Bolsa Família: um direito humano ao qual não se admite retrocessos, por Iara A. Vitelli Viana

É indiscutível que a segurança de renda é fundamental para a promoção do desenvolvimento econômico, redução da pobreza e da desigualdade. Mas nem sempre se lembra que, como parte da seguridade social, é também um direito humano

do Brasil Debate

Bolsa Família: um direito humano ao qual não se admite retrocessos

por Iara Azevedo Vitelli Viana

No atual momento de instabilidade política, têm sido frequentes as discussões sobre o papel do Programa Bolsa Família (PBF) no Brasil. São poucas, no entanto, as discussões que inserem essa política em um cenário de componente da seguridade social, vista efetivamente como direito, para além de um instituto que simplesmente favorece o desenvolvimento social e econômico.

É indiscutível que a segurança de renda é fundamental para a promoção do desenvolvimento econômico, estimulando a demanda agregada e atuando como estabilizadora social em momentos de crise. Ela atua, ainda, de modo crucial no desenvolvimento social, pois promove igualdade de oportunidades, contribuindo para a redução da pobreza e da desigualdade. No entanto, a visão da segurança de renda enquanto direito não é sempre utilizada como base para justificar a existência e manutenção dos programas de transferências de renda.

A seguridade social é definida pela Constituição Federal brasileira, Artigo 194, como o conjunto de “ações de iniciativa dos Poderes Públicos e da sociedade, destinadas a assegurar os direitos relativos à saúde, à previdência e à assistência social”.

A título de exemplo, ficaram assegurados direitos como a segurança de renda para pessoas em idade avançada e em idade ativa sem capacidade de obter um rendimento suficiente, ou seja, aquelas em situação de doença, invalidez, morte de membro da família, maternidade e desemprego involuntário. Previu-se, ainda, a prestação de benefícios financeiro às famílias com crianças até 14 anos ou com indivíduos em reclusão, desde que de baixa renda.

Na prática, no entanto, esses direitos se restringem a proteger, de modo geral, os segurados pela previdência social, que contribuem financeiramente para o sistema (como, por exemplo, os empregados, os trabalhadores autônomos e avulsos, dentre outros), sendo de conhecimento o fato de que parte significativa da população está excluída do regime próprio ou geral de previdência social. Há casos, ainda, em que as prestações previdenciárias podem não prover renda bastante aos beneficiários, de modo a protegê-los do estado de exclusão social. Assim, tanto em um caso quanto no outro, o direito a renda suficiente não está assegurado.

Nesse contexto, foram criadas as chamadas “transferências não contributivas”, como o Benefício de Prestação Continuada (BPC), que corresponde à “garantia de um salário mínimo de benefício mensal à pessoa portadora de deficiência e ao idoso que comprovem não possuir meios de prover a própria manutenção ou de tê-la provida por sua família” (Art. 203, V, CF 88). E, finalmente, aos demais indivíduos não cobertos por esses sistemas protetivos, o único mecanismo público de provimento de renda suficiente é o Programa Bolsa Família.

Avançando na discussão, a OIT (Organização Internacional do Trabalho), que considera segurança social parte dos direitos humanos (Declaração Universal dos Direitos Humanos, Art 22º), publicou no World Social Security Report 2010-2011 seu conceito mais recente de seguridade social:

“A noção de seguridade social cobre todas as medidas que provejam benefícios, seja em dinheiro ou espécie, que assegurem proteção, nomeadamente, contra: i) falta de renda relacionada ao trabalho (ou renda insuficiente) causada por doença, invalidez, maternidade, desemprego, acidente de trabalho, idade avançada ou morte de um membro da família; ii) falta de acesso à saúde; iii) apoio familiar insuficiente, especialmente para crianças e adultos dependentes; e iv) pobreza geral e exclusão social.”

Observa-se que os três primeiros pontos são cobertos, no Brasil, pelo texto constitucional citado anteriormente. Entretanto, a proteção contra a pobreza em geral e da exclusão social, como objetivo da seguridade social, seja em benefícios financeiros ou não, não está alcançada suficientemente por esses institutos. É justamente nesse ponto que o PBF tem atuado, aumentando a rede de proteção social e assegurando direitos humanos básicos a diversas pessoas.

