificação de programas não pode ser estratégia para extinção de direitos

por Tereza Campello e Sandra Brandão

Na terceira semana de setembro, uma reportagem do site Poder360¹ colocou foco em uma proposta elaborada por técnicos do IPEA², que estaria sendo discutida no Executivo e no Legislativo – a reestruturação dos gastos com benefícios para a população vulnerável à pobreza e para crianças e jovens.

A justificativa da proposta parece nobre: eliminar um hiato de cobertura no sistema de proteção social brasileiro que se expressa na existência de 17 milhões de crianças, metade entre os 30% mais pobres, e de 13 milhões de pessoas, entre os 20% mais pobres, sem cobertura. Para isso, propõe unificar quatro benefícios – Bolsa Família, Abono Salarial, dedução por dependente do IRPF e Salário-Família –, instituindo um novo programa³ que seria constituído por:

  1. benefício universal de R$ 45 por criança e jovem com menos de 18 anos, independente da renda familiar. O custo total estimado deste benefício seria R$ 29,2 bilhões, praticamente o mesmo valor anual investido hoje no Bolsa Família;
  2. benefício para crianças de até 4 anos, em famílias com renda per capita de até R$ 430. O valor seria de R$ 90 por criança em famílias com renda no CadÚnico de até R$ 250 per capita. Para famílias com renda per capita acima de R$ 250, o valor por criança diminui R$ 5 para cada R$ 10 de aumento na renda per capita familiar. O custo estimado deste benefício seria R$ 5,6 bilhões;
  3. benefício de pobreza extrema para famílias com renda per capita de até R$ 338[4]. O valor seria de R$ 44 para famílias com renda per capita de até R$ 250 e decresceria R$ 5 para cada R$ 10 de aumento na renda per capita familiar. O custo estimado deste benefício seria R$ 16,6 bilhões.

Segundo os autores, mesmo sem aumento de gasto, essa proposta teria vantagens em relação ao sistema existente: maior cobertura, por beneficiar 92,97 milhões de pessoas, ante 80,1 milhões hoje atendidas; maior redução da desigualdade e pobreza. Parece perfeito no agregado, mas a proposta está assentada em premissas questionáveis e produz uma enormidade de perdedores, o que justifica um olhar crítico sobre ela. Afinal, como ensina o dito popular, o diabo mora nos detalhes.

Em primeiro lugar, o nobre propósito de eliminar o hiato de cobertura no sistema de proteção às crianças e vulneráveis está subordinado ao objetivo de não gastar mais com essa proteção. Ou seja, os ínfimos 0,8% do PIB gastos com os quatro programas a serem reestruturados (extintos) são o limite para o redesenho do sistema. Em decorrência, a atenção às crianças e aos pobres terá a amplitude e intensidade que cabem na atual dotação orçamentária. O conflito distributivo inerente à instituição de qualquer programa de garantia de direitos é desconsiderado, e trabalha-se com a manutenção do status quo orçamentário. Concordar com a reestruturação proposta significa, implicitamente, aceitar que o Brasil já gasta o suficiente com a proteção às crianças e pessoas vulneráveis. Voltamos ao velho, mas sempre presente, “gastamos muito, mas gastamos mal”.

Em segundo lugar, como os quatro programas têm público alvo e objetivos muito distintos, a redistribuição do mesmo volume de recursos implicará impor perdas a vários segmentos sociais. Esta questão é tão relevante que o texto tem um item específico para analisá-la. Vale transcrever:

“É lógico que os maiores perdedores serão aqueles na metade superior da distribuição de renda que recebem benefícios como o Abono Salarial e a dedução-criança do IRPF. Não nos preocupamos com eles, mas com os beneficiários atuais do Bolsa Família, que estão entre os indivíduos mais pobres e necessitados do Brasil. Muitas famílias pobres que hoje recebem o BSP verão seus benefícios caírem. São famílias que vivem em contextos de muita escassez e para quem quedas no benefício podem ser dramáticas. (…) há, aproximadamente, 9,4 milhões de famílias na proposta básica (…) que perdem, em média, R$ 26,00 (…)per capita…”[5]

Impossível defender essa socialização de perdas. Estar na metade superior da distribuição de renda no Brasil significa ter uma renda domiciliar superior a R$ 933 per capita [6] e, portanto, os beneficiários do Abono Salarial e da dedução de dependentes no IRPF não são propriamente ricos. Reduzir os benefícios das famílias atendidas pelo Bolsa Família é um retrocesso injustificável, em especial porque a parcela afetada não seria residual, pois os 9,4 milhões correspondem a 70% do total de famílias hoje atendidas.

