Famílias se emocionam ao encontrar restos mortais de parentes desaparecidos na Argentina

Jornal GGN – Na Argentina, uma equipe de cientistas forenses se dedicam a identificar pessoas a partir de restos mortais, procurando os ossos de desaparecidos durante a ditadura do país sul-americano, entre 1976 e 1983. A maioria dos desaparecidos foram mortos pelas forças de segurança do Estado.

A Equipe Argentina de Antropologia Forense (Eaaf) identifica os ossos e entra em contato com os parentes das vítimas. Reportagem da BBC Mundo relata a experiência destas pessoas, como Luciano Zuppa, filho de desaparecidos. Em 1976, com somente um ano e meio de idade, homens armado invadiram sua casa e levaram seus pais, Néstor Óscar Zuppa e Irene Felisa Scala.
 
Em 2012, a Eaaf entrou em contato para contar que encontraram restos mortais que podiam ser de sua mãe. “Primeiro, o mais difícil de aceitar era que aquilo havia sido um corpo humano e, segundo, que tinha sido o corpo da minha mãe. Mas logo consegui entender isso. Nunca estive tão perto dela nos meus 36 anos como naquele momento”, afirma.

Leia a reportagem completa abaixo:

Da BBC

Uns choram, outros fazem festa, outros fazem selfies: o duro encontro de famílias com ossos de parentes desaparecidos na Argentina

Alejandro Millán Valencia e Valeria Perasso

Enviados especiais da BBC Mundo à Argentina

Quando os restos mortais de um desaparecido são identificados – em um processo longo e minucioso – sua identidade muda. Eles passam a ser um filho, irmão, uma mãe, um pai que foi localizado. Ainda que sejam apenas seus ossos.

“Os assassinos devem ter mais medo dos mortos que dos vivos”, disse o pioneiro da Antropologia Forense, Clyde Snow, em 2002, ao jornal The New York Times. Isso porque a memória das testemunhas pode enfraquecer com o passar dos anos, mas os ossos não – eles são testemunhas silenciosas e, por vezes, muito eloquentes.

“Há uma grande diferença entre estudar um corpo sem identificação e quando já se sabe o seu nome: ele deixa de ser o esqueleto AVD 677 para ser João ou Maria”, explica a antropóloga forense argentina Patricia Bernardi, enquanto ajeita um fêmur e completa um esqueleto disposto sobre uma maca de metal.

“É como se um segredo guardado por anos na estante pudesse agora voltar para a família à qual pertence, completa Bernardi.

A antropologia forense é o ramo da Medicina Legal que identifica pessoas a partir de ossos e tem grande importância na esfera penal. Bernardi e a Equipe Argentina de Antropologia Forense (Eaaf) se dedicam a essa atividade há 32 anos.

A Eaaf reúne um batalhão de cientistas que escava terrenos em busca de restos dos milhares de desaparecidos durante a ditadura militar argentina, entre 1976 e 1983 – a grande maioria mortos pelas forças de segurança do Estado.

Identificação a partir de um único osso

Em muitos casos, um único osso é tudo o que os peritos têm para trabalhar.

“Uma vez identificamos, a partir de apenas um fêmur, uma jovem militante chilena desaparecida na Argentina”, conta Patricia Bernardi.

“Recebemos um caixão para mandar o osso para o Chile, diplomatas se envolveram porque era um processo burocrático de repatriação e nós dizíamos: ‘é só um fêmur, como vamos dizer que mandaram um caixão para apenas um osso?’ Mas, para a família, era como ter um corpo completo.”

Diante das suas mesas repletas de ossos, esses legistas testemunham diferentes manifestações de carinho das famílias.
Uns choram. Outros fazem festa. Outros tiram selfies. Há quem cante ou reze.

“As mães são as que mais beijam os ossos”, conta Bernardi, acrescentando que as mulheres fazem questão de se arrumar e ficar bonitas na despedida do marido ou companheiro.

‘Minha avó não conseguiu ver os restos da filha’

Luciano Zuppa bebe calmamente uma cerveja no imponente salão de um bar iluminado por vitrais.

