Gerivaldo Neiva: Não quero sua piedade, quero seu remorso e seu vômito

Lourdes Nassif
Redatora-chefe no GGN
[email protected]

do Justificando

Artigo publicado em Agosto de 2014

Não quero sua piedade, quero seu remorso e seu vômito

Por Gerivaldo Neiva

Na manhã de ontem, 14/08, um jovem de 15 anos, M.S.S, foi morto com vários tiros na cabeça e sua mãe informou que tinha envolvimento com drogas. Disse, também, que residia há dois anos em outro estado e retornou quando soube que seu filho estaria envolvido com drogas, inclusive fazendo reunião familiar, na véspera, para saber se estava devendo aos traficantes¹.

Em minutos, seu corpo estava sendo alvo de fotos em aparelhos celulares e, em segundos, circulava em redes sociais a imagem de um corpo negro, franzino, olhos abertos, a cabeça crivada de balas e uma poça de sangue misturada com terra.

– Era um “pombo sujo”. Envolvido com drogas. Não tinha futuro, coitado. Este é o mundo das drogas. Não tem caminho de volta. Tão jovem e já perdido na droga. É assim mesmo. Ainda vão morrer muitos. Maldita droga… – Repetiam-se os comentários.

Nada se comenta sobre sua vida, sua história, sua infância, seus pais e irmãos, sua tragédia pessoal e familiar. Nada sobre os açoites que a vida lhe deu. O sofrimento. As noites de solidão. Sua agonia. Sua dor e sua fuga. A busca de um refúgio para suportar as feridas abertas da vida. A saudade do colo e conselhos da mãe. Sua primeira droga. O primeiro cheiro de cola, a primeira dose de cachaça, a primeira cerveja, o primeiro baseado, a primeira pedra de crack. Nada disso importa. Agora, apenas um corpo, um “pombo sujo”…

Na tarde deste mesmo dia, assoberbado de processos para julgar, anunciam-me que M.P. quer falar comigo. Com urgência! O que será?

Conheço M.P, desde quando era adolescente. Hoje deve ter mais de 20 anos. Quando adolescente, tinha um sorriso largo e olhos brilhantes. Furtava casas e vivia sendo preso. Cumpriu diversas medidas. Sabia apenas “desenhar o nome”. Tinha, ainda tem, forte dificuldade de aprendizagem. Sem profissão, trabalhou descarregando cargas, servente de pedreiro, bicos os mais diversos. Para aplacar a dor de sua tragédia pessoal e familiar, usou álcool, tabaco, maconha e, quando chegou no crack, não parou mais. Tornou-se maior de idade, continuou furtando para satisfazer a dependência (gaba-se de nunca ter roubado com violência ou ameaça) e nem sabe quantas vezes já foi preso. Em uma dessas, recebeu a visita íntima da namorada e dessa visita nasceu a pequena V.

Hoje, M.P. não tem mais o sorriso largo e nem o brilho nos olhos. Em contrapartida, tem o lábio queimado do cachimbo e os dedos pretos e queimados. Sua vida não vale nada. Não tem formação escolar e nem profissional. É um delinquente comum. “Ladrãozinho safado”. Para coroar sua inutilidade social, é um ex-presidiário. Penso, quando lhe cobram que trabalhe e seja “honesto”, que deveria responder: Como, senhor, se não sei ler e nem escrever e o poder público se encarregou de me “analfabetizar”? Como, senhora, se não tenho profissão e sou um ex-presidiário?

Enquanto a foto de M.S.S. circulava por aparelhos celulares e fazia a festa no whatsapp, M.P. me confessou que tinha sofrido atentado e que seus antigos fornecedores de pedras de crack iriam lhe matar a qualquer momento. Seus olhos, pela primeira vez, eram de medo. Quanto deve? A voz saiu trêmula de uma cabeça baixa e cambaleante: “800 reais…”

O prefeito da cidade, Francisco de Assis, estava ao meu lado e lhe ofereceu um emprego, em obra de calçamento de ruas, para começar na manhã seguinte. Mesmo sem carteira de trabalho, dá-se um jeito. Sua companheira, também assustada, ficou encarregada de avisar aos fornecedores que agora M.P. vai trabalhar e honrar seu compromisso.

De retorno ao gabinete, enquanto a foto de M.S.S. continua ganhando o mundo, reconheço, sem pudor algum, que acabei de “enxugar” mais uma pedra de gelo e que a água continua a escorrer. Além de M.P. são dezenas de jovens, pobres e periféricos, sem escolaridade e sem profissão, dependentes de drogas para aliviar suas tragédias, que correm o risco de morte.

