Lava Jato, ou o retorno dos juristas da Décima Nona Dinastia do Egito

O processo do Triplex seguiu um tortuoso caminho midiático-jurídico que pode ser resumido da seguinte maneira:

1- Jornalistas do O Globo acusaram Lula de ter recebido o Triplex em troca de vantagens conferidas à construtora quando era presidente da república;

https://oglobo.globo.com/politica/caso-bancoop-triplex-do-casal-lula-esta-atrasado-3041591

https://oglobo.globo.com/brasil/cooperativa-entrega-triplex-de-lula-mas-tres-mil-ainda-esperam-imovel-14761809

2- Deltan Delagnol faz uma conferência de imprensa revelando, através de um PowerPoint, que Lula era o chefe de uma organização criminosa, tendo recebido o Triplex em pagamento por favores concedidos à construtora.

http://www.tribunapr.com.br/noticias/politica/mpf-lula-foi-o-comandante-maximo-do-esquema-de-corrupcao-na-petrobras/

3- Sérgio Moro condenou Lula conferindo valor probatório indiscutível a matéria jornalística do O Globo e ao PowerPoint de Deltan Delagnol e ignorando a prova documental e testemunhal que demonstraram que Lula nunca recebeu a posse ou a propriedade do imóvel.

http://www.patrialatina.com.br/provas-ora-provas-disse-o-justiceiro-vestido-de-juiz/

https://jornalggn.com.br/blog/fabio-de-oliveira-ribeiro/triplex-um-caso-de-%E2%80%9Csci-fi-justice%E2%80%9D-por-fabio-de-oliveira-ribeiro

https://jornalggn.com.br/blog/fabio-de-oliveira-ribeiro/triplex-um-caso-tipico-de-literatura-fantastica-por-fabio-de-oliveira-ribeiro

http://folhadiferenciada.blogspot.com.br/2017/10/a-era-dos-juizes-007-e-dos.html

4- A condenação foi comemorada pela imprensa. Os jornalistas exigiram a manutenção da sentença de Sérgio Moro e se limitaram a discutir as consequências da condenação de Lula pelo TRF-4.

https://oglobo.globo.com/brasil/o-globo-revelou-existencia-de-triplex-reservado-pela-oas-para-lula-22322321

http://politica.estadao.com.br/blogs/fausto-macedo/os-efeitos-juridicos-da-eventual-condenacao-de-lula-no-trf-4/

5- O TRF-4 atendeu a imprensa e manteve a sentença condenatória na integra. Um dos desembargadores chegou a dizer que a discussão acerca da posse e propriedade do Triplex era uma questão irrelevante. A decisão não me surpreendeu.

https://www.cartacapital.com.br/politica/por-unanimidade-trf-4-confirma-condenacao-de-moro-contra-lula

https://jornalggn.com.br/blog/fabio-de-oliveira-ribeiro/trf-4-sem-ruptura-a-justica-nao-sera-feita-por-fabio-de-oliveira-ribeiro

6- A imprensa comemorou a decisão do TRF-4 e começou a pressionar o STJ a negar o HC interposto por Lula para evitar a prisão antes do trânsito em julgado da condenação.

https://g1.globo.com/politica/noticia/julgamento-recurso-de-lula-no-trf-4-decisao-desembargadores-da-8-turma.ghtml

https://eleicoes.uol.com.br/2018/noticias/2018/03/05/analise-tendencia-e-stj-negar-habeas-corpus-de-lula.htm

7- Após o espetáculo grotesco do STJ, a imprensa começou a pressionar o STF a permitir a prisão de Lula antes do julgamento do HC. A data da prisão foi sugerida por um articulista de O Globo.

https://jornalggn.com.br/blog/fabio-de-oliveira-ribeiro/da-justica-do-espetaculo-a-espetacularizacao-grotesca-da-prepotencia-judiciaria-por-fabio-de-oliv

https://oglobo.globo.com/brasil/lula-apos-ter-habeas-corpus-negado-stf-passa-ser-ultima-alternativa-para-evitar-prisao-22463057

https://www.oantagonista.com/brasil/lula-preso-no-dia-14-ou-21/

http://www.tijolaco.com.br/blog/merval-marca-data-para-prisao-de-lula-primeira-semana-de-marco/

8- Carmem Lúcia se recusa a pautar o HC de Lula em abril para possibilitar sua prisão em março ou no mês seguinte.

https://oglobo.globo.com/brasil/carmen-lucia-nao-inclui-habeas-corpus-de-lula-na-pauta-de-abril-22474811

9 – O dono da Rede Globo, que parece até uma divindade que se auto encarregou de julgar Lula, vai pessoalmente aos escribas do STF comunicar a decisão que tomou no HC de Lula https://www.brasil247.com/pt/247/midiatech/347811/Jo%C3%A3o-Roberto-Marinho-vai-a-Bras%C3%ADlia-para-STF-manter-2%C2%AA-inst%C3%A2ncia.htm#.WrGkDlWyniQ.twitter

A primeira coisa que salta ao olhos no processo espetáculo do Triplex é a utilização do jornalismo como fonte do Direito e/ou como prova dos fatos que foram enunciados pelos jornalistas. O art. 4º, da Lei de Introdução ao Código Civil (atualmente denominada Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro), prescreve que:

“Art. 4o  Quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito.”