Pela segunda vez em menos de cinco minutos, um garçom se aproxima e pergunta se ele deseja algo mais.

“Será que peço um uísque para contar melhor minha história?”, pergunta, sorrindo.

Zuppa é filho de desaparecidos. Em novembro de 1976, quando tinha apenas um ano e meio de idade, homens armados invadiram a casa onde morava em La Plata, a 50 km da capital argentina, e levaram a força Néstor Óscar Zuppa e Irene Felisa Scala, seus pais.

Ele nunca mais os viu. Pelo menos com vida.

“Em meados de 2012, 36 anos depois daquele dia, alguém da Eaaf escreveu dizendo que eles acreditavam ter encontrado restos que poderiam ser da minha mãe.”

O bar onde Zuppa nos encontrou se chama Las Violetas e fica no Once, bairro central de Buenos Aires.
 
Durante os anos da ditadura militar argentina, era ali que as Avós da Praça de Maio se reuniam para trocar informações sobre os filhos que procuravam incansavelmente, enquanto fingiam comemorar aniversários.
 

No dia em que foi receber os restos da mãe, Luciano estava acompanhado da pessoa que o criou desde o desaparecimento dos pais – a avó.

“Quando chegamos à Eaaf ela, então com 96 anos, não conseguiu ver os restos da minha mãe, sua filha. Ela tentou, mas teve que sair da sala. A equipe me disse para levá-la a um lugar onde ela se alegrasse um pouco. Eu a trouxe ao Las Violetas, onde ela vinha com meu avô e as amigas quando era jovem”, lembra Zuppa.

‘Nunca estive tão perto da minha mãe’

Mas ele sim, viu os restos. Enquanto a avó se recuperava no corredor, ele ficava diante dos ossos da mãe – um conjunto de fragmentos que procurara durante toda a vida.

“O esqueleto estava em perfeito estado, mas faltava o crânio. Primeiro, o mais difícil de aceitar era que aquilo havia sido um corpo humano e, segundo, que tinha sido o corpo da minha mãe. Mas logo consegui entender isso. Nunca estive tão perto dela nos meus 36 anos como naquele momento”, afirma.

Quando Luciano começou a ajudar a equipe da Eaaf na identificação, recebeu um pedido perturbador: que levasse fotos dos seus pais sorrindo.

“Talvez por isso tenha me abalado tanto o fato de não ter o crânio. É nele que está a única parte do esqueleto visível em alguém vivo: os dentes. O resto dos ossos não vemos porque está coberto de pele e carne. Eu achava que ver os dentes, o sorriso da minha mãe, seria um gatilho para a minha memória.”

Relacionamento a partir dos ossos

Zuppa começou então a se reconhecer naquele conjunto de restos na mesa de metal: notou que a mãe tinha um dos ossos do peito maior do que o normal – como ele.

“É incrível como você pode se relacionar com a sua mãe até pelos ossos. Tenho esse mesmo osso grande aqui”, diz, apontando o peito. “Essa alteração sempre me incomodou, mas acabou sendo o que me ajudou na conexão com ela e a superar a falta de um crânio.”

Pouco tempo depois, Zuppa soube que exames de DNA feitos em um outro conjunto de ossos do laboratório da Eaaf haviam dado resultado positivo. Eram os restos de Néstor, seu pai.

Daquela vez eram poucos fragmentos de ossos, em pior estado. Mas havia um crânio e dentes.

Fim da ansiedade

A ideia inicial era enterrar seus pais numa cerimônia pequena e íntima.

Mas acabou sendo um funeral de Estado, com a leitura de uma mensagem da então presidente Cristina Kirchner e dos peritos da Eaaf relatando o processo de identificação. A cerimônia foi na Universidade Nacional de La Plata, onde seus pais haviam sido professores.

E teve mais: “Convidei a banda de rock alternativo Estelares, que cantou ao vivo ‘Ardimos’, uma música muito importante para mim naquele processo”.

Era a canção que Zuppa escutava nas viagens até o laboratório de identificação.