Recosto a cabeça na cadeira, o peito aperta, respiro fundo para conter o choro e a raiva de não entender por que as pessoas não veem M.P. e M.S.S. a partir de suas tragédias, mas como “pombos sujos” e justificar suas mortes por isso. Por que as pessoas usam a “droga” como causa das mortes e não entendem que elas são apenas a consequência da dor de cada um? Por que insistem nesta política insana de “guerra às drogas” e não veem que é exatamente a proibição e criminalização das drogas que estão matando os meninos? Por que não entendem que não haverá, jamais, um mundo sem drogas, mas que é absolutamente viável um mundo mais justo e solidário e que neste mundo não se mata por dívidas de drogas? Por que não veem, finalmente, que é a miséria, a pobreza, a enorme desigualdade social e a falta de oportunidades que criam os tais “pombos sujos” e que a droga apenas alivia sua dor quando o mundo lhe esqueceu?

Meus olhos marejados, confundindo imagens no teto, vê a imagem de M.S.S. morto. Seu rosto é inocente e sua boca, de forma sarcástica e vingativa, balbucia: não, não quero sua piedade ou compaixão. Não quero que lamentes por mim. Agora é tarde. Quero seu remorso por ter me abandonado, por não ter cuidado de mim, por não ter me educado, por não ter me oferecido oportunidades. Agora, quero sua agonia, sua náusea e seu vômito azedo e fedido sobre seu farto e gostoso almoço.

 

Gerivaldo Neiva é Juiz de Direito (BA), membro da Associação Juízes para a Democracia (AJD), membro da Comissão de Direitos Humanos da Associação de Magistrados Brasileiros (AMB) e Porta-Voz no Brasil do movimento Law Enforcement Against Prohibition (Leap-Brasil).

¹Calila Notícias: Jovem de 15 anos é assassinado com vários tiros na cabeça  

Lourdes Nassif

Redatora-chefe no GGN

2 Comentários

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

  1. Hoje, tehho dúvidas se o

    Hoje, tehho dúvidas se o homem nasceu para eliminar ou amar? Ou será o capitalismo que está transformando o humano em  consumidor até da vida alheia? Hitler buscava, na época, o que a sociedade capitalista busca nestas últimas décadas: a padronização do ser humano. Se não estiver no padrão determinado, é para ser eliminado. Quando se vai a um hospital, percebe-se a diferença de tratamento dispensado ao ser padronizado e ao “não padronizado” pela sociedade consumidora. Vê-se tantas injustiças praticadas pelo corrupto poder judiciário, o maior balcão de negócios da AL, contra os seres “não padronizados”. Vê-se a máfia midiática, com seus analfabetos algozes(datena, rezende e tais), tripudiarem sobre os seres humanos que não são considerados dentro dos padrões do consumo. Me perdoem os que creem em deuses, geralmente capitalistas, mas deuses temos que ser nós mesmos e sermos mais atuantes contra esse novo holocausto patrocinado pelo consumo, pelas máfias que possuem o poder da grana, mas que não possuem o poder da dignidade..

  2. comentario
    O Dr. é Juiz e sabe que sem normas não há sociedade. É impossível. O ser humano é um animal perigosíssimo e só respeita o seu semelhante se estiver concatenado com as normas religiosas (FÉ EM DEUS) ou com as normas feitas pelos homens. Fora disto é o caos. Pior do que todos os Holocaustos ( extermínio dos indígenas, extermínio dos africanos, a barbárie das duas grandes guerras, a vergonhosa e ultra-babárie da escravidão portuguesa no Brasil que está na origem dessas vítimas a quem o meritíssimo se refere neste artigo) é o Holocausto das drogas. Os únicos responsáveis por este extermínio, nunca visto na história da humanidade, são os traficantes, e não estou aqui falando das mulas do tráfico não, estou falando dos atacadistas do tráfico que não são incomodados pelas chamadas autoridades. Pois bem, a Indonésia deu LIÇÃO aos chamados civilizados ocidentais como se deve extirpar este mal pela raiz.. Vê o que se passa hoje com o México?, pois bem se não seguirem o exemplo da Indonésia o Ocidente estará condenado ao FOGO ETERNO DOS TRAFICANTES. A propósito, NÃO ADIANTA ATRIBUIR O RECURSO DAS DROGAS PARA MINIMIZAR AS DORES DA POBREZA, POIS SE SABE QUE QUEM MAIS CONSOME DROGAS, PERPETUANDO O HOLOCAUSTO, É A CHAMADA CLASSE RICA QUE NÃO SENTE NENHUMA DORZINHA DE POBREZA. JÁ PENSOU SE LIBERAM AS DROGAS: É MÉDICO CHEIO DE COCAÍNA TE ATENDENDO, PILOTO DE AVIA COCAINADO, MOTORISTAS COCAINADOS, GERENTE DE BANCO COCAINADO, ENFIM ,TODA SOCIEDADE ZUMBIZADA PELA COCAÍNA E OUTRAS CONGÊNERES. Se Ocidente não reagir, as drogas o destruirá deixando o caminho livre para os orientais.

Você pode fazer o Jornal GGN ser cada vez melhor.

Apoie e faça parte desta caminhada para que ele se torne um veículo cada vez mais respeitado e forte.

Seja um apoiador