Janaína do Brasil, uma vítima do golpe “com o STF com tudo”, por Fábio de Oliveira Ribeiro

Obra de Di Cavalcanti

Janaína do Brasil, uma vítima do golpe “com o STF com tudo”

por Fábio de Oliveira Ribeiro

Não, não vou aqui fazer a apologia ou um ataque a Janaína Paschoal, vulgarmente conhecida no Twitter pelo pseudônimo @JanainaDoBrasil. Farei apenas algumas reflexões sobre a vítima homônima do impedimento de Dilma Rousseff que a “famosa advogada” requereu.

A esterilização forçada de moradora de rua, supostamente usuária de drogas e álcool, despertou um debate realmente interessante:

https://jornalggn.com.br/noticia/corregedoria-e-mp-investigam-juiz-que-determinou-laqueadura-compulsoria-de-mulher

https://jornalggn.com.br/noticia/juristas-pela-democracia-repudia-esterilizacao-forcada

O aspecto mais importante do que ocorreu, contudo, não foi notado: a cor de Janaína Aparecida Quirino. Ela pode ser facilmente descrita como afrodescendente. Nesse sentido é impossível não notar que uma completa inversão de valores ocorreu para que o Brasil continuasse sendo o que sempre foi: um moedor de pobres*.

Enquanto o regime de exploração escravocrata era uma realidade cotidiana, a reprodução dos negros era desejada. Afinal, os filhos deles nasciam para ser escravos e isso provocava um acréscimo no patrimônio dos proprietários dos pais deles. Os negrinhos podiam ser colocados na lida ou até vendidos a preço de mercado.

De fato, o mercado só se deparou com um problema após a promulgação da Lei do Ventre Livre. A partir de 28 de setembro de 1871 os filhos dos escravos se tornaram um produto indesejado. Afinal, doravante os proprietários dos pais deles teriam que alimentar crianças livres que não poderiam gerar qualquer lucro mediante sua exploração ou comércio.

Ao serem retirados do mercado, os negrinhos passaram a ser desumanizados. Relatos da época registram o registro com data retroativa (anterior a Lei do Ventre Livre) para impor a escravidão a crianças livres. Ninguém ficaria surpreso ao descobrir que algumas daquelas crianças negras livres foram simplesmente jogadas nas ruas após serem desmamadas. Isso se ajustaria perfeitamente a lógica do mercado.

Dezessete anos depois do advento Lei do Ventre Livre todos os negros foram libertados e, portanto, jogados na rua sem qualquer indenização. Os pais foram abandonados como seus filhos, mas a reunião das famílias negras após 1888 nunca chegou a se tornar tema literário ou televisivo.

A tragédia de Janaína Aparecida Quirino é, portanto, emblemática. Ela foi esterilizada porque os filhos dela são considerados indesejados exatamente como os antepassados dela. Durante quase quatro séculos o mercado produziu a exclusão através do nascimento e pelo abandono. Agora ele passou a fazer isso através da laqueadura.

Os antepassados de Janaína Aparecida Quirino não tinham direitos, mas eram desejados. Quando ganharam a liberdade eles passaram a ser desprezados porque eram livres e não tinham propriedade. Agora os descendentes deles (dentre os quais a própria Janaína Aparecida Quirino se encontra) não podem nem mesmo ser considerados seres humanos e, portanto, proprietários do seu aparelho reprodutivo.

Os nazistas aprovaram Leis permitindo a esterilização forçada de doentes mentais. Depois eles simplesmente resolveram exterminá-los. No Brasil, os juízes seguiram o caminho inverso. Há décadas as PMs brasileiras exterminam pobres*. Acostumado a legitimar os assassinatos cometidos pelos policiais nas periferias das grandes cidades o Judiciário resolveu inovar: não seria melhor impedir os mulatinhos e negrinhos de nascer antes de transformar nossos policiais em assassinos e nós mesmos em coautores intelectuais daqueles crimes?

Assim que o caso veio a público o juiz disse que a laqueadura foi consentida. No imaginário dele o fato do consentimento ter sido obtido num processo sem participação de advogado é apenas um detalhe irrelevante. Impossível deixar de notar a ironia. Alguns juízes brasileiros querem apaziguar a má consciência fazendo algo que um nazista no início da década de 1930 faria de consciência tranquila.

Uma coisa é certa: o “golpe com o STF com tudo” está produzindo resultados. Alguém ficará surpreso se os juízes começarem a realizar processos secretos e a aprovar listas de cidadãos que devem ser simplesmente exterminados porque ousam debater os abusos que eles cometem?

 

*Pobres neste caso é evidentemente um eufemismo para afrodescendente ou descendente de índio.

 

Fábio de Oliveira Ribeiro

4 Comentários

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  1. Perpétua

    Agora que a pena de caráter perpétuo em apreço já foi consumada contra a Janaína Aparecida Quirino, resta colocar uma lupa cidadã sobre a ação que o CNJ e quem mais de direito irá tomar, para que o juiz e o promotor responsáveis por esse ato nazifascista sejam demitidos, a bem do serviço público, entre outras responsabilizações civis e penais cabíveis em um país civilizado. 

  2. Agora em qualquer esquina,

    Agora em qualquer esquina, qualquer juiz decide não só sobre o bem e o mal. Decide sobre a vida e a morte. Com Supremo e tudo. Gostei muito do texto do professor Fábio.

  3. Acabou qualquer chance de

    Acabou qualquer chance de diálogo com essa raça maldita do judiciário. Só a guilhotina resolve essa situação. E não, não estou usando uma hipérbole.

  4. Um pouco do que nos foi passado

    Sr. Fábio de Oliveira Ribeiro, parabéns pelo excelente texto. Ele me fez lembrar o ocorrido com minha bisavó materna, Cândida, que, embora nascida em 1881, portanto livre, sua mãe continuava escrava e foi colocada para fora da fazenda com os filhos nos primeiros meses após da abolição. Todos os escravos da fazenda foram substituídos, gradativamente, por imigrantes. Quando esse fato ocorreu, a mãe da minha bisavó (não consegui me lembrar do nome), embora nova, já tinha quatro filhos, sendo os dois primeiros, fruto de reprodução que ocorria em fazenda próxima daquela onde ela era escrava. Sabemos que era na região da cidade de Vassouras-RJ, mão não ficamos sabendo o nome da fazenda. Dessa fazenda, a família foi para a periferia de uma vila próxima e, devido as dificuldades de sobrevivência, foi obrigada a deixar dois dos filhos sob o cuidado de amigos, também ex-escravos. Sabemos que um deles migrou para o interior de São Paulo para trabalhar na construção de estradas de ferro e do outro não se teve mais notícia ou minha bisavó não se lembrou, quando narrava para seus descendentes parte da história da família. Minha bisavó teve três filhos e veio a falecer em 1966, já amparada pelo genro, João, meu avô materno, casado durante toda a vida com minha avó materna, Percília. Minha bisavó dizia que sua mãe morreu de desgosto por não ter conseguido viver com todos os seus filhos.

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