Condenada à morte, sem processo ou direito de defesa, por Fábio de Oliveira Ribeiro

No Brasil, se o Estado colocar em risco a vida do cidadão ele pode exigir indenização por danos morais. Nos EUA não é diferente.

Condenada à morte, sem processo ou direito de defesa

por Fábio de Oliveira Ribeiro

No último dia de 2020, muito irritada uma norte-americana que eu conheço postou a seguinte mensagem no Facebook:

“For the first time in my life, I got summoned for jury duty. (Insert LONG LOLOLOL here!). The letter stated that they had stopped having in-person court appearances, but they now feel it’s safe to resume. WTAF????  What planet are these morons from?  Sorry, y’all, but my health is so bad I can barely sit at the computer to look at Facebook. No way in hell would I be able to sit through a trial. And no way in hell am I going to risk getting COVID.”

Tradução:

“Pela primeira vez na minha vida, fui intimada para cumprir minha obrigação de ser jurada. (Risos) A intimação afirma que eles haviam parado de realizar atos presenciais no Tribunal, mas agora eles sentem que é seguro voltar a fazer isso. (Xingamento) De que planeta aqueles idiotas são? Desculpem-me todos, mas minha saúde está tão ruim que eu mal consigo sentar ao computador para olhar o Facebook. Em nenhuma hipótese eu vou estar em condições de presenciar um julgamento. Em nenhuma hipótese eu vou correr o risco de pegar COVID.”

Minha colega de Facebook tem netos, portanto, tem uma idade relativamente avançada. Ela mora em Hot Springs, Arkansas, cidade com pouco mais de 37 mil habitantes. A letalidade do COVID-19 nos EUA tem sido imensa: 342.577 pessoas morreram até a data de hoje. Em Arkansas a pandemia já causou 3.647 mortes, 55 das quais em Hot Springs https://usafacts.org/visualizations/coronavirus-covid-19-spread-map/state/arkansas/county/hot-spring-county.

O temor dela é justificável. A segunda onda da pandemia ainda não foi debelada. Além disso, ela é idosa e tem problemas de saúde, dois fatos que a transformam numa vítima em potencial da pandemia.

Nos EUA, ao contrário do que ocorre no Brasil, há uma imensa gama de casos civis e criminais que são julgados pelo júri. Em Arkansas os procedimentos do júri são os seguintes:

  • Opening statements (plaintiff or state goes first)

  • The plaintiff or state puts on its case first

  • The defense puts on its case. In a criminal trial, it is not unusual if the defense does not call any witnesses or that the defendant does not testify.

  • The plaintiff or state may rebut the defense’s case.

  • The judge will read the jury instructions to you. Sometimes they are read after closing arguments.

  • Closing arguments. The state or plaintiff will argue first; then the defendant; and then the state or plaintiff may make a final statement.

  • The case is submitted to the jury for deliberations.

  • In a civil case, you will determine if the defendant is liable. If you decide a wrong was committed and the plaintiff was damaged, you will decide the appropriate amount of money to award the plaintiff. In a criminal case, if you find the defendant guilty, there will be a second phase of the trial where you will decide what the sentence should be. The judge will then decide whether or not to accept the jury’s recommended sentence. The sentencing phase is sometimes like another trial, in that witnesses are called and the attorneys make additional arguments

https://www.arcourts.gov/jury/guide/trial-procedure

Tradução:

  • Declarações de abertura (demandante ou estado vai primeiro)

  • O demandante ou estado apresenta seu caso primeiro

  • A defesa apresenta seu caso. Em um julgamento criminal, não é incomum que a defesa não convoque nenhuma testemunha ou que o réu não testemunhe.

  • O reclamante ou estado pode refutar o caso da defesa.

  • O juiz irá ler as instruções do júri para você. Às vezes, eles são lidos após os argumentos finais.

  • Argumentos finais. O estado ou demandante argumentará primeiro; depois o réu; e então o estado ou demandante pode fazer uma declaração final.

  • O caso é submetido a júri para deliberação.

  • Em um caso civil, você determinará se o réu é responsável. Se você decidir que um erro foi cometido e o querelante foi prejudicado, você decidirá a quantia apropriada de dinheiro para indenizar o querelante. Em um caso criminal, se você considerar o réu culpado, haverá uma segunda fase do julgamento, onde você decidirá qual deve ser a sentença. O juiz decidirá então se aceita ou não a sentença recomendada pelo júri. A fase de condenação às vezes é como outro julgamento, em que as testemunhas são chamadas e os advogados apresentam argumentos adicionais

Dependendo da complexidade, um julgamento pode demorar um dia inteiro ou vários dias. Minha amiga não especificou qual a natureza do caso para o qual ela foi convocada a atuar como jurada. Tentei convencê-la a me enviar uma imagem da intimação que ela recebeu com os dados dela borrados, mas ela desconversou.

Os EUA têm 328,2 milhões de habitantes e já vacinou pouco mais de 1 milhão de pessoas. A quantidade de pessoas vacinadas ainda é muito pequena e o efeito multiplicador da vacinação somente se tornará uma realidade quando mais de 75% da população estiver vacinada https://www.uol.com.br/vivabem/noticias/bbc/2020/12/01/covid-19-qual-o-nivel-de-vacinacao-necessario-para-voltarmos-a-vida-normal.htm. A letalidade do vírus continuará sendo uma realidade nos próximos meses. Portanto, a retomada das atividades presenciais do Judiciário norte-americano não pode ser considerada recomendável.

Minha amiga não especificou se foi convocada por um Tribunal estadual ou federal. Todavia, me parece evidente que ela pode se recusar a atuar como jurada. Se a convocação tiver sido feita pela justiça estadual ela pode, em tese, alegar seu péssimo estado de saúde https://www.arcourts.gov/circuit/?q=jury. Se a convocação foi feita por um Tribunal federal ela também pode alegar sua idade avançada https://www.uscourts.gov/services-forms/jury-service/juror-qualifications. Todavia, o caso dela ficaria mais interessante se ela resolvesse desafiar juridicamente a convocação.

No contexto atual, levando-se em conta a vulnerabilidade pessoal dela à pandemia (ela é idosa e tem complicações de saúde), a convocação para participar de atividades presenciais num Tribunal pode ser considerada equivalente a uma sentença de morte imposta sem o devido processo legal. O dano moral resultante da convocação é evidente, pois o Estado obriga o cidadão a correr risco inclusive se escolher não participar (caso em que ele obviamente terá que ir ao Tribunal pessoalmente comunicar sua decisão)

No Brasil, se o Estado colocar em risco a vida do cidadão ele pode exigir indenização por danos morais. Nos EUA não é diferente. Em tese minha amiga poderia acionar o Estado com base no “The Federal Tort Claims Act”  https://en.wikipedia.org/wiki/Federal_Tort_Claims_Act.

A justiça brasileira tem agido de maneira errática durante essa pandemia. O STF entendeu que a vacinação deve ser obrigatória, mas existem juízes estaduais revogando decretos que impõe o fechamento do comércio e suspendendo as regras de distanciamento social para autorizar a realização de festas. Durante a segunda onda da pandemia, decisões judiciais como essas também podem indiretamente condenar pessoas à morte, caso em que o Estado seria inevitavelmente responsável pelo dano decorrente do erro judicial. O problema seria provar a relação de causa (a decisão judicial) e seu efeito colateral (o dano sofrido por alguém).

Fábio de Oliveira Ribeiro

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