Comissão faz primeira audiência pública no Araguaia

Audiência sobre mortos e desaparecidos na região é organizada vinte anos após criação de comissão especial para investigar tema

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Jornal GGN – Pela primeira vez, após ser constituída em dezembro de 1995, a Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos, realizou uma audiência pública na cidade de Marabá, região do Araguaia, palco de um dos principais focos de resistência à Ditadura Militar, e que ocorreu entre 1972 e 1975.

O encontro, promovido no dia 2 de dezembro, foi coordenado pela Procuradora Regional da República, Eugênia Gonzaga que, em entrevista a Luis Nassif, explicou a importância da reunião para dar prosseguimento às investigações do conflito por um dos olhares menos explorados dessa história já pouco conhecida pelos brasileiros: o da população local, que antes da chegada dos militares conviveu amistosamente com os guerrilheiros e teve forte influência na malsucedida primeira incursão do Exército na região.

Araguaia é o nome de um grande rio que banha quatro estados, entre eles Tocantins e Pará, e foi na divisa entre eles que o conflito ocorreu, no meio da selva amazônica. Eugênia destaca que os perseguidos políticos começaram a chegar em maior número na região por volta de 1969, logo após a promulgação do Ato Institucional nº 5, em dezembro de 1968. Dali foi iniciada a fase mais violenta da ditadura militar brasileira.

“Com o AI-5, muita gente fugiu das cidades para ir para o campo, para o Araguaia. E a população gostava deles. Eles eram queridos, porque trouxeram esperança, eles ensinavam a plantar, eles trabalhavam juntos, e é por isso que a primeira operação do exército, em 72, foi totalmente fracassada, porque a população não colaborou. E, ao contrário, a população ajudava os guerrilheiros”, conta.

 

O exército só conseguiu reverter o apoio da população às custas de tortura, assassinatos e uso de napalm, arma química que ficou famosa através dos americanos na Guerra do Vietnam e com efeitos tão agressivos que, em 1980, foi proibida de ser utilizada sobre civis, pela Convenção da ONU sobre Armas Convencionais. Kim Phuc, a vietnamita que ficou conhecida em todo o mundo como a menina fotografada em prantos, correndo nua e ferida por napalm, afirmou em entrevista de 2015 que realizava sessões com laser para amenizar a dor, 40 anos após o ataque.                                                                                          

“A Comissão Nacional da Verdade reconhece isso, foi aquilo que o Exército chamou de ‘anular os apoios’, anular os apoios era simplesmente tolher, prender os chefes de família, queimar as roças dos agricultores”, completou Eugênia. O auxílio dos camponeses era fundamental para o Exército, que não conhecia a região. Assim, ameaçados, muitos deles se converteram em ajudantes das Forças Armadas na perseguição de guerrilheiros e no desaparecimento de corpos.

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A estudante da Escola de Medicina e Cirurgia do Rio de Janeiro, Lúcia Maria de Souza abandonou o curso durante os anos 70, no 4º ano, trocando o estágio no Hospital Pedro Ernesto pela luta armada no Araguaia. Na região, a jovem de origem humilde da cidade de São Gonçalo, passou a usar o codinome “Sônia”, e se tornou conhecida como parteira e auxiliar médica.

Em 24 de outubro, então com 29 anos, caiu em uma emboscada da Operação Marajoara, protagonizando um dos episódios mais célebres da guerrilha, e que a fez ser chamada de “fanática” por João Baptista Figueiredo, então chefe do Serviço Nacional de Informações (SNI).

Naquele dia, oficiais do exército, comandados por Lício Maciel e Major Curió, estavam no encalço de guerrilheiros quando encontraram Sônia molhando os pés num riacho próximo, na Grota da Borracheira, entre Marabá e Xambioá. Ao ser rendida, ela correu para pegar uma arma, mas foi ferida a tiros e caiu no chão. Sem perceber que ela tinha caído sobre o revólver, os militares se aproximaram e pediram seu nome.

“Guerrilheira não tem nome, seu filho da puta, eu luto pela liberdade!”, respondeu, puxando o gatilho sobre Maciel, atingido no rosto e braço, e Curió, alvejado na barriga. Em seguida foi metralhada e morreu no local. Seu corpo desapareceu.

