Comissão Interamericana critica violações contra indígenas no Brasil

Em relatório, CIDH manifesta profunda preocupação com marco temporal, que vem sendo utilizada em clara violação aos direitos originários dos povos indígenas

Visita da comitiva da CIDH à Terra Indígena Guyraroka, no Mato Grosso do Sul, em 2018. Foto: Christian Braga/Farpa/CIDH

CIDH faz recomendações ao Brasil por violações contra povos indígenas e critica marco temporal

Assessoria Jurídica do Cimi analisa relatório da CIDH “Situação dos direitos humanos no Brasil”, publicado em março de 2021, com enfoque na realidade indígena

Da CIMI

A Comissão Interamericana de Direitos Humanos – CIDH – órgão principal e autônomo da Organização dos Estados Americanos – OEA – e da Convenção Americana de Direitos Humanos, publicou em 5 (cinco) de março de 2021[1] o relatório intitulado “Situação dos Direitos Humanos no Brasil”[2] com base na visita realizada ao país no período de 5 a 12 de novembro de 2018 em cumprimento a sua função de consultora e observadora da situação dos direitos humanos nas Américas. Trata-se de um importante marco da defesa dos direitos humanos no Brasil, já que a última visita da Corte ao país foi realizada há 20 anos.

Apesar do tempo transcorrido, as realidades tratadas no Relatório continuam latentes no Brasil e as desigualdades cada vez mais intensificadas com a pandemia da COVID-19. Por isso, desde já, destacamos a preocupação da CIDH acerca da não suspensão definitiva da tese do marco temporal no Brasil e da garantia do acesso à justiça aos povos indígenas – o que repercutirá diretamente no julgamento da comunidade de Guyraroká no Mato Grosso do Sul, que tem julgamento pautado para hoje (26/03/21).

O relatório faz 150 menções à palavra “indígena”, com tópico especial “3. Povos indígenas”, inserido no Capítulo 2, o qual explora entre os pontos 54 e 86 diversas temáticas relacionadas à realidade dos povos indígenas no Brasil, tais como: os dados populacionais e diversidade de povos e línguas indígenas, legislações, aumento das violências e ameaças, aumento das invasões dos territórios indígenas, dificuldade de titulação e proteção dos territórios, revisão das políticas indigenistas e ambientais no país, as quase 100 propostas legislativas que tramitam no Congresso Nacional em detrimento dos direitos indígenas[3], o enfraquecimento institucional da FUNAI – Fundação Nacional do Índio – e das políticas e instituições de licenciamento ambiental, a precariedade das políticas de saúde indígenas, dentre outros.

A CIDH externou profunda preocupação em relação à tese inconstitucional do marco temporal, que vem sendo utilizada em clara violação aos direitos originários dos povos indígenas

Povo Xukuru desce a Serra do Ororubá, em celebração que lembra o assassinato do cacique Xikão Xukuru. O Estado brasileiro foi condenado por violações contra o povo. Foto: Renato Santana/Cimi

Povo Xukuru desce a Serra do Ororubá, em celebração que lembra o assassinato do cacique Xikão Xukuru. O Estado brasileiro foi condenado por violações contra o povo. Foto: Renato Santana/Cimi

Na seara do respeito aos direitos originários dos povos indígenas à suas terras, a Comissão reiterou em seu relatório o que fora determinado por sentença publicada há mais de três anos, quando o Estado brasileiro foi condenado na Corte Interamericana de Direitos Humanos no caso do povo Xucuru e seus membros vs. Brasil[4], no sentido de que a “ incerteza sobre os limites dos direitos de propriedade no contexto de extensão territorial gera, por consequência, a insegurança sobre até que ponto os povos originários podem livremente usar e usufruir dos seus respectivos bens”.

Em continuação, a CIDH externou profunda preocupação em relação à tese inconstitucional do marco temporal, que vem sendo utilizada em clara violação aos direitos originários dos povos indígenas sobre suas terras. Assim, relatou que apesar da decisão liminar do Recurso Extraordinário 1.017.365/SC[5], este ainda aguarda julgamento definitivo pelo STF e, por essa razão, a decisão ainda pode ser revertida. Ressalta também a existência de diversas outras investidas do executivo e do legislativo nesse mesmo sentido. Vejamos trecho a seguir:

66. No entender da CIDH, a tese do marco temporal desconsidera os inúmeros casos nos quais povos indígenas haviam sido violentamente expulsos dos territórios que ocupavam tradicionalmente e, apenas por essa razão, não o ocupavam em 1988. Nesse sentido, a Comissão considera a tese como contrária às normas e padrões internacionais e interamericanos de direitos humanos, especialmente a Convenção Americana sobre os Direitos Humanos e a Declaração Americana sobre os Direitos dos Povos Indígenas.

