Cracolândia: os traficantes não são o problema, por Gustavo Roberto Costa

Foto: Mastrangelo Reino/A2img

via Justificando

Cracolândia: os traficantes não são o problema

por Gustavo Roberto Costa

Vez por outra, quando é retomada a discussão sobre a região do centro de São Paulo conhecida como “Cracolândia”, a imprensa volta a dar destaque ao tema, tão tormentoso e complexo. A população vê-se envolvida com a questão, fazendo com que soluções midiáticas e espetaculares sejam postas em prática, como se um problema de décadas pudesse ser resolvido em alguns dias.

A violência policial – a mais ineficiente e contrária aos direitos humanos –, na maior parte das vezes, é a primeira opção dos administradores públicos, ávidos por ganhos políticos. A sociedade, por seu turno, mantém-se desinformada pela grande mídia (arvorada dolosamente na condição de porta voz da “opinião pública”).

A abordagem adotada é um “show” de ilegalidades: retirada de barracas e de cobertores (únicos escudos contra o frio), violência estatal, internação compulsória[1] (excepcionalíssima e comprovadamente ineficiente para a esmagadora maioria dos casos), demolição de imóveis (com pessoas dentro), entre outras arbitrariedades, já se tornaram comuns no dia a dia de quem acompanha o caso.

Em interessante reportagem do Le Monde Diplomatique Brasil, o jornalista Daniel Mello, após passar alguns meses em vigília na “Cracolândia”, mostra que, em verdade, o crack é presença mínima entre os frequentadores do local, por mais paradoxal que possa parecer.

Vendedores de entulhos, catadores de latas, moradores de rua, ex-presidiários, sem-família, sem-teto, sem-emprego, sem-renda e sem-rosto formam o exército de reserva que ali se agrupa. São os excluídos, disfuncionais para os mercados de trabalho e de consumo, para quem não há outra saída que não se reunir para enfrentar as dificuldades que se apresentam no dia a dia das geladas ruas da grande metrópole.

Antes de supostos viciados e de corpos sem alma (como erroneamente se imagina), são seres humanos a procura de dignidade. O crack possivelmente seja o menor dos problemas – embora seja um enorme problema.

Quase toda a cobertura dos acontecimentos feita pela mídia hegemônica tem um ponto em comum: a perniciosa, criminosa e aproveitadora ação dos “traficantes de drogas”. Responsáveis pela desgraça humana que lá se instalou, pensam somente em seus lucros, à custa da vida e da saúde do próximo. Praticam, segundo parte dos operadores do (senso comum teórico do) Direito, um “espúrio comércio”.

Em suma, são a representação do mal, e devem ser caçados e rapidamente retirados de circulação. Caso haja uma “troca de tiros” entre a polícia e esses “bandidos”, se algum (ou alguns) deles morrer, não haverá problema. Menos um para trazer o maldito vício aos nossos filhos e netos.

Mas uma observação minimamente acurada demonstra que essa conclusão é falsa e (para dizer o mínimo) equivocada. Como dito acima, estudos sérios – como o livro “Um preço muito alto”, do psiquiatra norte-americano Carl Hart – mostram que a vulnerabilidade é a principal circunstância que leva alguém a viver em lugares como a “Cracolândia”, e não as drogas em si.

E num ambiente de completo abandono social, faz-se necessária a luta pela sobrevivência.

Desta forma, o perfil dos “traficantes” do local não destoa em nada do dos usuários. Também são sujeitos pobres, muitos são negros, com um passado de violência e opressão. Basta o acompanhamento de uma semana em qualquer Vara Criminal do Estado (e provavelmente do Brasil) para se chegar a essa conclusão. Contam-se nos dedos de uma mão – quando há – os comerciantes de drogas que não venham das classes mais subalternas (e esquecidas) da sociedade – talvez isso explique tamanha repulsa a tais pessoas, mais ainda do que as atividades que exercem.

É claro que há aqueles que lucram – e muito – com a circulação e venda de drogas ilícitas. Mas certamente não estão no meio da “Cracolândia”, vendendo drogas para miseráveis que mal têm dinheiro para comer. Para os grandes traficantes (responsáveis pela produção, transporte e refino de substâncias ilegais) é um péssimo negócio vender drogas em locais como aquele. A tarefa sobra para os que precisam sobreviver e, muitas vezes, sustentar seu vício.