Eugênia pontua que, pela Lei de Anistia, os sobreviventes do Araguaia do lado da população, não ligados aos guerrilheiros, não têm direitos às indenizações do Estado. “Infelizmente a lei abrange apenas as pessoas que lutaram contra a ditadura. [Mas] um fato é certo, eles foram vítimas, ainda que não tenham sido militantes políticos” pondera, considerando que é hora de tentar reverter esse entendimento.

Para a procuradora, o Estado brasileiro tem hoje obrigação de estabelecer um plano de desenvolvimento local, destacando que os resultados do conflito são ainda sentidos na região. “Depois da guerrilha, entendeu-se que a estratégia para combater o pequeno, o pobre, era a estratégia da pistolagem. Então dizem que depois da guerrilha do Araguaia a região ficou extremamente violenta”. Eugênia conta que os próprios camponeses se organizaram em lutas armadas para reagir contra a concentração de terra e outros conflitos ocorreram na região a partir de 1974. Um dos mais conhecidos foi a Guerra dos Perdidos, sufocada pelos grandes posseiros apoiados pelo exército.

Osvaldo Orlando da Costa, o Osvaldão, ex-campeão de boxe pelo Club de Regatas Vasco da Gama, formado em engenharia mecânica pela Universidade de Praga, na Checoslováquia, onde aprendeu técnicas de resistência. Como membro do PCdoB foi obrigado a viver na clandestinidade logo após o golpe militar em 1964. Osvaldão esteve entre os primeiros comunistas a chegar no Araguaia, em 1967, levando instruções do partido para ajudar na implantação da guerrilha. Em 1972, comandou o Destacamento B, do movimento guerrilheiro, numa ofensiva contra a primeira e malsucedidas intervenção militar na região. Ele foi o autor, também, da primeira baixa entre os militares no conflito, matando a tiros o cabo Odílio Cruz Rosa, enquanto tomava banho em um riacho.

Na última e definitiva intervenção militar, em fevereiro de 1974, Osvaldão foi morto com um tiro, dado pelo mateiro e guia dos militares, Arlindo Vieira, o “Piauí”, que surpreendeu o guerrilheiro enquanto descansava.

Durante os anos de convivência na região, Osvaldão impressionou os moradores pelo carisma e a forma como conduzia as missões e transmitia confiança, chegando a ser considerado imortal e capaz de se transformar em pedra, árvore e animal. Depois de morto, os militares alçaram seu corpo em um helicóptero que sobrevoou a região, por várias vezes, como demonstração de força do exército. Seus restos mortais foram abandonados na mata, e nunca mais encontrados.

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A Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos, é um órgão de Estado, presidida hoje pela procuradora Eugênia, e composta por membros de familiares de desaparecidos e mortos, do Ministério da Defesa, da Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados, que deve funcionar junto à Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República. Dessa estrutura foi estabelecido um Grupo de Trabalho Araguaia, ainda no governo Lula, em resposta à uma exigência legal, após o Brasil ter sido condenado pela Justiça do país, e pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, em 2010, pelos crimes cometidos contra civis na Ditadura Militar.  

Eugênia destaca que a constituição do Grupo de Trabalho, que inicialmente chamava-se “Tocantins” passou por vários desafios. 

“Num primeiro momento foram só militares [que faziam a composição do GT]. Depois, com reclamações na justiça de familiares, do Ministério Público, de ONGs internacionais, esse grupo passou a ser composto por órgãos de diversas origens. A última composição do grupo – [quando] passou a se chamar Grupo de Trabalho Araguaia – é de representantes do Ministério da Defesa, do Ministério da Justiça e da anterior Secretaria de Direitos Humanos”.

Com a troca de governo, além da Secretaria de Direitos Humanos do Governo ter sido extinta, ficando como membros apenas Justiça e Defesa, Eugênia destaca que a composição do GT não foi reconstruída.

“A portaria que criava esse grupo para o ano passado, venceu bem durante a troca de governo (…) e o governo atual ainda não validou essa portaria e não nomeou seus integrantes. De modo que durante o ano todo de 2016 não houve nenhuma atividade desse grupo, porque o grupo não existe”.

A Comissão nunca atuou diretamente dentro do Grupo de Trabalho Araguaia, apenas no papel de observadora. Mas, com a desmobilização do GT, decidiu tomar à frente das investigações começando com a audiência pública local. E as primeiras informações colhidas no encontro é de que ainda existem locais, já descartados pelo GT, que merecem mais atenção.

