Ferréz: Tudo nosso, nada nosso

Lourdes Nassif
Redatora-chefe no GGN
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Enviado por Marco St.

da Carta Capital

Tudo nosso, nada nosso

Não existe educação que funcione. Por isso o “rolezinho” não é em bibliotecas. Só não vale depositar a culpa no som que é feito na favela
 
por Ferréz 
 
 
 
 
 
MC Guime

Só não vale depois depositada toda a culpa no som que é feito no barraquinho da favela, a maldição é o funk falando de suas roupas e carros? (na foto, o cantor MC Guime, ícone do funk ostentaçao)

 
Foi duro para ela ouvir aquilo.

– Você está com eles? Então Fora!

O policial gritava e empurrava.

Camila comprou o sapato na Santa Lolla em quatro parcelas. A blusinha foi na C&A, em três parcelas. A calça foi em mais parcelas, mas uma calça da Coca-Cola vale se apertar um pouquinho por mês.

Renato ficou puto: como pode aquele policial ter chutado sua perna se a alguns dias o vendedor da Brooksfield o tratou tão bem naquele shopping?

Brooksfield, marca que o cantor oriundo das periferias Belo usou durante anos, fazendo assim muitos jovens a desejarem pelas periferias.

Quando Renato foi entrar na loja, o gerente daquele horário olhou para o vendedor mais jovem e deu um sinal: era para atender o “mano”, forma como os periféricos são apelidados pelos funcionários. Diferente dos doutores e jovens ricos que frequentam a loja e quase sempre passam horas e compram somente uma peça, os “manos”, entram timidamente, são inseguros, vão direto para as camisas pólos e muitas vezes compram duas ou três peças.

Apenas dez minutos depois de entrar, Renato já está no caixa pagando duas camisas e uma bermuda. A menina do caixa parece legal quando ele diz que o pagamento é a vista e em dinheiro. Renato é acompanhado para fora da loja com o sorriso do vendedor que lhe entrega um cartão, o mesmo vendedor que também mora na periferia da Zona Leste.

Renato, que mora na Vila Calú, anda pela praça de alimentação e vai escolher onde comer seu lanche.

Dias depois Renato foi avisado de um “rolezinho” pela internet. A mensagem veio pelo Facebook.

Um “rolezinho” foi como os jovens apelidaram uma forma de encontro em alguns lugares, coisa já feita há muitos anos por todas as classes (ou você nunca viu ou participou de um encontro na frente da faculdade?)

A diferença é que, se os universitários não puderem se encontrar na frente da faculdade, fariam no bar; na periferia, ficar no bar é pagar para vacilar, e virar número que engorda as matérias sobre chacinas.

O país há muitos anos é vendido como rico. “Estamos em acessão”. “Tudo está melhorando”. “Todos fazem parte dessa evolução”.

Balela, mentira. A elite não está preparada para dividir seus espaços, seus feudos, sua exclusividade, mas uma coisa é certa: ela vai ter que aprender.

“Por que eles não ficam no lugar deles?”

Porque o lugar deles é ruim. Ninguém quer ficar mais desfilando de Mizuno de 1.000 reais em frente ao córrego, quem gosta de córrego é rato.

A periferia há muitos anos está defasada de algo que atraia o jovem. Não temos meio nenhum de entretenimento para alguém que hoje completa 14 anos.

A biblioteca mais próxima é um CEU da prefeitura (tem 3.000 títulos para mais de um milhão de habitantes).

A piscina pública é também no CEU (tem que cadastrar e esperar sua vaga para nadar no horário determinado pela instituição).

Um exemplo é um parquinho que fizeram aqui no Engenho Velho na Zona Sul onde moro.

A prefeitura executou a obra ha duas semanas, com três gangorras feitas de pneus e correntes, dois gira-gira, e um escorregador. O parquinho nunca ficou vazio: crianças disputam espaço com jovens que às vezes ficam sentados horas ali, como é comum ficarem ociosos em calçadas por todas as periferias.

Jovem é jovem, não importa a classe. Quer usar roupa que o valorize, quer sair para um lugar melhor, está tão cheio de dúvida que quando olha para o espelho ainda não sabe o que é, nem o que vai ser.

No estacionamento, Carlos, advogado e classe média, escuta na rádio: “Com tanta riqueza por ai, cade sua fração, até quando esperar?”

Ao seu lado, Renato, estudante e balconista, tido como classe baixa, escuta no rádio: “Nota de cem, nota de cem, joga os plaquê de cem”.

Em alguns minutos Carlos vai entrar no shopping tranquilamente com sua camisa Hering e sua bermuda comprada num brechó de uma amiga, enquanto Renato, com sua camisa da Ambercromb e Fith, sua calça da Fórum, seu tênis Nike SB, seu óculos Oakley, e seu relógio Invicta, vai ser barrado na porta por ser periférico.