Prender cinquenta, sessenta, setenta ou duzentos supostos traficantes que estejam no bairro da Luz (ou em qualquer outro) somente fará com que outros sejam colocados em seus lugares assim que a polícia virar as costas.

E os presos serão jogados nas extensões da senzala (digo, nas cadeias brasileiras) sem amparo médico, social, psicológico ou familiar, tornando certa a reincidência e a manutenção do seu vício.

Assim, os traficantes não são os responsáveis pela desgraça dos viciados; são tão vítimas quanto. Vítimas de um sistema competitivo, excludente, nada solidário, de concentração extrema de renda, de privilégios, de muitas oportunidades para poucos e poucas para muitos. Um sistema que tem interesse na manutenção de milhões de desempregados, para que os salários sejam puxados cada vez mais para baixo (você está infeliz com seu trabalho? Há uma fila de gente para ganhar a metade).

Não é possível que ainda se aposte na repressão para vencer as drogas. A história existe para aprendermos com os erros do passado. A “guerra às drogas” é uma guerra contra os pobres. Toda e qualquer solução passa necessariamente pela descriminalização e consequente regulamentação da produção, comércio e consumo de todas as drogas, sem exceção. Só assim o problema poderá ter a atenção devida das áreas realmente aptas a tanto: saúde, assistência social, psicologia etc.

Mas retirar os indesejáveis das ruas, para deixar a “cidade linda” – ainda que seja ao preço da desgraça alheia –, parece ser mais interessante.

Gustavo Roberto Costa é Promotor de Justiça em São Paulo. Membro fundador do Coletivo por um Ministério Público Transformador e membro do Movimento LEAP-Brasil – Agentes da Lei contra a Proibição.


[1] Felizmente barrada pela ação rápida, corajosa e técnica da Promotoria de Justiça de Direitos Humanos da capital paulista.

Publicado também no Justificando
 
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6 Comentários

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  1. cracolândia….

    A Esquerda Tupiniquim além de burra é óbvia e previsível. Como os presos políticos de esquerda fizeram nos anos de 1950, ensinando a presos comuns, taticas de guerrilha, quando encarcerados no Presidio da Ilha Grande/RJ durante o Governo Vargas, surgindo assim o Comando Vermelho ( e isto é reconhecido e histórico), permitiram a mesma estratégia na formação de facções criminosas em presídios no estado de SP. E estas facções comandam mais que o medíocre e frouxo governo tucano de Alckmin ( alguém que tem a alcunha de Picolé de Chuchu. Pode haver algo mais sonso que Picolè de Chuchu?) Acabaram por nos tornar iguais ao RJ. Combatendo miseráveis, favelados e doentes enquanto o Tráfico passeia de helicóptero ou avião, a partir da fazenda de algum Congressista brasileiro. A incapacidade governamental em SP é inexplicável. A Cracolêndia fica embaixo das janelas das maiores Delegacias Seccionais e cercada pelos Batalhões da Policia Militar. Embaixo da sala do Secretário de Segurança do Estado. É a prova mais cabal da falência do Estado Brasileiro, principalmente do Governo do Estado de São Paulo. 

  2. Traficantes irresponsáveis

    “Assim, os traficantes não são os responsáveis pela desgraça dos viciados” conclui o articulista.

    “São tão vítimas quanto”  … nos seus aviõezinhos cheios de pasta de coca, cheios de pó, na tomada de bairros inteiros como cidadelas, nas suas armas exclusivas, nos seus julgamentos sumários, nos seus assassinatos por dívida de tráfico, na manutenção de lixos humanos mendigantes para o consumo em benefício do tráfico, na fritura de inimigos e  repórteres em pneus ardentes, no seu desafio às leis.

    Em qual parte minha inteligência falhou que ainda não conseguiu  perceber  isso.

    Respirarei fundo e exclamarei:

    AAFFF!!!!

    Pelamordedeus!

    Se, e somente se,

    eu não tivesse perdido alguém da família para as drogas,

    se minha família não fosse composta dos filhos ilegítimos provindos das drogas,

    se na minha rua não tivesse nenhum drogado morrendo tuberculoso e aidético toda noite,

    se nenhum amigo meu tivesse morrido por causa de drogas

    se nenhum conhecido meu tivesse vendido casa, herança, deixado filhos e família,

    para ir morar na rua somente para poder consumir drogas mais livremente,

    Se tudo isso eu já não tivesse visto ou vivido

    Ainda assim, eu duvidaria dessa afirmação do nosso bravo comentarista.