Tem-se, portanto, que, considerando que o Bolsa Família tem por finalidade promover direitos humanos mínimos a pessoas que já se encontram excluídas de outras esferas protetivas de riscos sociais, parece temerária qualquer medida tendente a reduzi-lo, seja na abrangência de alcance, seja pela redução do valor das prestações.

Tome-se, por exemplo, parcela do rol de intenções lançadas no programa “Travessia Social” (de autoria da Função Ulysses Guimarães, ligada ao PMDB, partido que ocupa o governo atual), que prevê a “focalização” dos programas sociais para os 5% mais pobres da população, em oposição, assim, à cobertura atual dos cerca de 20% (mais de 40 milhões de pessoas inseridas no PBF e público alvo de diversas outras políticas sociais). O documento apresenta como justificativa para tal redução o fato de que aqueles 15% que seriam deixados de fora já estariam “perfeitamente conectados à economia nacional”.

Não há, no entanto, nenhuma garantia de que a faixa de 15% de indivíduos imediatamente acima dos 5% mais pobres esteja inserida adequadamente na economia brasileira (como no mercado de trabalho). Dados da PNAD de 2014 mostram que 75,39% dessa população (considerando apenas os economicamente ativos) está desempregada ou inserida informalmente no mercado de trabalho, contra 34,64% entre os 15% mais ricos no Brasil (a média brasileira é de 50,29%).

Assim, ao contrário do sugerido no “Travessia Social”, são imprescindíveis os mecanismos de garantia de renda à população mais pobre não inserida em outros meios protetivos contra a vulnerabilidade social em razão de insuficiência de renda (ou em situações em que os meios se mostram insuficientes). Por se tratar de uma renda mínima, ligada à própria existência digna dos indivíduos, tal parcela da população segue tendo o direito de acesso às políticas de transferência de renda.

O Brasil, como país que ainda possui nível de pobreza elevado e estrutural, necessita, portanto, de programas de transferência de renda, nos moldes do Bolsa Família, que garantam às populações mais vulneráveis seus direitos sociais mínimos. Não se pode perder de vista o fato de que há um direito humano em questão e qualquer tentativa de retrocesso deve ser prontamente combatida.

Iara Azevedo Vitelli Viana – É economista (UFMG), mestre em populações e pesquisas sociais (ENCE) e Analista Técnico de Políticas Sociais no governo federal

Redação

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  1. Renda mínima e outros direitos
    INSTITUCIONAIS INSEGURANÇAS

    “A realidade não é apenas negada, ela é também proibida.”
    (Thomas Leithhäuser, Ideologia e Consciência)

