Da Rede Brasil Atual
Cova 312 “é uma Comissão da Verdade”, disse a militante Amelinha Teles durante debate de lançamento do livro da jornalista Daniela Arbex em São Paulo. Para Amelinha, que foi presa e torturada na ditadura e assessorou a Comissão da Verdade Rubens Paiva, da Assembleia Legislativa paulista, se houvesse uma Daniela trabalhando em cada um dos casos de mortos e desaparecidos deixados pelo regime todas essas histórias estariam esclarecidas.
O livro recupera a trajetória de Milton Soares de Castro, morto em 1967, aos 26 anos. Um dos militantes capturados na desastrada tentativa de implantação da guerrilha do Caparaó, na divisa entre Minas Gerais e Espírito Santo, o gaúcho foi o único preso político encontrado morto na Penitenciária de Linhares, em Juiz de Fora (MG). O hoje governador de Minas Gerais, Fernando Pimentel (PT), e o atual prefeito de Belo Horizonte, Márcio Lacerda (PSB), estiveram entre os encarcerados em Linhares durante a ditadura.
A versão oficial da morte de Milton apontava suicídio por enforcamento, e o Exército nunca informou à família onde estava o corpo. Numa investigação em 2002 para o jornal Tribuna de Minas, de Juiz de Fora, Daniela localizou a sepultura do jovem – a do título do livro –, o que mudou os registros históricos sobre o caso em publicações como Direito à Memória e à Verdade, da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República. Doze anos depois, a jornalista retomou a investigação e teve acesso em Brasília ao inquérito sobre a morte de Milton, desmontando finalmente a tese de suicídio.
Daniela Arbex, 42 anos, é autora também de Holocausto Brasileiro (assim como Cova 312, da Geração Editorial), um relato das décadas de abandono e violência a que foram submetidas milhares de pessoas no manicômio Colônia, na cidade mineira de Barbacena – estima-se que cerca de 60 mil morreram ali. Lançado em 2013,Holocausto já vendeu mais de 100 mil exemplares e será transformado em documentário da HBO. Em São Paulo, onde participou, em julho, do 10º Congresso Internacional da Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji), a repórter concedeu esta entrevista. Fala sobre seus livros, o futuro do trabalho dos jornalistas e a resistência de boa parte da população em conhecer o que de fato aconteceu na ditadura. “O pior de tudo é não querer saber.”
Sua investigação mudou a história no caso do Milton, e é citada em publicações oficiais sobre os mortos e desaparecidos. Você espera mudanças com o Cova 312, que praticamente comprova o assassinato?
Talvez não. Creio que pode ser corrigida a versão final do relatório da Comissão Nacional da Verdade (CNV), que dá o Milton como desaparecido. É um equívoco histórico que precisa ser corrigido, porque o corpo está lá. Você tem a imagem da necropsia, o cadáver, o local onde foi enterrado e, portanto, tem o corpo. Muito mais do que corrigir versões, o livro faz justiça à memória do Milton. Além disso, pode mostrar ao Brasil que é possível continuar encontrando nossos mortos e desaparecidos políticos. Essa foi uma investigação individual, relativamente simples, e que consegui fazer sem grandes recursos. Creio que há vários Miltons por aí a ser localizados. O Cova mostra o tamanho do abismo entre a nossa história e a população brasileira. É muito grave rejeitar o passado e deixar de querer saber o que aconteceu. Somos talvez o único país da América do Sul que teve uma ditadura em que não há empenho da população em continuar descobrindo seus mortos, e no qual há uma resistência a querer saber. Como podemos não nos interessar pela nossa história recente?
Ter acesso ao inquérito e às fotos da morte do Milton fez toda a diferença em sua investigação, não é?
Só tive acesso 12 anos depois do início da investigação. As fotos fizeram toda a diferença porque eram as provas fundamentais. Eu tinha o local e a documentação do sepultamento, mas não tinha o cadáver. As fotos do cadáver me permitiram provar não só que o Milton realmente foi morto em dependências do Estado, como também que as lesões que ele trazia eram incompatíveis com suicídio. Mais do que isso: um perito da época volta atrás.