“Em determinado local de Xambioá funcionava a base [militar] de Xambioá que já foi inteira vasculhada pelo Grupo de Trabalho Araguaia. O GT entende que não tem nada mais a ser escavado. [Mas], com base nos depoimentos que nós tivemos lá, [ex-mateiros] insistem que os locais corretos ainda não foram escavados”.

Acompanhe a seguir a íntegra da entrevista com a procuradora.

Luis Nassif – Constituída em 1995, só na semana passada a Comissão de Mortos e Desaparecidos fez a primeira audiência pública em Marabá, aonde teve a guerrilha do Araguaia, o grande embate entre guerrilheiros e forças armadas. A procuradora Eugênia Gonzaga estava lá conduzindo esse trabalho. Por que demorou tanto tempo para essa audiência? ‘

Eugenia Gonzaga – A Comissão sobre mortos foi instituída em 95, e nesse período os mortos e desaparecidos políticos não eram oficialmente reconhecidos como mortos, como vítimas da ditadura. Então, por exemplo, pessoas que haviam desaparecido no Araguaia e em outros conflitos, a família não tinha sequer um atestado de óbito, as esposas não podiam se casar novamente, então era uma situação absurda. Elas também não tinham documentos para entrar na justiça, para fazer aquilo que os advogados chamam de processos de reconhecimento de ausência. E também não seria justo entregar para cada família seguir seu destino individual na justiça. 

Então houve essa grande vitória em 1995 que foi a Lei 9.040 que já trouxe no seu anexo uma lista de mais de 100 vítimas e criou-se a comissão para analisar cada um dos casos que chegassem para dizer se eram ou não vítimas da ditadura. Essas pessoas que fossem assim reconhecidas, as famílias seriam indenizadas e teriam seu atestado de óbito. 

Então, essa comissão se fixou nessa sua finalidade, mas essa finalidade não era única, havia também a necessidade de envidar esforços para a localização dos corpos, é esse segundo objetivo da comissão acabou sendo deixando nenhum segundo plano, porque é muito difícil, é custoso, de comissão não tinha orçamento próprio, é isso se perdurou ao longo das décadas.

Luis Nassif – E esse encontro em Marabá, como foi feito o trabalho prévio?

Eugenia Gonzaga – Marabá tem uma peculiaridade em relação à busca de corpos em todo o Brasil. Marabá, as famílias já entraram, no início dos anos 2000, no poder judiciário pedindo para condenar a União, o Governo Federal, a fazer essas buscas. O governo foi condenado e, em acréscimo à isso, o governo também foi condenado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos também em relação às vítimas do Araguaia a fazer essa busca. Então desde 2010, o governo brasileiro está condenado por decisão judicial a fazer essas buscas. E, ao ser condenado a fazer essas buscas, ele não entregou essa função para a Comissão de Mortos e Desaparecidos Políticos.

Imagine só, cria uma comissão para fazer as buscas, justamente por que os familiares querem ter o controle de tudo isso, querem ter autoridade sobre o tema. O Brasil não dá condições para a Comissão fazer, não dá orçamento, e quando o Brasil é condenado, ao invés de dar estrutura para a comissão fazer essa busca, ele constituiu outro busco pra fazer essa busca no Araguaia.

Luis Nassif – E que grupo é esse?

Eugenia Gonzaga – Esse grupo, no primeiro momento, era o grupo de trabalho Tocantins. Era o governo Lula, que chegou pro então ministro da Defesa, Nelson Jobim, e falou ‘Nelson, resolve isso pra mim’. E foi criado o Grupo de Trabalho Tocantins, dentro do Ministério da Defesa. Houve uma reação muito forte das famílias, do Ministério Público Federal na Época. Eu acompanhava o tema como procuradora da república, cheguei a assinar manifestações, recomendações dizendo que essa forma de cumprir a decisão subtraia as funções da Comissão sobre Mortos e Desaparecidos Políticos, mas o entendimento que vigorou é que a Comissão tem essa atribuição de fazer as buscas, mas não é uma atribuição exclusiva. Então, se esses grupos de trabalho – Grupo de Trabalho Tocantins, que depois foi substituído pelos chamados Grupos de Trabalho Araguaia -, se o governo havia criado esses grupos, a comissão poderia acompanhar esses trabalhos.