    O conceito de segurança está associado à subjetividade. Dentro de um bunker, cercado por tropas com atualizadas e eficazes armas e todo sistema defensivo atuante, a pessoa ainda poderá se sentir insegura.
    Mas, tratando não só da questão individual como coletiva, a confiança nas instituições do país é, indiscutivelmente, alimentadora de um nível de segurança.
    Com o recente golpe para o impeachment da Presidente Dilma Rousseff, desfez-se a pouca, se ainda restasse alguma, credibilidade nas instituições nacionais, especificamente nos poderes legislativo, judiciário, executivo e no ministério público.
    O legislativo, assim como toda classe política, vem sendo seguidamente desmoralizado pela imprensa em geral. Mas o espetáculo, amplamente divulgado, do domingo, 17 de abril de 2016, no Congresso Nacional, emoldurou este fragilizado poder. Votos em defesa da tortura, parlamentar enrolado na bandeira nacional para entregar a riqueza brasileira do pré-sal a empresas estrangeiras, voto às esposas e filhos pelos que sabidamente vivem com relações moralmente reprováveis, apenas acentuaram a descrença neste poder.
    Como então esperar leis que, minimamente, protejam o direito à cidadania. Cabe uma breve conceituação do que entendo por cidadania e o faço adotando a ideia da “paridade da participação” da filósofa norteamericana Nancy Fraser. Ela se firma em três condições:
    primeira a objetiva – aquela que assegura alguma garantia material, econômica, a toda população. A plataforma do Bolsa Família, o Programa de Renda Mínima são exemplos desta condição objetiva.
    segunda a intersubjetiva – voltada para o valor cultural, ou seja, o respeito à diversidade e desigualdade, a garantia da efetiva e idêntica oportunidade para todos terem “estima social”. O Ministério da Cultura, a Secretaria da Igualdade Racial, dos Direitos Humanos constituem exemplos garantidores desta condição.
    terceira a política – onde não será negada ou dificultada a voz das minorias ou seja excluir toda e qualquer forma de marginalização política. Uma Empresa Pública de Comunicação faz parte desta terceira condição.
    É evidente que deste legislativo, quer pela baixa capacidade crítica quer pelos “compromissos de campanha”, não se espera qualquer contribuição à cidadania ou à “paridade participativa” do povo brasileiro.
    Passemos ao judiciário.
    Vale aqui a desconstrução do mito da meritocracia. Ressalvo entender que as duas únicas formas de acesso às funções públicas deveriam ser o voto popular ou o concurso público amplo e geral. As funções de confiança e as terceirizações seriam consideradas burlas inaceitáveis ao provimento e exercício de funções nos Poderes Públicos em toda extensão.
    Agora tomo o conceito de “ideologia do desempenho” do sociólogo alemão Reinhard Kreckel. Esta ideologia busca firmar e legitimar um processo de exclusão social pela qualificação pessoal. Para não transformar um artigo numa tese acadêmica, lembrarei apenas a questão do tempo.
    Um jovem da classe média terá uma disponibilidade de tempo muito maior para ler, estudar, ir ao cinema ou espetáculo cultural, enriquecer seu conhecimento do que uma criança de família despossuída, obrigada desde a infância a vender seu tempo, sua força física, para garantir a sobrevivência.
    Forma-se assim no judiciário e em outras esferas do poder – ministério público, carreiras do executivo – uma casta mais disposta a manter seus privilégios do que corrigir as desigualdades e disfunções sociais. E esta característica é reforçada pelo “pertencimento”, ou seja, dela se excluirão todos os que não tenham a “mesma origem” ou se insurjam ou não ajam como seus “pares”.
    Bastam os salários destas funções e seus ganhos indiretos para comprovação desta solidariedade. Claro está que, além das dificuldades colocadas na própria legislação, vide nosso legislativo, os procedimentos excludentes do sistema judicial e um julgamento partidarizado, não necessariamente político mas pela classe social, não serão garantidores da segurança institucional, a não ser por exceção.
    Surge, então, a comunicação social para propugnar, defender e reforçar todo este contexto de insegurança.
    Usarei a palavra midia no sentido mais amplo, envolvendo toda sorte de comunicação social, inclusive a vinculada por canais virtuais.
    Alguns estudiosos da pedagogia afirmam que ao analfabetismo literário segue o televisivo e chega, hoje, ao virtual. Isto significa dizer que em nenhum ponto da formação do conhecimento há espaço para a crítica. Assim todo processo da comunicação social, com as mínimas exceções que também existem nos outros sistemas até aqui tratados, só faz naturalizar todas as desigualdades. E a tal ponto que pessoas passam a aceitar como correto serem flageladas e estupradas física e psiquicamente.
    Os abundantes exemplos podem ser vistos nas midias e destaco as entrevistas ao vivo com transeuntes, colhidos ao acaso.
    Chegamos à absoluta insegurança que nos transmitem as instituições nacionais.
    O processo democrático para rever este quadro só pode ser pela elaboração de um novo Estado por uma nova Constituição, esta o mais amplamente debatida por toda sociedade, formulada por todos os atores sociais para que a cidadania e a nacionalidade brasileiras sejam garantidas e protegidas.
    Não é possível, obviamente, sair do zero, mas é possível, e já ocorreu, afastar o poder econômico por limitações formais e adotar restrições à midia. Existem exemplos no exterior que como recomendava Ortega y Gasset devem ser buscados mas nunca transplantados.
    Pedro Augusto Pinho, avô, administrador aposentado

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