Da ponte pra cá a vida nunca foi mamão, e de uns anos vem sendo notório que tudo está mudando, todos estão tendo acesso (nem que seja em parcelas) e querem também o que o “outro lado” tem a oferecer.

Anos de exclusão, cozinhando e chegando em casa sem alimento, cuidando do transporte e não tendo como voltar para seu barraco, ensinando uma elite que lhe dá o desprezo em contra partida. Ninguém nasceu para ser coadjuvante de ninguém, a nova geração é mais desassistida, com escolas piores, sem exemplos de vida contundentes, sem expectativa para de fato construir uma família, afinal muitos vem de uma desconstrução

Muito barulho, porque é no quintal da elite. Enquanto era no nosso tudo tranqüilo.

Proíbe som alto, baile funk, passeio deles no shopping, proíbe, proíbe, proíbe. Sai mais barato criar leis do que dar conhecimento.

O conhecimento é a chave, para discernir o que é melhor, desde o consumo pregado há tantos anos pelas mais competentes agências de propaganda (se esses jovens estão loucos por essas marcas, o trabalho deu certo parabéns).

Não existe educação que funcione hoje neste país, por isso o “rolezinho” não é em bibliotecas.

Só não vale depois depositar toda a culpa no som que é feito no barraquinho da favela. A maldição é o funk falando de suas roupas e carros?

O menino do morro no palco é só a repetição de campanhas de marketing agressivas, que o fizeram ter vergonha de ser o que é, e querer se blindar de garantias de aceitação.

Mas roupa não esconde pele, olhar, postura, serão esses os quesitos para barrar nas entradas dos impérios elitistas?

A frase mais incompleta do país.

Um país de todos.

Vamos completar.

Desde que cada um fique no seu quadrado.

O caminho para a evolução nos nossos tempos não é ouvir funk carioca no pancadão, mas também não é fazer pilates trancado no seu presídio de luxo.

Tanto discurso de inclusão durante os almoços, um país para todos, globalização.

Mas na vida real balbucia a todo momento.

– Mas esse povinho demora quando entra no avião.

O acesso ao conhecimento tem de ser para todos.

– A feira literária de Parati hoje é cheia, antigamente era tão bom.

Tempos novos, novos acessos, muito ainda virá. Aposte no caos se não houver inclusão.

 

Lourdes Nassif

Redatora-chefe no GGN

5 Comentários

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  1. Interessante reflexão do

    Interessante reflexão do Ferrez.

    Lá em 2003, os Racionais MC’s, na música “Vida Loca, Parte 2” já tinham abordado esta questão do consumo e da auto-estima do jovem de periferia. Só que lá atrás, a realidade parecia muito mais simples: se quisesse saciar sua fome de roupas de marcas e etcétera, sendo pobre e negro, teria que partir para a criminalidade, roubar, traficar.

    Hoje em dia já não, o mercado de consumo, mesmo que das roupas de marca, parece acessível a jovens trabalhadores, mesmo que penhorem o fígado para pagar suas pesadas parcelas. Só que, da mesma forma que desde sempre nas letras de Mano Brown e sua trupe a contraposição a tudo isso era o trabalho duro e o empenho em sua educação, não creio que a realidade tenha se alterado muito, não.

    Podendo agora comprar coisas que sempre pareceram inalcançáveis, os jovens de periferia aprendem duramente que não é só o consumo que os diferencia dos jovens do “lado de lá”. E, se um dia pensaram que o preconceito contra eles era só porque não podiam comprar igual os playboyzinhos dos bairros mais ricos, hoje vêem que as raízes desta discriminação são muito mais profundas. 

    O quadro que Ferrez traçou é fidedigno: se um sujeito, com cara de “bem nascido”, veste Hering de R$ 19,90 rasgada e chinelo Havaianas de R$ 10,00, não tenha dúvidas que ainda será muito bem tratado nos nossos templos de consumo. Já um jovem periférico, com todo tipo de roupa de marca chamativa, cuja soma dos apetrechos pode resultar em mais de mil reais, não raro é acompanhado de perto por seguranças e corre o risco de ser barrado caso seja rotulado de ‘rolêzeiro’.

    Estes jovens, então, aprendem na prática o que Márcio Pochmann tinha dito há alguns anos atrás, que não existe “nova classe média”. O muro a ser transposto é muito maior que o do crediário, ou do aumento gradual de renda.