Acho que é uma confissão histórica que precisa ser levada em conta: quase 50 anos depois a pessoa diz que estão caracterizadas a asfixia e o enforcamento, mas não o suicídio. Ele só não disse: “O Milton foi assassinado”, porque aí também era demais – e nem precisava. Creio que foi uma grande descoberta fazer uma pessoa daquela época praticamente confessar.
Como você recebe as afirmações da Amelinha Teles, dizendo que o seu livro “é uma Comissão da Verdade” e que com uma Daniela para cada caso todas as histórias estariam esclarecidas?
São superelogios, claro, mas acho que ela exagerou. O livro levanta a versão mais próxima da verdade, e não posso me furtar de dizer que mudou um capítulo da história – de uma pessoa, mas já é importante. Não conseguimos avançar mais porque há famílias altamente mobilizadas e outras completamente desmobilizadas. Precisaríamos ter uma vigilância e uma busca permanente em relação ao tema. Mas o Brasil não tem essa cultura de investigar, de buscar e de questionar, como na Argentina ou no Chile. Simplesmente são aceitas as versões mais esdrúxulas.
As famílias não são um bloco monolítico, há posturas diferentes entre elas, não é?
É verdade, existe muita mágoa e muito sofrimento em relação à ditadura. A própria família do Milton não quis a exumação, o que para mim é um erro. Ao mesmo tempo, entendo o sofrimento de não querer passar por tudo aquilo de novo. O Milton foi enterrado numa cova rasa que a cada cinco anos era revolvida para receber novos corpos. Na cova dele, até 2002, foram enterradas mais sete pessoas. A informação relevante veio depois, com as fotos da necropsia e com a confissão de um envolvido. A exumação nesse caso não fez falta.
Como se pode avançar em relação à questão dos mortos e desaparecidos?
Acho que o Brasil esperava mais do trabalho da CNV. Existia uma expectativa muito grande de que se resolvessem mais casos, o que não aconteceu. Na verdade, isso não desmerece o esforço importante e sério feito pela comissão, mas também mostra que os arquivos do país continuam fechados, porque nem a CNV teve acesso a tudo. Para ter acesso ao inquérito do Milton, tive de pedir autorização ao presidente do Superior Tribunal Militar (STM) e justificar meu pedido. Fiquei à mercê de uma autorização que poderia ser negada. Como isso é possível? Tem de haver um esforço coletivo para abrir esses arquivos. Se não conseguimos acessá-los, como vamos resolver os casos?
Você conta que a editora-executiva do jornal, Denise Gonçalves, mandava você ir “buscar a lua” e, quando conseguia, dizia que “você pode ir além”. Estão faltando esse rigor e essa busca no jornalismo praticado atualmente? Temos apuração de menos e opinião demais?
Acho que sim. No congresso da Abraji, assisti a uma palestra da Fabiana Moraes (repórter especial do Jornal do Commercio, de Recife, e autora do livro O nascimento de Joicy – leia reportagem na edição 107). Ela faz um trabalho maravilhoso, com reportagens incríveis pela ousadia e pelos temas super-controversos e delicados, como transexualidade, e consegue um grande espaço. Ai alguém falou: “Ah, mas o jornal dá esse espaço para ela”. Eu respondi: “Não, isso é fruto do esforço individual da repórter de brigar por esse espaço, de ter sensibilidade, de conseguir convencer o entrevistado a se deixar fotografar em determinadas situações”. Eu sei porque vivo muito isso no jornal. Consegue-se o espaço porque nesse esforço pessoal você traz uma informação que o jornal não tem como dizer que não vai publicar. As dificuldades são grandes em todas as redações, principalmente porque o jornalismo diário é massacrante e sempre falta tempo. Mas também faltam interesse e disposição.
A cena em que você descreve o encontro com a família do Milton em Porto Alegre é forte (na roda de chimarrão, Daniela perguntou aos familiares como eles gostariam que Milton fosse lembrado. O irmão Edelson respondeu: “Como está sendo agora”).