67. Nesse sentido, a CIDH alerta para o fato de que a aplicação da tese do Marco Temporal potencialmente afetará 748 processos de demarcação administrativa em andamento no país, uma vez que a FUNAI estaria impedida de avançar com esses processos por orientação de sua própria consultoria jurídica. Ademais, a AGU poderia não recorrer de decisões nas quais o juízo de primeira instância anule a demarcação de terras após verificar a ausência de ocupação indígena na área em 1988. Tais casos seriam impedidos de serem levados a instâncias superiores. A Comissão também registra que a tese do Marco Temporal foi aplicada em várias decisões judiciais adotadas pelos tribunais regionais federais, ensejando o cancelamento dos processos de demarcação das terras Limão Verde, Buritim do povo Terena e Guyraroká do povo Guarani-Kaiowá, todas no Mato Grosso do Sul.

68. Sobre isso, no período de sua estada no Brasil, a Comissão visitou a terra indígena de Guyraroká, população para a qual o Supremo Tribunal Federal (STF) aplicou a tese do marco temporal e anulou processos de demarcação já iniciados por meio do relatório de identificação e delimitação que havia sido publicado em 25 de novembro de 2004. A Comissão observou que a comunidade ainda permanece fora da maior parte de seu território, ocupando atualmente menos de 5% dos 11.401 hectares identificados. A CIDH também foi informada de que, como resultado da aplicação do marco temporal, a comunidade corre o risco iminente de ser despejada.

Também chamou especial atenção sobre a necessidade do direito de consulta livre, prévia e informada, devendo ser interpretado de maneira ampla sempre que afetar o modo de vida das comunidades. Garantindo para tanto a participação destas comunidades na formulação de políticas que lhes afetem. Citou diversos casos de violação deste direito como o de Belo Monte, Teles Pires e outras PCHs, bem como casos de mineração.

Os temas destacados pela CIDH são objetos do julgamento iniciado nesta sexta-feira (26/03) no Supremo Tribunal Federal, no caso da Terra Indígena Guyraroká

Em Altamira, no Pará, a CIDH visitou a aldeia Muratu, na Terra Indígena Paquiçamba. Foto: CIDH/divulgação

Em Altamira, no Pará, a CIDH visitou a aldeia Muratu, na Terra Indígena Paquiçamba. Foto: CIDH/divulgação

Por fim, salientou ainda a necessidade de modificar leis que impossibilitem a consulta e parabenizou a iniciativa dos povos na elaboração de protocolos de consulta próprios: “Ao mesmo tempo, a Comissão parabeniza as iniciativas dos povos e comunidades indígenas na elaboração de protocolos autônomos de consulta e consentimento. Tais instrumentos constituem um exercício legítimo do direito dos povos indígenas de participar dos processos consultivos de acordo com suas próprias diretrizes culturais”.

Especificamente em relação aos povos indígenas e quilombolas, a Comissão concluiu o relatório com 12 (doze) recomendações ao Estado brasileiro, são elas:

“Povos indígenas e comunidades tradicionais quilombolas

20. Fortalecer as capacidades institucionais dos órgãos responsáveis pelo desenvolvimento de políticas sociais e territoriais relacionadas aos povos indígenas e povos quilombolas, incluindo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) e a Fundação Nacional do Índio (FUNAI), incluindo a dotação de recursos e a capacidade de execução financeira.

21. Incorporar uma abordagem intercultural às políticas públicas de desenvolvimento que envolva o reconhecimento e a incorporação de planos de desenvolvimento econômico e social adotados pelos povos indígenas em seus respectivos territórios ancestrais.

22. Adotar as medidas legislativas, administrativas ou outras necessárias para aplicar, dentro de um prazo razoável, à consulta para obter o consentimento livre, prévio e informado dos povos indígenas e comunidades tribais quilombolas sobre políticas, projetos e ações, incluindo projetos de aproveitamento de recursos naturais que os impactem, de acordo com os padrões internacionais de direitos humanos e com a plena participação dos povos e comunidades.

23. Revisar os regulamentos relativos à autorização de licenças ambientais, de forma a garantir que o Estado cumpra as obrigações internacionais de consulta aos povos indígenas e quilombolas para obter seu consentimento livre, prévio e informado antes de adotar medidas que possam afetar seus direitos.

24. Adotar todas as medidas necessárias para implementar ou fortalecer os sistemas de supervisão e controle das atividades de extração, exploração e desenvolvimento de maneira consistente com as obrigações internacionais de direitos humanos.

25. Garantir o acesso à justiça e a reparação às violações dos direitos humanos dos povos indígenas e quilombolas causadas no contexto das atividades extrativistas, exploração e aproveitamento dos recursos naturais.

26. Investigar, sancionar e reparar as ameaças, ataques e violência contra membros dos povos indígenas e quilombolas causados por agentes estatais ou privados em decorrência de atividades de defesa ambiental ou em outros contextos, incluindo o caso do “Massacre de Caarapó” e outros casos mencionados neste Relatório.

27. Tomar medidas decisivas contra a impunidade por violações de direitos humanos cometidas no contexto de negócios ou atividades ilegais contra povos indígenas e quilombolas, por meio de investigações exaustivas e independentes, obtendo a sanção de seus autores materiais e intelectuais e reparando o âmbito individual e coletivo das vítimas.