Desde então, desde 2010 a Comissão vem exercendo um papel apenas de observadora em relação a esses trabalhos. 

Luis Nassif – Esses grupos constituídos por militares? 

Eugenia Gonzaga – Num primeiro momento foram só militares. Depois, com reclamações na justiça de familiares, do Ministério Público, de ONGs internacionais, esse grupo passou a ser composto por órgãos de diversas origens. A última composição do grupo – [quando] passou a se chamar Grupo de Trabalho Araguaia – é de representantes do Ministério da Defesa, do Ministério da Justiça e da anterior Secretaria de Direitos Humanos, que agora com a troca de governo em maio de 2016, foi extinta e ficou, então, apenas o Ministério da Justiça e o Ministério da Defesa. Porém, com a troca de governo, esse grupo de trabalho não foi reconstituído, a portaria que criava esse grupo para o ano passado, venceu bem durante à troca de governo, e foi editada nova portaria no final do governo Dilma, e o governo atual ainda não validou essa portaria e não nomeou seus integrantes. De modo que durante o ano todo de 2016 não houve nenhuma atividade desse grupo, porque o grupo não existe. ‘

Então a comissão já queria, desde que nós assumimos a presidência, desde 2014, depois 2015, quando finalmente a comissão foi inteira nomeada, porque ela também ficou desmobilizada por muito tempo. Quando eu assumi, dos 7 membros, apenas 3 estavam nomeados. Essa recomposição da comissão aconteceu só em setembro de 2015, e desde então a comissão quer entrar mais ativamente nessas buscas relacionadas ao Araguaia, mas nunca tomou a frente em relação ao Grupo de Trabalho Araguaia. Mas com a desmobilização desse grupo, nós entendemos que não poderíamos mais ficar nesse papel passivo, nós tínhamos que tomar à frente e entendemos que uma primeira providência era ouvir a população local.

Luis Nassif – E deu para levantar muita informação relevante?

Eugenia Gonzaga – Muita informação relevante. Não podemos dizer que são informações totalmente novas, uma denúncia muito frequência era de ex-mateiros, ex-soldados, pessoas que colaboraram, de certo modo, com os enterros dos corpos, com o desaparecimento dos corpos, e eles vinham relatando essas histórias. É, novidade nesses depoimentos, acabou sendo pouca. Acontece que eles dão detalhes que nós achamos que merecem uma investigação maior. Então, por exemplo, todos sabem que em determinado local de Xambioá funcionava a base de Xambioá. Essa base já foi inteira vasculhada pelo Grupo de Trabalho Araguaia. O grupo de trabalho entende que não tem nada mais a ser cavado nessa base.

Com base nos depoimentos que nós tivemos lá, eles insistem que os locais corretos ainda não foram escavados. Então a gente acha que vale a pena dar credibilidade para essas informações, ir até lá com essas pessoas, e continuar aprofundando nessas pesquisas.

Luis Nassif – Os mateiros foram cúmplices ou foram vítimas dessa situação?

Eugenia Gonzaga – Essa é a grande questão. Eles nunca foram indenizados pela Comissão de Anistia, apesar de eles terem feitos pedidos nesse sentido. Por quê? Porque eles se consideram vítimas do Exército, vítimas da Ditadura. Mas a lei que indeniza hoje, no Brasil, as vítimas da ditadura, exige que sejam militantes políticos, pessoas que trabalharam para derrubar o governo vigente. Essas pessoas, ali a gente pode encontrar de tudo, só que em sua maioria, eram camponeses, pessoas da população local que foram, praticamente, obrigados a colaborar com o Exército. Obrigados mesmo, porque eles eram torturados, eles eram tirados de suas casas e não tinham opção, porque para você ter uma ideia, na segunda operação do Exército na região, foram mais de 5 mil soldados, para uma região de 6 mil quilômetros quadrados, para 5 ou 6 municípios pequenos. E para poder ter acesso aos guerrilheiros a estratégia admitida, a Comissão Nacional da Verdade reconhece isso, foi aquilo que o Exército chamou de ‘anular os apoios’, anular os apoios era simplesmente tolher, prender os chefes de família, queimar as roças dos agricultores. Foi utilizado até napalm nessa segunda operação, para poder…

Luis Nassif – Mesmo assim não conseguiram indenização?