Exatamente. Em 2002, entrevistei a família por telefone, porque o jornal não podia me mandar e eu não tinha dinheiro para ir ao Rio Grande do Sul. Agora foi totalmente diferente, e por isso dediquei um capítulo àquele encontro. Ali foi possível ver e abraçar. A Gessi (irmã de Milton) estava curiosa em relação a mim e eu em relação a ela, e ela disse que eu estava trazendo o Milton comigo. Essas coisas só acontecem estando junto, vendo e conhecendo as pessoas, e compõem a história que você vai contar.
Você menciona a sempre presente argumentação de que determinados temas já são “velhos e batidos”, que ninguém quer mais saber deles e que é preciso trazer um “fato novo”. Você trouxe, mas o livro conta também uma história “velha” pouco conhecida – Linhares foi uma prisão política importantíssima e ainda funciona.
Esse conceito é um erro. Linhares tem uma história paralela incrível e apagada. Existe no nosso imaginário a ideia de que tudo já foi falado sobre a ditadura. Não foi – ou não teríamos uma lista de 434 mortos e desaparecidos políticos no relatório da CNV. Só teremos tudo falado e esclarecido quando todos os corpos tiverem sido localizados e todas as histórias resgatadas. Estamos longe de conhecer a ditadura. A gente não sabe de nada. Acabei de fazer uma matéria sobre o relatório da Comissão Municipal da Verdade em Juiz de Fora. Todo mundo fala que conhece tudo sobre a ditadura em Juiz de Fora porque o golpe partiu de lá e o general Mourão (Olympio Mourão Filho, comandante da 4ª Região Militar e 4ª Divisão de Infantaria) saiu de lá com as tropas. Mas é só isso que a gente sabe!
Se você perguntar a alguém: mas então, o que mais você sabe? “Bom, o general Mourão partiu de lá com as tropas…” E é só. As pessoas não têm ideia do que é ser perseguido, perder familiares e emprego, viver na clandestinidade, mudar de carreira e nunca mais resgatar essas coisas. É um grande equívoco achar que conhecemos essa história. O Cova 312 está me mostrando que as pessoas não só não sabem como resistem a saber. E isso é uma pena, porque quem vence a resistência de conhecer esse período se apaixona e conhece um Brasil e personagens que a história oficial não contemplou. O pior de tudo é não querer saber.
Como você avalia a crise do jornalismo, ou do modelo de negócios da imprensa?
Não sei onde essa crise vai dar e não sei se daqui a 15 anos vamos ter jornal impresso como hoje. Tenho certeza absoluta, e saí do congresso da Abraji com ela, de que temos que zelar pelo conteúdo, em que plataforma for. A questão não é discutir se vai morrer o jornal impresso ou coisa parecida. A questão é discutir se estamos fazendo jornalismo de qualidade, onde quer que estejamos. Temos de achar um caminho, porque o jornalismo não vai morrer – a democracia precisa dele. O foco da nossa preocupação tem de ser o risco de deixarmos de fazer jornalismo de qualidade, porque aí a sociedade estará lascada.
Seu livro anterior, Holocausto Brasileiro, teve vários desdobramentos: você viajou o Brasil inteiro falando dele, houve o lançamento em Portugal e agora está sendo produzido um documentário a respeito. Como anda esse processo?
Foram 40 dias de filmagem de um documentário para a HBO, que deve ir ao ar no ano que vem. Vai ser um trabalho surpreendente até para o leitor do Holocausto porque há personagens novos e histórias que eu conheci depois do livro. O que me orgulha muito é que o Holocausto conseguiu colocar no centro do debate público a questão da saúde mental, que estava muito periférica. O livro interferiu inclusive na formação dos novos psicólogos e psiquiatras, e mesmo de quem já está no mercado de trabalho. Várias faculdades, de várias especialidades, adotaram o livro, e isso é maravilhoso. O maior presente que o livro pôde me trazer é ver essa história sendo lida e sendo útil.
Você pode fazer o Jornal GGN ser cada vez melhor.
Apoie e faça parte desta caminhada para que ele se torne um veículo cada vez mais respeitado e forte.