Vale enfatizar: sob o argumento de eliminar os hiatos do sistema de proteção, a proposta reduz direitos. Há uma clara inversão da lógica que orientou a criação e a implementação do Bolsa Família: ao invés de integrar programas e alocar os recursos necessários para garantir o atendimento a todos que precisam de proteção, propõe-se que todos que devam ser cobertos pelo sistema de proteção compartilhem o valor disponibilizado pela integração dos programas.

Em terceiro lugar, universalizar o benefício de proteção às crianças e jovens com menos de 18 anos é uma medida teoricamente defensável, mas que, diante da premissa do limite orçamentário, significa atender famílias para as quais os R$ 45 pouco afetam seu bem estar retirando R$ 26 de famílias cuja renda per capita está abaixo de R$ 178. Garantir apoio do conjunto da sociedade à existência do sistema de proteção social [7] é importante, mas um programa com desenho similar a um imposto de renda negativo deixa de ser defensável quando reduz o grau de proteção dos extremamente pobres.

A proposta não representa, como pretende, um passo além do Bolsa Família. Ao contrário, desmonta o programa e submete a proteção das crianças, jovens e extremamente pobres ao que cabe no espaço orçamentário resultante da unificação de quatro programas. Seu caráter é regressivo, porque exige diminuir a proteção dos extremamente pobres para atender toda a população, indistintamente. Há uma resignação na proposta – dividir o disponível entre todos – que não condiz com uma visão de que o sistema de proteção social deve ser potente e amplo  o suficiente para reduzir a pobreza e a desigualdade a patamares condizentes com um país inclusivo.

A universalização do atendimento às crianças, às custas das mais pobres, sequer permite alcançar o propósito de quebrar as barreiras do preconceito de parcela da sociedade que não compreende a necessidade de superar a extrema desigualdade que bloqueia nosso desenvolvimento. Dar um passo atrás no enfrentamento das iniquidades, tratar a todos como iguais, não é o caminho para construir uma sociedade mais solidária.

Por fim, é necessário lembrar que nenhuma proposta pode ser atemporal, sob o argumento de ser técnica. Está em curso no Brasil um projeto de desmonte da rede de proteção social sem precedentes. O Bolsa Família, o Abono Salarial e o salário-família estão na linha de tiro do Governo.

Qualquer ação que abra espaço para fragilizar ainda mais o pouco que restou em favor dos mais pobres deve ser evitado. Propor alterações na legislação neste momento é exatamente gerar esta oportunidade. Submeter a este governo e a esta maioria parlamentar uma proposta de revisão de benefícios sociais que chegam a 80 milhões de brasileiros é um risco que ninguém consciente e responsável pode correr.

Notas:

1 https://www.poder360.com.br/economia/governo-deve-propor-alteracoes-no-bolsa-familia-veja-como-pode-ficar/

2 Soares, Sergei; Bartholo, Leticia; Osorio, Rafael G. Uma Proposta para a Unificação dos Benefícios Sociais de Crianças, Jovens e Adultos Pobres e Vulneráveis. Brasília, IPEA, Texto para Discussão 2505, agosto de 2019.

3 Os comentários feitos neste texto referem-se à proposta básica. Todos são igualmente válidos para a proposta alternativa, que reduz valores de benefícios e introduz um benefício associado à conclusão do ensino médio.

4 A renda familiar para cálculo de elegibilidade ao benefício de extrema pobreza inclui os valores pagos pelos outros dois benefícios (universal e infantil focalizado).

5 Soares, S. et alli, página 34.

6 IBGE. Síntese dos Indicadores Sociais: uma análise das condições de vida da população brasileira 2018. Rio de Janeiro, 2018, tabela 2.6.

7 Segundo os autores, “um benefício universal evita estigmas, constrói uma coalisão mais ampla de forças em sua defesa e promove a percepção simbólica de que todas as crianças e adolescentes, independentemente de suas características econômicas, sociais ou individuais, são valorizados pelo Estado.” Soares, S. et alli, página 24.

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Redação

1 Comentário

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  1. Que se discuta à vontade os objetivos do Bola Família, desde que o programa, o melhor de todos os já criados na história para os que mais precisam.
    Dispêndio de aproximadamente 50 bilhões de reais para atingir diretamente a mais de 60 milhões de brasileiros de um lado, e do outro lado uma despesa anual de juros da dívida pública superior a 400 bilhões de reais, a maior parte deste montante indo para o bolso da banca e por lá ficando.
    Já no Bolsa Família o $$ gira, as pessoas passam a comprar aquilo que não possuem, onde não tinha padaria, passou a existir uma, e por aí segue o círculo virtuoso, no qual os 50 bilhões de reais fazem a economia girar mais de 100 bilhões de reais, enquanto a turma da Selic deixa o dinheirinho esquentando o bolso, não consegue abrir sequer uma lanchonete.
    Não compreendo como alguém de boa fé ainda pode ser capaz de questionar o Bolsa Família.

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