    Infelizmente, a maioria dessa molecada não vai conseguir subir os degraus da estratificação social, já que de início já se viram despidos de toda carga de informação, cultura, educação básica com alguma espécie de qualidade, ambiente familiar que valorize o saber, e por aí vai. Prouni’s e cotas podem fornecê-los diplomas, mas a fase mais importante do ensino (o básico) já foi desperdiçada.

    Assim, me parece que todos os partidos políticos e políticos (com alguma ou outra exceção honrosa, como Cristóvam Buarque e Erundina) do país continuam com a estratégia avestruz de negar sistematicamente direitos a esta molecada, por meio de tergiversações em torno da educação pública. Sem um projeto de nação, com planos concretos para atrair gente talentosa para o magistério básico, garantir PARA ONTEM as centenas de bilhões de reais que o ensino básico precisa para deslanchar, e planejamento para nos levar ao topo do Pisa, este processo de ascensão da molecada “rolêzeira” vai atrasar mais algumas décadas, quiçá gerações.

  2. Evasão noturna

    Algo que tem me assustado no Rio de Janeiro é a evasão do ensino básico noturno. Ano passado, diversos colegas tiveram turmas “otimizadas” (eufemismo criado pelos burocratas para dizer que tal turma não irá mais existir), dando um nó na rotina e na vida profissional e pessoal dos professores, pois uma vez que não podem ter horários vagos, são obrigados a procurar outra escola para completar sua carga horária. E assim, muitas escolas, espaços físicos imensos, são sub-utilizados, gastando fortunas em agua, luz e outras despesas e dando pouco em troca.

    Os motivos para a evasão, já sabemos todos: trabalho, gravidez, violência, desânimo etc.

    Bom artigo do Ferréz

     

     

  3. PERIGO

    O poeta um pouco antecipou…

    ODE AOS RATOS – Chico Buarque

    Rato de rua

    Irrequieta criatura

    Tribo em frenética proliferação

    Lúbrico, libidinoso transeunte

    Boca de estômago

    Atrás do seu quinhão

     

    Vão aos magotes

    A dar com um pau

    Levando o terror

    Do parking ao living

    Do shopping center ao léu

    Do cano de esgoto

    Pro topo do arranha-céu

     

    Rato de rua

    Aborígene do lodo

    Fuça gelada

    Couraça de sabão

    Quase risonho

    Profanador de tumba

    Sobrevivente

    À chacina e à lei do cão

     

    Saqueador da metrópole

    Tenaz roedor

    De toda esperança

    Estuporador da ilusão

    Ó meu semelhante

    Filho de Deus, meu irmão

    http://www.youtube.com/watch?v=RWxwj_2JQyY

    ……………………………………………..

    Mesmo que o “rato” só esteja por ali passeando, por mais bem arrumado e perfumado que esteja, é sempre uma ameaça. Se for em bando, então nem se fala.

    O signo “rolezinho” – em tese, semioticamente aberto a várias interpretações – se congelou em código: PERIGO – RISCO SOCIOBIOLÓGICO – CHAMA A POLÍCIA.

  4. O que está acontecendo é que

    O que está acontecendo é que MAIS jovens das periferias e dos morros estão comprando o que a propaganda indica que deve ser comprado. Às vezes as falas fazem parecer que nunca existiu nada disso. Ainda que mínima (circular, ou em raros momentos estrutural) sempre houve alguma mobilidade social no Brasil.

    Agora, eu insisto: dizer que a rapaziada está sói querendo comprar e pegar “umas mina” pra mim é incompleto. Pra mim é óbvio que a rapaziada sabe muito bem que está “causando”; sabem muito bem que são discrimiinados; sabem muito bem que a origem social deles é marca; sabe muito bem que vai todo mundo ficar “bolado” com o “bondão” deles…

    Quando pegam um moleque ou outro pra dar entrevista e este diz que “só queriamos zoar e pegar umas minas” e tomam isso pelo “valor de face”, só me resta indagar: nunca ouviram um adolescente dizer que “não fez nada demais!”?

  5. a contradição desses caras…

    é que eles são assim, como se apresentam, toda hora e todo dia……………….

     

    estudar e trabalhar seriamente que é bom, nem pensar

     

    mas tem coisa pior, eles estão fazendo a cabeça de muitos jovens que por qualquer motivo à toa pedem para serem demitidos, com a alegação de que estão sendo perseguidos ou discriminados, mesmo em casos de simples advertência da parte do supervisor ou gerente, coisa que sempre aconteceu com qualquer trabalhador

     

    quando entrevistados na saída, 90% das alegações são por não gostarem desta ou daquela pessoa por elas serem chatas, duronas, muito mandonas ou que ficam de marcação em cima

     

    realmente inacreditável esta fugida para o nada e ainda por cima acreditando que é show

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