Eugenia Gonzaga – Até hoje muito poucos, porque infelizmente existe esse entendimento. Eu acho que é hora de tentar reverter isso com a atual comissão de anistia, ou até eles entrarem com ações autônomas, porque se a Lei de Anistia a anistia, com base na lei, à pessoas que lutaram contra a ditadura, um fato é certo, eles foram vítimas, ainda que não tenham sido militantes políticos.

Luis Nassif – O que aconteceu com a região depois dos embates, do ponto de vista fundiário, da situação dos camponeses?

Eugenia Gonzaga – O pano de fundo da região é sempre a desigualdade social. Toda a região ali é praticamente de terra devolutas: indígenas, posseiros. E, o Incra, que é o órgão na época que deveria fazer esses loteamentos, essa forma agrária, sempre foi um órgão, na época, muito omisso, então havia sempre uma reclamação em relação a esse reconhecimento dos pequenos, dos pobres, sobre a sua terra. E, havia já os grandes posseiros que cooptavam a polícia local. De acordo com os relatos a polícia do Pará já era muito corrupta e voltada para esses posseiros maiores, para esses grileiros de grande quantidade de terra. 

Então essa região, por ser muito afastada, por ser muito carente, por ter sido esquecida, realmente, pelos órgãos oficiais, ela foi escolhida à dedo pelos guerrilheiros. Quem eram eles? Professores, médicos, farmacêuticos, pessoas que foram para lá já com esse intuito de agradar essa população, de acolher, de trazer essa população para o seu lado, e eles foram muito bem-sucedidos nisso, porque eles viveram lá pelo menos três ou quatro anos e eles realmente fizeram uma rede de apoio entre os agricultores, eles ensinavam a plantar…

Luis Nassif – Eles ficaram quanto tempo antes do exército chegar?

Eugenia Gonzaga – Dizem que eles começaram a chegar na região em torno de 67, e oficialmente a guerrilha foi descoberta em 72. 

Luis Nassif – Ah, tiveram tempo então?

Eugenia Gonzaga – Sim, e até 69 eram poucos os guerrilheiros, mas depois de 69, com o AI-5, muita gente fugiu das cidades para ir pro campo, pro Araguaia. E a população gostava deles. Eles eram queridos, porque eles trouxeram esperança, eles ensinavam a plantar, eles trabalhavam juntos. E é por isso que a primeira operação do exército, em 72, foi totalmente fracassada, porque a população não colaborou. E, ao contrário, a população ajudava os guerrilheiros. Então, nessa primeira operação, teve apenas algumas prisões, cerca de meia dúzia de prisão, José Genuíno está entre essas prisões, e teve uma morte, mas do exército. Os guerrilheiros conseguiram matar uma pessoa que se chama Cabo Rosa, muito conhecido. E isso insuflou demais a estratégia da repressão, e as outras operações foram cruéis. 

Mas, depois, respondendo a sua pergunta, a região ficou arrasada. Então de 74 em diante a região ficou totalmente perdida, o que estimulou posseiros de outros locais a irem para lá. E posseiros que, de certa forma, tinham contatos com as pessoas eminentes. Tinham lá, por exemplo, [Major Curió, que foi o responsável pela administração de Serra Pelada, e vários doutores, os oficiais que participaram dessas últimas fazes da guerrilha receberam doação de terras, prédios e grileiros. Então o que a população local diz, é que já havia uma situação conflituosa de desigualdade social, de disputa por terras, uma insatisfação dos pequenos em relação ao Incra, um certo favorecimento. Depois da guerrilha, entendeu-se que a estratégia para combater o pequeno, o pobre, era a estratégia da pistolagem. Então dizem que depois da guerrilha do Araguaia a região ficou extremamente violenta. E, os camponeses, apesar de terem sofrido muitas baixas, centenas deles foram presos, várias pessoas foram torturadas, eles queriam reagir também, eles achavam que também deveriam reagir. Então a partir de 74 tem vários conflitos locais, sendo uma das mais conhecidas a chamada Guerra dos Perdidos, que foram pequenos posseiros pegando em armas contra os grandes posseiros e o Exército.

Luis Nassif – Está registrado na historiografia brasileira? 