“Receber os ossos pôs fim a muita ansiedade e a perguntas que me fiz por anos”, destaca Zuppa.

“Embora tenham se passado quatro anos, ainda continuo tentando processar tudo. Você pergunta como me sinto e não sei. Larguei meu emprego, viajei, comecei outro caminho, uma busca mais interior e pessoal. Deixei de procurá-los para começar a procurar por mim mesmo.”

Perguntas de uma vida

De volta à sala de Patricia Bernardi, uma garrafa de vinho espera ser aberta – talvez presente de uma família que reencontrou seu desaparecido. Esse é um gesto que ainda surpreende a antropóloga forense numa profissão em que viu “de tudo”.

“Não importa se é na Argentina, em El Salvador ou no Congo, você vai enfrentar uma família. Em 20 minutos a sós com aqueles restos e com aquelas pessoas, você vai responder o que elas passaram 20 anos se perguntando”, explica, em meio a caixas cheias de ossos.

“E o que vai ser dito tem que ser contundente, como é o trabalho científico, mas falado com cuidado e carinho”, completa.

Nesse momento de encontro íntimo, sentimentos e reações por vezes abalam a antropóloga.

Viver o luto

“Uma vez devolvemos a um rapaz um esqueleto sem crânio e ele disse: ‘Se me derem o crânio de outra pessoa, troco por todo o esqueleto do meu pai’. Ou seja, o crânio era superimportante para ele e não o tínhamos”, relata, com um sorriso de compaixão.

“O que devolvemos a esses parentes é o que eles precisam para viver o luto”, conclui.

Em plena era digital, muitos querem que o momento do reencontro seja registrado.

Selfie com caveira

“Nos últimos anos tem me impressionado a quantidade de pessoas que pede para tirar fotos. Lembro que identificamos o filho de um senhor alemão. Quando ele entrou na sala, me deu a câmera e pediu que eu tirasse uma foto. Logo que concordei, ele posou com o rosto junto do crânio”, diz a antropóloga.

“Fiquei paralisada. Ele me contou que quando sequestraram seu filho, os militares levaram todas as fotos. Ele não tinha uma só foto do filho vivo. E eu pensava ‘isto é um esqueleto, não é o seu filho’. Mas o parente não o vê assim e é importante entender isso”.

Mulheres trabalham em vários esqueletos.

Peritas da EAAF trabalham para identificar várias ossadas no laboratório da equipe. A última etapa do processo é a entrega às famílias

As histórias são muitas: amigos que fizeram uma seresta, um parente malabarista que fez um show de circo, outro que levou um álbum de retratos da família e mostrou cada foto para um crânio perfurado por um tiro.

Peritos e famílias: relação delicada

Desde o começo, a marca do trabalho da Eaaf é o relacionamento com as famílias.

Esses peritos escolheram ser mais do que profissionais que fazem escavações, analisam e confirmam dados. São as pessoas que entregam as ossadas e oferecem um ombro para apaziguar emoções que afloram no laboratório.

O contato com as famílias também serviu para aprimorar a forma como a devolução é feita. Explicar, por exemplo, que os ossos vão estar montados em um esqueleto.

“Decidimos avisar isso depois que uma família se queixou que levou um choque porque se deparou com o esqueleto do parente sobre uma mesa de metal. Para nós isso era óbvio, mas a família achava que ia receber uma urna com ossos”, diz.

Bernardi encerra a conversa e volta a se concentrar em outro processo de devolução de ossada. Um novo encontro, uma nova surpresa.

Busca incansável

O barulho dos caminhões quase sufoca a voz de Josefina Giglio. Mas ela não grita, não quer fazer isso naquele lugar.

Mãe de duas crianças e filha de desaparecidos, ela tenta achar a foto da mãe no mural colocado sobre as ruínas do centro clandestino de detenção e tortura Club Atlético – agora localizado embaixo das pistas da Rodovia 25 de Maio, em Buenos Aires.

“É essa aqui, veja”, ela mostra a foto da mãe, Virginia Isabel Cazalas, entre centenas de imagens no cartaz em homenagem aos que estiveram presos ali.

