do Coletivo Transforma MP
Do rigor punitivo à educação de gênero: os desafios do enfrentamento à violência contra a mulher no Brasil
por Érika Puppim
Sempre que a grande mídia repercute casos abomináveis de estupros, logo surge o discurso populista penal, no qual se clama pelo aumento de pena, prisão perpétua, castração química e até pena de morte, acreditando-se que desta forma seja possível coibir e até impedir novos crimes.
Mas até que ponto o recrudescimento penal, retornando até às penas corporais, seria a tábua de salvação para livrar a sociedade deste mal que acomete mulheres e crianças há tantos séculos?
Em que pese toda essa busca do aumento da resposta penal pelos supostos “defensores das mulheres”, verifica-se que no discurso destes, não há qualquer relevância o índice de elucidação dos crimes, a credibilidade dada à palavra da vítima, a efetiva proteção da mulher e as formas de prevenção destes delitos.
Ao contrário, o constante processo de revitimização pelo qual é submetida a mulher vítima de violência é persistente e cruel.
Delegacias da Mulher mal estruturadas e ausência de qualificação dos servidores para que possam lhe dar atendimento digno e adequado, são apenas alguns dos ingredientes que compõem a realidade brasileira.
Além disso, a denúncia da mulher é comumente desqualificada e desacreditada, sempre vista com certo “ar suspeito”. Principalmente quando a vítima não se encaixa no papel social de mulher “casta e pura”. A culpabilização que recai sobre a vítima é reflexo de uma cultura machista que permeia toda sociedade.
Dizem que “não é nenhuma santa” (como se alguém nessa Terra o fosse); que se estivesse em casa ou estudando isso não teria acontecido, sendo certo que muitos estupros acontecem na intimidade do lar, inclusive praticado por familiares.
Quando uma adolescente é vítima de um estupro coletivo, como aconteceu em caso de repercussão em 2016, nas redes sociais são compartilhados xingamentos. Neste episódio específico chamaram-na de “safada” e disseram que “ela estava lá porque quis”. Um funk chegou a ser feito, citando suas partes íntimas e a letra, insultando-a, listava os homens que a teriam violado[1].
Em determinado caso de estupro de vulnerável, um tio era acusado de ter abusado de sua sobrinha de dez anos, inserindo dedos em sua vagina, enquanto fingia ensiná-la a nadar na praia. Todas as suas testemunhas afirmavam que a mãe da menina “trocava de namorado como quem troca de roupa” e que a menina “estava acostumada a ver vários homens dentro de casa”. A culpabilização, nesse caso, não era apenas da vítima, mas da mãe da vítima, como se seu comportamento sexual (por não se encaixar no papel esperado da “mãe imaculada”) fosse o culpado por sua filha ter sofrido abuso de uma pessoa em que esta confiava.
De que adianta uma mulher se submeter ao transtorno e ao constrangimento de esperar horas em numa delegacia para ser atendida e fazer um exame de corpo de delito quando os próprios agentes podem fazer pré-julgamentos e comentários sobre suas roupas ou seu comportamento?
Para quê se submeter a uma audiência onde poderá ser desacreditada, ouvir discursos culpabilizadores, onde ainda o próprio Promotor de Justiça pode vir a humilhá-la, como aconteceu em caso noticiado pela mídia no Rio Grande do Sul?[2]
O Sistema de Justiça Criminal vitimiza duplamente a mulher, pois na maioria das vezes só se está preocupado em colher um depoimento, visando o desfecho de “apenas mais um processo” o mais rápido possível, sem se importar com as consequências e impacto na vida da própria vítima (que dizem tanto se importar quando clamam por aumento do rigor punitivo).
Em pesquisa realizada pelo GCCRIM da UNB em 2009, constatou-se que a vítima enxerga a agência judicial como a última expectativa de restauração dos direitos violados, o que contrasta com constantes queixas por serem tratadas como objeto.[3]
Não é de surpreender que, diante desse quadro, somente 7,5% das vítimas de violência sexual registram o crime na delegacia, conforme Pesquisa Nacional de Vitimização de 2013 [4]. Já a pesquisa “Estupro no Brasil: uma radiografia segundo os dados da Saúde”, produzida pelo IPEA, estima que apenas10% dos casos sejam notificados. [5]
Portanto, a maioria dos casos sequer chegam a contabilizar nas estatísticas de estupros no Brasil. E mesmo nos casos que chegam a ser registrados, o índice de elucidação é muito baixo.
Os discursos machistas que permeiam os casos de abuso sexual se aplicam da mesma forma aos casos de violência doméstica, onde costuma-se ouvir que “a mulher gosta de apanhar” e mesmo nos dias de hoje ainda se ouve professor em sala de aula repetindo essas falas opressoras e culpabilizadoras da mulher. [6]
Ainda sobre as demandas do populismo penal, em recente seminário jurídico, foi defendida a tese de que a Lei Maria da Penha deveria ser aplicada a todo abuso sexual ou agressão física praticada por homem contra mulher, ainda que sejam completos desconhecidos. Argumenta que a lei decorreu de lutas feministas e que o feminismo assim demandou, em razão da fragilidade da mulher perante o homem, e que não faria sentido restringir o rigor da lei apenas às relações íntimas, afetivas e familiares.