No Brasil as fontes do Direito são a Lei, a analogia, os costumes e os princípios gerais do Direito. Mesmo não tendo sido referidos pelo legislador, também são consideradas fontes do Direito a jurisprudência (a interpretação da Lei pelos Tribunais) e a doutrina (as obras escritas pelos juristas renomados e pelos estudiosos do fenômeno jurídico). O jornalismo, portanto, não é fonte do Direito. Nesse sentido:

“Oficialmente, os jornalistas são tratados como geradores de opiniões juridicamente irrelevantes.” (Teoria da argumentação jurídica, Fábio P. Shecaira e Noel Struchiner, editora da PUC Rio, Rio de Janeiro, 1ª edição, 2016, p. 56).

Matérias jornalísticas não fazem provas dos fatos que enunciam. No máximo elas provam que o jornalista cometeu um crime contra a honra ou causou dano moral á pessoa referida no texto.

Todavia, no caso do Triplex é evidente para qualquer pessoa isenta de paixão que o Judiciário está sendo pautado pela imprensa. Lula foi acusado pelo O Globo, jornal que desde então milita pela preservação da condenação justificando todos os abusos que foram cometidos no processo. Não por acaso o jornal comemorou um destes abusos: a utilização de seu material jornalístico como prova incontestável do crime e da autoria com valor jurídico superior ao atribuído por Sérgio Moro e pelo TRF-4 à prova documental e testemunhal de que Lula nunca teve a posse e propriedade do apartamento.

A vitória do jornal O Globo na primeira e na segunda instância equivale à derrocada final dos princípios constitucionais do Direito Penal, dentre eles o que garante ao acusado o direito de ser julgado por um juiz independente. A pressão jornalística feita sobre o STJ e o STF para que Lula não receba Habeas Corpus é revoltante. Mais revoltante ainda é a maneira como os Ministros destes dois Tribunais se sujeitaram às demandas de O Globo.

Tudo se passa como se Lula não tivesse direito a ter os mesmos direitos que são conferidos aos cidadãos pela CF/88, pela Declaração dos Direitos do Homem e pelo Pacto de San José da Costa Rica.  A submissão à imprensa exibida vergonhosamente pelo Judiciário brasileiro no caso de Lula ficou evidente desde o princípio. Ele foi condenado com base numa matéria do O Globo, jornal que unilateralmente decidiu que Lula deve ser preso antes do julgamento de seu HC.

Mas esta não é uma história de vilões e bandidos como quer fazer parecer O Globo. De fato, os verdadeiros bandidos desta história são os próprios jornalistas, que deliberadamente trabalham de maneira incansável para fragilizar os princípios constitucionais do Direito Penal para fustigar os adversários políticos do jornal. Os donos do O Globo, portanto, foram elevados acima do bem e do mal por seus empregados. Os membros do clã Marinho agem como se fossem deuses com poder de decidir quem deve ser preso e quem não deve ir para a prisão. Curiosamente, eles mesmos deveriam ter sido presos a mando do Judiciário que conseguiram submeter https://www.youtube.com/watch?v=NFutXykL2tk.

A regressão nos padrões jurídicos do Direito Penal brasileiro é um fato evidente. Rubens Casara escreveu um livro sobre o Estado Pós-Democrático https://www.ocafezinho.com/2017/10/19/uma-resenha-do-novo-livro-de-rubens-casara-estado-pos-democratico/, Pedro Estevam Serrano dissertou sobre o Estado de Exceção https://jornalggn.com.br/blog/fabio-de-oliveira-ribeiro/pedro-estevam-serrano-x-tupinambas-togados, Afrânio Jardim clama por um legalismo revolucionário https://jornalggn.com.br/blog/fabio-de-oliveira-ribeiro/afranio-jardim-e-a-revolucao-pelo-direito e Paulo Sérgio Pinheiro humilhou o TRF-4 dizendo que o julgamento do Triplex “foi uma grande farsa” http://www.redebrasilatual.com.br/politica/2018/01/foi-uma-grande-farsa-diz-ex-ministro-de-fhc-sobre-condenacao-lula.