     

    1. Colega, assim que terminei de

      Colega, assim que terminei de ler o texto, pensei em escrever justamente para aletar sobre a possibilidade do mesmo não ser devidamente compreendido. Acho que é justamente esta incompreensão que está expressa em seu comentário. 

      Eu concordo, sem sombra de dúvida com o texto e com se comentário. Para mim são complementares. Isto porque, o autor não está se referindo ao tpo de gente que você menciona. Moro na periferia e posso corroborar tudo o que você disse. Fiquei satisfeto com a análise presente neste artigo porque é de se supor que as pessoas que estão la vendendo pedra não são as msmas que aterrorizam nossos bairros na periferia, como o autor bem coloca. Estão mais para aviõezinhos do tráfico, feito estes que perambulam pelas noites, correndo todos os riscos pra vender um bocado e sustentar o vício. O traficante mesmo, ao qual você se referiu com todos o seus tributos, não faz esse serviço. Fica escondido em bairros como  meu ou o seu, que recebe uma epécie de bandeira branca da polícia corrupta local e que por isto, feudalizam toda a região e agem da maneira mais despótica possível. Aqui na zona leste de São Paulo, funciona um cemitério clandestino praticamente ao lado de uma escola estadual (também controlada pelo PCC)… A polícia teve de desenterrar uns corpos um dia desses (teve até matéria no SPTV  nos demais policialescos). Quem estava por perto, pode ouvir da boca de policiais aos peritos que chegaram para não revolver muito a terra senão não sariam de lá naquele dia. Além do que, a imprensa subserviente foi proibida de se aproximar do local e obedeceu dreitinho. 

      O que posso acrescentar ao seu comentário ou ao texto em questão é que não só os traficantes mantêm distância da cracolândia como,com ceteza, tem agente público de segurança ganhando o dele por lá. Eles é que são os verdadeiros contoladores do crime oganzado e nada fazem se não houver um lucro garantido.Faltou só dizer isto. E falta também gente disposta a investigar e trazer a público tal situação, fornecendo dados que só quem é jornalista pode ter acesso. A mesma imprensa progressista deve isto ao seu público. O que me leva a questionar até quando a questão de segurança pública continuará negligenciada pelos setores ditos progressistas.A questão é politizada de tal forma que acaba por empurrar goela abaixo da sociedade realidades como a que voê e eu relatamos, sem direito a uma representatividade mínima capaz de garantir um confrontamento embasado em fatos e registros.

      1. Assista o que diz o Márcio

        Vou postar de novo chamando a atenção para a bandeira do articulista:

        … Membro da LEAP-Agente da Lei contra a Proibição…

        Você me diz que eu mal interpretei o artigo, e eu respondo que é possível que  eu não tenha me feito entender.

        Minha oposição às drogas é veemente pelas razões que declinei, vistas e experimentadas pessoalmente.

        NENHUM VÍCIO É BOM!

        [video:https://youtu.be/RPApKlvhqG4%5D

         

  3. A propósito

    Não é porque eu não gosto do Agripino  ( que não gosto mesmo ), que vou engrossar o cordão dos opositores criticando suas tentativas, ainda que desastrosas, de solução de um problema que pode destruir nações.

    Como diz o ex-drogado Márcio Américo (a quem admiro), a rua é pública, é para todos e não só para os nóias.

    E eu quero andar na rua sem tropeçar em buracos, vômitos, fezes, escarros ou gente jogada como lixo, à espera da próxima pedra.

    Quero poder dormir sem ter que ouvir as tosses e hemoptises de tuberculosos  morrendo debaixo da minha janela.

    Quero ir ao supermercado, à padaria, à loja sem o assédio de jovens me pedindo moedas, mentindo pra mim me mostrando receitas, trocando marmitas por pedras de crack.

    Quero não ter que ver mulheres jovens  parindo na rua, no meio do lixo  sem a menor noção do que está se passando.

    São Paulo virou um pesadelo inimaginável para quem nasceu nela.

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