Interessante notar nesse discurso que, a pretexto de proteger as mulheres, se embasa em um dos mitos misóginos que sustenta a sociedade patriarcal: o mito do sexo frágil.
Utiliza, portanto, de uma premissa extremamente sexista que é completamente desconstruído desde 1949 por Simone de Beauvoir em o “Segundo Sexo: fatos e mitos”, no qual discorre ao longo do primeiro volume sobre como o argumento da fragilidade foi usado como fundamento para as mais variadas opressões e exclusões da mulher pelo patriarcado.
A suposta “fragilidade feminina” é destacada pela autora como uma das características compõem o “Eterno Feminino”, tais como ser doce, delicada, submissa, dependente, frívola, atributos estes que são impostos e exigidos da mulher, como sendo a irredutível essência de feminilidade, a qual justifica sua objetificação, e portanto, os abusos.
Afinal, atrás das paredes do lar, dependentes e submissas ao homem, criadas através de um discurso que lhes diz possuírem um corpo frágil, cuja vista poderia despertar a luxúria, as mulheres foram excluídas durante séculos das ciências, dos saberes, da cultura, das Universidades.
Essa tese também parece ter olvidado que a ratio essendi da Lei 11.340/06, conhecida como “Lei Maria da Penha”, é a relação íntima de afeto e confiança que a mulher estabelece com seu companheiro ou familiar, residindo neste fato a especialidade do referido diploma legal e o tratamento diferenciado dispensado ao agressor.
Ademais, em que pese as medidas protetivas – instrumentos penais de natureza cautelar, sejam exclusivas da referida lei, no Código de Processo Penal [7] há previsão da medida cautelar de proibição de contato com a vítima, a qual tem efeito semelhante e pode ser aplicada a qualquer tipo penal.
A mencionada legislação é muito desvirtuada quando a enxergam como um mero diploma de recrudescimento penal, deixando de lado toda sua parte protetiva, contendo um Capítulo inteiro dedicado à prevenção, o qual institui política pública visando prevenir a violência doméstica e familiar contra a mulher. [8]
Estabelece ainda o citado diploma legal que sejam criadas casas-abrigos para as mulheres em situação de violência, mas aqueles que clamam por endurecimento das reprimendas, não fazem qualquer demanda no sentido de fortalecimento e ampliação desses importantes equipamentos de proteção.
Na pesquisa realizada pelo IBCCRIM intitulada “A vítima no Processo Penal Brasileiro” [9], no caso da violência doméstica, identificou-se que seus anseios estavam vinculados à cessação das agressões e à sensação de segurança.
Portanto, mais do que mera punição, o que a mulher vítima deseja é não sofrer novas agressões. Desta feita, seria de suma importância para prevenção da reincidência, a ampliação dos Centros de Educação e Reabilitação para agressores, como determina a lei [10], com a instituição de grupos reflexivos, mas aqui também não se vê demandas dos que se autodenominam “defensores das mulheres”.
A despeito de todo o rigor punitivo, é preciso lembrar que o sistema penal sempre selecionará aqueles para o qual é destinado. Assim, quando o acusado de estupro é o “etiquetado” [11], há grande chance que este venha a engrossar a malha criminal, em contraposição àquele que não apresente o perfil típico do “criminoso” no Brasil, que tem cor e classe social certa. [12]
No célebre e precioso artigo de Maria Lucia Karam [13] de 2015, esta joga luz sobre a questão:
A monopolizadora reação punitiva contra um ou outro autor de condutas socialmente negativas, gerando a satisfação e o alívio experimentados com a punição e conseqüente identificação do inimigo, do mau, do perigoso, não só desvia as atenções como afasta a busca de outras soluções mais eficazes, dispensando a investigação das razões ensejadoras daquelas situações negativas, ao provocar a superficial sensação de que, com a punição, o problema já estaria satisfatoriamente resolvido. Aí se encontra um dos principais ângulos da funcionalidade do sistema penal, que, tornando invisíveis as fontes geradoras da criminalidade de qualquer natureza, permite e incentiva a crença em desvios pessoais a serem combatidos, deixando encobertos e intocados os desvios estruturais que os alimentam.
O que temos hoje é uma sociedade organizada a partir do machismo estrutural. O sistema repressivo-penal – intrinsecamente seletivo, não será capaz sozinho de realizar a mudança na forma de organização patriarcal da sociedade, na qual a mulher ainda é objetificada, seu relato desqualificado e os abusos, muitas vezes, naturalizados.