28. Adotar as medidas necessárias para revisar e modificar disposições, ordens judiciais e diretrizes (incluindo a tese de Marco Temporal e Suspensão da Segurança) que sejam incompatíveis com as normas e obrigações internacionais relativas aos direitos dos povos indígenas sobre suas terras, territórios, recursos naturais e outros direitos humanos dos povos indígenas.

29. Agilizar a finalização de pedidos de delimitação, demarcação e titulação de terras e territórios tradicionais de povos indígenas e tribais de acordo com as normas internacionais de direitos humanos aplicáveis.

30. Em consulta e coordenação com os povos indígenas e tribais, garantir o direito à saúde a partir do enfoque intercultural, de gênero e de solidariedade intergeracional, levando em consideração as práticas de cura e os medicamentos tradicionais.

31. Fortalecer as medidas de proteção dos povos indígenas em isolamento voluntário e em contato inicial, procurando proteger sua saúde, modos de vida e territórios. Por meio do princípio da precaução, desenvolver políticas públicas e ações para garantir a sobrevivência desses povos.”

Os temas destacados pela CIDH são objetos do julgamento iniciado nesta sexta-feira (26/03) no Supremo Tribunal Federal. Trata-se do caso da Terra Indígena Guyraroká na Ação Rescisória (AR) 2686, por meio da qual os povos Guarani e Kaiowá buscam reverter a decisão de 2014 da Segunda Turma do STF que anulou a respectiva demarcação com base na tese do “marco temporal” sem que os indígenas fossem ouvidos no processo[6]. Revela-se, portanto, a urgência do tema e a necessidade de ser reconhecido e garantido aos povos indígenas o acesso à Justiça, bem como declarada inconstitucional a tese do marco temporal de uma vez por todas.

O Relatório considerou que “um dos principais problemas associados às questões de defesa territorial e ambiental são intimidações, ameaças e ataques contra defensores, líderes e comunidades indígenas que defendem seu território”

Indígenas falam à comissão da CIDH, durante visita à aldeia Açaizal, no território Munduruku do Planalto, em Santarém (PA). Foto: CIDH/divulgação

Indígenas falam à comissão da CIDH, durante visita à aldeia Açaizal, no território Munduruku do Planalto, em Santarém (PA). Foto: CIDH/divulgação

A Comissão ainda mencionou diversos casos de extrema violência contra os povos indígenas, como o Massacre de Caarapó e outros do Mato Grosso do Sul.

O Relatório considerou ainda que “um dos principais problemas associados às questões de defesa territorial e ambiental são intimidações, ameaças e ataques contra defensores, líderes e comunidades indígenas que defendem seu território”.

Importa notar que a situação de vulnerabilidade dos povos indígenas faz com que suas questões sejam tratadas pela Comissão em diversas outras temáticas específicas, a mencionar: o aumento da violência contra defensores e defensoras de direitos humanos e do meio ambiente; mulheres; pessoas vítimas de trabalho forçado ou em condição análoga à escravidão; pessoas migrantes venezuelanas; xenofobia; segurança cidadã; graves violações de direitos humanos cometidas no marco da ditadura cívico-militar; instituições de democracia participativa;  instituições e políticas de proteção e defesa dos direitos humanos; políticas de saúde, desigualdades e grupos em situação de risco.


[1]5 de março de 2021, Washington, DC. Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH). A CIDH publica seu relatório sobre a situação dos direitos humanos no Brasil e destaca os impactos dos processos históricos de discriminação e desigualdade estrutural no país. Disponível em: http://www.oas.org/pt/cidh/jsForm/?File=/pt/cidh/prensa/notas/2021/050.asp.

[2]Inter-American Commission on Human Rights. Situação dos direitos humanos no Brasil : Aprovado pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos em 12 de fevereiro de 2021 / Comissão Interamericana de Direitos Humanos.

[3]A exemplo do PL 191/2020 de Ementa: “Regulamenta o § 1º do art. 176 e o § 3º do art. 231 da Constituição para estabelecer as condições específicas para a realização da pesquisa e da lavra de recursos minerais e hidrocarbonetos e para o aproveitamento de recursos hídricos para geração de energia elétrica em terras indígenas e institui a indenização pela restrição do usufruto de terras indígenas. Dados Complementares: Altera as Leis nº 6.001, de 1973 e 11.460, de 2007.” Disponível em: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2236765. Acesso em: 25/03/2021.

[4]Corte IDH. Povo Indígena Xucuru e seus membros Vs. Brasil. Exceções Preliminares, Mérito, Reparações e Custas. Sentença de 5 de fevereiro da Corte Interamericana de Direitos Humanos. Disponível em: https://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_346_por.pdf

[5]Conselho Indigenista Missionário. Direitos Indígenas – repercussão geral –. Disponível em: https://cimi.org.br/repercussaogeral/

[6]TIAGO MIOTTO/CIMI. Julgamento da Terra Indígena Guyraroka adiado no STF: “Vamos respirar e continuar essa luta”. Disponível em: https://cimi.org.br/2019/06/julgamento-da-terra-indigena-guyraroka-adiado-no-stf-vamos-respirar-e-continuar-essa-luta/

Redação

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