Peregrinação

Giglio foi até lá porque, segundo sobreviventes, aquele é o lugar onde sua mãe foi vista pela última vez com vida.

No início de 1978, quando Giglio tinha oito anos, sua mãe foi levada da casa onde a família vivia clandestinamente, em Buenos Aires. Um ano antes, seu pai desaparecera da mesma forma.

Desde então, ela procura os dois, sem sucesso.

Giglio é uma entre muitos filhos de desaparecidos que ainda não conseguiram receber os restos de parentes.

Ela faz peregrinações às ruínas do Club Atlético, onde a terra está aberta por uma escavação arqueológica que busca o centro de tortura enterrado na construção da estrada.

“Há duas fases neste processo: primeiro você fica parado no tempo esperando que eles voltem, depois você começa a procurar”, diz.

“Você está sempre procurando. Existia uma propaganda na TV e o ator era igualzinho ao meu pai, que tinha estudado teatro. Então eu pensava: ‘Bateram na cabeça dele e ele se esqueceu que é esse ator’. Até escrevi para a emissora. Claro que ninguém nunca me respondeu.”

Ela afirma que a “busca de verdade” começou quando ingressou na universidade.

‘Democratizar a dor’

Também foi o despertar de uma missão coletiva: o movimento Hijos y Hijas por la Identidad, la Justicia contra el Olvido y el Silencio (Filhos e Filhas pela Identificação, Justiça contra o Esquecimento e o Silêncio, que em espanhol tem a sigla Hijos, ou Filhos). É uma espécie de versão filial das Mães e Avós da Praça de Maio, criada em 1994, quando muitos filhos de desaparecidos completaram a maioridade.

Com o movimento Hijos, ela chorou, protestou nas ruas e conseguiu “democratizar a dor”.

Giglio estudou a fundo a história dos pais em busca de pistas em fotos e cartas. Algo que lhe permitisse entender quem eles eram, pelo que lutaram e qual o sentido da sua morte.

Enquanto continua esperando, ela viu companheiros de militância receberem os restos dos pais na Eaaf.

“Uma das minhas fantasias é tirar um cochilo junto aos ossos deles”, conta, às gargalhadas, com os olhos brilhando atrás das lentes grossas dos óculos.

“Queria um amuleto, tinha uma vontade imensa de fazer um colar com eles”, continua.

No dia seguinte ao sequestro da mãe, no verão de 1978, ela foi autorizada a entrar no apartamento para buscar alguns pertences. A única coisa que pegou foi um colar de cerâmica da mãe, comprado quando foram juntas a uma feira de artesanato.

“Pensava em devolvê-lo quando ela voltasse.”

‘Filha de um buraco negro’

Durante todos esses anos, ela fez mil conjecturas mas, apesar do esforço, algumas contas não consegue fazer. Por exemplo, a Eaaf achou ossos de apenas 600 pessoas e continua encontrando mais.

Mas ainda está muito distante dos 30 mil desaparecidos estimados pelas organizações de direitos humanos ou 10 mil calculados por fontes mais conservadoras.

Muitos, sabe-se agora, foram jogados no Rio da Prata ou no mar, nos chamados voos da morte.

“Por muito tempo, tive a sensação de que era filha de um buraco negro e agora acho que os ossos me dariam um sentimento de continuidade: eu sou esses ossos, vou ser esses ossos. Recuperaria essa continuidade interrompida. A gente acha que uma tíbia e um perônio são desnecessários, até perceber que esses ossos podem ser uma fonte de alívio e de encerramento”, desabafa.

Uma fila de caminhões barulhentos interrompe nossa conversa.

Antes de partir, Josefina Giglio olha para o buraco das escavações e diz que sempre procura algum objeto, um fragmento da herança que o destino lhe deve.

Só para ter algo enquanto os ossos dos seus pais não chegam.

Redação

1 Comentário

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Você pode fazer o Jornal GGN ser cada vez melhor.

Apoie e faça parte desta caminhada para que ele se torne um veículo cada vez mais respeitado e forte.

Seja um apoiador