Assim, a punição “exemplar” de um ou de outro caso emblemático, tratando-o como mero desvio pessoal, configurando rara exceção no mar dos inúmeros casos que permanecem impunes e até mesmo subnotificados, pouco impactará na redução geral dos casos de violência de gênero, que são praticados cotidianamente por homens comuns.
À guisa de exemplo, a Lei nº 12.015 de 2009, que aumentou da pena do crime de estupro e criou a figura típica do estupro de vulnerável, não trouxe qualquer redução significativa sobre o número de estupros no Brasil.
Conforme o 9º Anuário Brasileiro da Segurança Pública [14], em 2014 foram registrados 47.646 estupros, com redução de 6,7% em relação a 2013, porém, como ressalta a pesquisa, o que a princípio poderia ser uma notícia a se comemorar deve ser olhada com cautela, pois em razão da alta subnotificação, é muito difícil afirmar que houve uma redução do fenômeno no Brasil.
A violência de gênero, entendida como uma manifestação da relação de poder historicamente desigual entre homens e mulheres, que conduziu à discriminação das mulheres, impedindo seu pleno progresso, constitui um dos mecanismos fundamentais pelos quais as mulheres são forçadas a assumir um papel de subordinação em relação aos homens [15], permanece incrustada e perpetuada em nossa sociedade em nos mais variados graus, desde a piada de bar até o feminicídio.
Afinal, nas palavras de Angela Davis, “a proliferação da violência sexual é a face brutal de uma intensificação generalizada do sexismo” [16], e é este que devemos combater se quisermos de fato reduzir os estupros.
Verifica-se que o debate de gênero e a desconstrução do machismo são essenciais para mudar a cultura em que estamos inseridos e trazer resultados concretos quanto ao enfrentamento, prevenção e redução da violência contra mulher, seja violência sexual, seja violência familiar.
Para tanto, uma educação de gênero nas escolas é de fundamental importância, como já prevê nossa legislação na Lei Maria da Penha [17], determinando a promoção de programas educacionais e o destaque, nos currículos escolares à eqüidade de gênero e de raça, além de campanhas nas mídias com o mesmo enfoque.
A educação de gênero também se encontra prevista na Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência Contra a Mulher, a “Convenção de Belém do Pará”, ratificada pelo Brasil em 1995, concordando em adotar medidas para fomentar o conhecimento e a observância do direito da mulher a uma vida livre de violência, estimular os meios de comunicação, além de promover e apoiar programas de educação governamentais e do setor privado destinados a conscientizar o público sobre os problemas relacionados à violência contra a mulher.
Vê-se, portanto, que a educação como forma de prevenção à violência de gênero já se encontra prevista em nossa legislação interna e internacional, e não se trata de uma ideia etérea ou de “doutrinação ideológica”, como querem fazer crer os mesmos que, ao clamarem pelo aumento do rigor punitivo, querem interditar o debate de gênero nas escolas.
É necessária uma educação sobre o direito das mulheres de viver sem violência e que questione os estereótipos da masculinidade como forma de reduzir o machismo e a violência que deste advém, enfatizando a responsabilidade que os homens devem assumir na eliminação da violência contra as mulheres e meninas.
Conclui-se que a educação de gênero levará à prevenção não apenas pela conscientização do homem sobre o respeito ao corpo e aos limites da mulher, mas também poderá trazer a mudança necessária na cultura machista para que seja dada credibilidade à palavra da vítima, incentivando o aumento dos registros das violações, e consequentemente, ampliando a responsabilização dos agressores.
Érika Puppim é promotora de Justiça do Estado do Rio de Janeiro e Membro do Coletivo Transforma MP.
1 Matéria do Estadão, disponível em: http://brasil.estadao.com.br/noticias/rio-de-janeiro,vitima-de-estupro-coletivo-no-rio-e-insultada-na-internet,70001766892
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Eh persistente esse problema
Eh persistente esse problema de gênero. Tem comentarios aqui no GGN mesmo que ficam no limite do sexismo, quando não do puro machismo. A educação e instrução de homens e mulheres, desde pequenos, é o que vai resolver esse que é ainda um problema crucial do humano.
Violência contra o leitor
Sei que não sou obrigado a ler esse belo arrazoado de idéias debilóides. Mas, terminei por curiosidade patológica lendo um trecho. Logo desisti. Uma violência contra o leitor com dois neurônios intactos. Mas, sabemos, violência não deveria ser aceitável. Contra ser humano nenhum. Contra animal nenhum também. Afirmo – já sei, sou um desaforado – à articulista, também não contra as normas básicas do raciocínio mais lógico e fundamental. Porque a insistência na violência contra a mulher? Contra a criança pode? Contra o velhinho também? Contra o patrão está tudo certo? Contra os outros todos, não sabemos? Profundo é o desgosto por esse pensamento produzido pela fé cega nessa ideologia esquisitíssima, algo que poderíamos chamar de “minoritarismo vitimacionista”. Essa turma é crente pra valer!