Eugenia Gonzaga – Tem na internet. Perdido era um município, e Guerra dos Perdidos tem a ver, porque esse era um dos municípios da região. Mas é muito pouco registrado. Até a Guerrilha do Araguaia não é registrada nos livros oficiais.

Luis Nassif – E o que que a comissão pretende para recuperar a história?

Eugenia Gonzaga – A justiça de transição, que é o tema que a gente trabalha o que é? As medidas necessárias para você fazer uma transição entre um regime ditatorial para um regime democrático. Ela envolve indenizações. Então no Brasil a parte de indenizações foi muito bem-feita, mas apenas para os militantes políticos, e nós achamos que essa população também merece um olhar. Essa indenização não precisa ser apenas individual, ela pode ser coletiva. Então acho que tem que ser identificado o que é que poderia favorecer essa região.

Luis Nassif – Um plano de desenvolvimento?

Eugenia Gonzaga – Claro, como uma forma de indenização coletiva, porque a região ficou realmente arrasada depois de tudo isso. Fora uma indenização coletiva, tem as medidas de memória e verdade. Isso que você perguntou: quem sabe disso? Quase ninguém sabe nem da Guerrilha do Araguaia. Eu estive lá pela primeira vez semana passada, peguei um guia no hotel que fala sobre Marabá, traz toda a história. Não fala nada da guerrilha. Isso precisa ser plantado, precisa ser melhor trabalhado. Agora não dá pra comissão fazer tudo isso sozinha. Então, nossa intensão é fazer convênios com as universidades locais, com as escolas, para poder trabalhar esse aspecto da memória.

Luis Nassif – E quais os planos da comissão para o próximo ano?

Eugenia Gonzaga – A comissão, desde que eu assumi em 2014, ela estabeleceu como prioridade a questão das ossadas de Perus, porque essas ossadas estavam exumadas desde 1990, e finalmente, apenas em 2013/2014 é que os órgãos oficiais, prefeitura, governo federal, conseguiram fazer um convênio, com a UNIFESP, e trabalhar na análise de caixa, por caixa. São 1.049 caixas de ossadas. E a comissão é que coordena esses trabalhos. Então eu digo que 2014, 2015, agora 2016, foram os anos de resolver essa questão de Perus. Já tem a maioria das caixas analisadas, em torno de 600, e agora já foi feito também o acordo, o convênio, com um laboratório no exterior, para fazer os exames de DNA. Tudo isso é muito custoso, é muito caro, e finalmente a comissão teve alguma estrutura e orçamento pra fazer isso, só Perus. E agora, em 2016, nós conseguimos abrir caminhões para que a comissão tivesse orçamento para poder abrir outras frentes, e nós estabelecemos agora que a prioridade é Araguaia. Então, 2017, a partir dessa audiência pública, nós pretendemos estabelecer os convênios necessários na região para voltar a ouvir pessoas, ouvir as famílias, de acordo com o protocolo internacional de abordagem de desaparecidos políticos, ou de desaparecidos, porque não é simplesmente um tema de chegar e conversar com a família, você tem que ter toda uma tecnologia, com cuidado nessa abordagem. Tem que fazer a coleta de DNA dessas pessoas, porque o banco de DNA dessas ossadas do Araguaia não está completo. Já tem algumas ossadas coletadas por esses grupos de trabalho anterior que precisam ser aprofundados nesses exames, dar prosseguimento nas investigações, e atuar na região pra medidas de memória e verdade, se possível com desapropriação de imóveis, como, por exemplo, a casa Azul que eu visitei, continua até hoje lá como era…

Luis Nassif – Um local de prisão?

Eugenia Gonzaga – Era um local de prisão. A fachada era de um prédio do DNER, mas todo mundo sabia que o DNER não usava, eram oficiais do exército que tinham lá uma base clandestina, porque não era reconhecida como base e, de acordo com os relatos, todo mundo que era capturado vivo era levado pra lá. Porque muitos guerrilheiros eram mortos já na selva. E esses que eram levados pra lá eram torturados, até conseguir tirar deles alguma informação. Há relatos de que teriam pessoas ainda enterradas lá, e nós fomos lá e ainda tem cômodos com grade, a casa só foi pintada de verde, mas parece que continua bastante idêntica. Então acho que seria muito interessante conseguir também uma desapropriação de imóveis desse tipo. 

 

 

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