Há algum tempo, aqui mesmo no GGN, mencionei que sofremos uma regressão aos padrões jurídicos medievais a propósito da condenação do almirante Othon Pinheiro https://jornalggn.com.br/blog/fabio-de-oliveira-ribeiro/o-sujeito-escreve-que-e-aquilo-e-vira-verdade-por-fabio-de-oliveira-ribeiro. Todavia hoje encontrei algo interessante que nos permite refletir melhor sobre a divinização jurídica do clã Marinho e o poder que eles exercem sobre o Judiciário brasileiro.

“From the Nineteenth Dynasty onwards, perhaps as a sign of reaction against the unsuccessful religious reforms of King Amenophis IV (1375-1358), we see quite diferente kind of procedure developing, a procedure which may be described as a deterioration and which was later abolished. A god was made the judge in the action and his will was ascertaind by cerimonies which ir is difficult for us to understand, and which possibly consistend of rhythmical dances. Tke, for instance, the case of a man whose garments have been stolen. He would appel to King Amenophis I, who had been long dead and who was worshiped as a god. A list of all the inhabitants of the village was read aloud before the statue of the deified king. Upon the reading of one name the god would make a sign to indicate that this was the thief. The person indicated would deny the accusation and appel to another god, who might also decide against him. He would then continue to deny everything, but might be condemned again by Amenophis, Thereupon he would be beaten until he confessed and swore never to repudiate his confession. Judgements rendered by a god have existed in many nations at various times; but it would appear that Egyptians of the Nineteenth and following dynasties made the most consistent attempt to build up a whole law of procedure upon the omniscience of the deity.

Criminal law and criminal procedure were inhuman. In contrast to the Jewish law which limited corporal punishment to forty strokes, one hundred strokes was the ordinary punishment in Egypt. Torture was often used, not only upon the accused, but also upon independent witness. Strange forms of capital punishment seem to have been practised, such as leaving the prisioner to be eaten by crocodiles. It was a special favour to allow a convicted criminal to commit suicide. Numbers of criminals, with their ears and noses cut off, were condemned for forced labor in concentration colonies on the frontiers of the country. A thief furthermore had to pay a mutiple of the value of the stolen chattel – a penalty which also can be paralleled in the Code of Hammurabi and in the Oldest Roman law.” (The Legacy of Egypt, edited by S.R.K. Glanville, Oxford at the Clarendon Press, printed in Great Britain, 1957, p. 205/206)

Tradução:

“A partir da Décima Nona Dinastia, talvez como sinal de reação contra as reformas religiosas mal sucedidas de Amenophis IV (1375-1358 aC), vemos um processo bastante diferente, um procedimento que pode ser descrito como uma deterioração e que foi mais tarde abolido. Um deus é feito juiz da ação e a manifestação de sua vontade é assegurada por cerimônias que nós dificilmente conseguimos entender e que possivelmente consistem em danças rítmicas. Por exemplo, o caso de um homem cujas roupas foram roubadas. Ele chamaria o rei Amenophis I, que havia morrido há muito tempo e que era adorado como um deus. Uma lista de todos os habitantes da aldeia foi lida em voz alta diante da estátua do rei deificado. Após a leitura de um nome, o deus faria um sinal para indicar que este era o ladrão. A pessoa indicada negaria a acusação e convocaria outro deus, que também poderia decidir contra ele. Ele continuaria a negar tudo, mas poderia ser condenado novamente por Amenophis, então ele seria espancado até confessar e jurar nunca repudiar sua confissão. Os julgamentos feitos por um deus existiram em muitas nações em vários momentos; mas parece que os egípcios da décima nona e das dinastias seguintes fizeram a tentativa mais consistente de construir toda uma lei processual baseada na onisciência da deidade.

O direito penal e o processo penal eram desumanos. Em contraste com a lei judaica que limitava o castigo corporal a quarenta chibatadas, cem chibatadas eram o castigo comum no Egito. A tortura foi freqüentemente usada, não só no acusado, mas também nas testemunhas independentes. Formas estranhas de pena capital parecem ter sido praticadas, como deixar o prisioneiro a ser comido por crocodilos. Era um favor especial permitir que um criminoso condenado cometesse suicídio. Inúmeros criminosos, com as orelhas e os narizes cortados, foram condenados por trabalho forçado em colônias concentradas nas fronteiras do país. Um ladrão, além disso, teve que pagar um valor do valor da coisa roubada – uma penalidade que também pode ser encontrada no Código de Hamurabi e na Lei Romana mais antiga.”

Monopolista e extremamente concentrada, a imprensa brasileira praticamente conseguiu cortar as orelhas, os narizes e os olhos de dezenas de milhões de cidadãos brasileiros. Em razão da propaganda política anti-petista disfarçada de jornalismo isento, a maioria silenciosa – ou seja, os consumidores incautos do ódio programático disseminado diariamente através de imagens de alta resolução e de textos mais ou menos sofisticados – não consegue ver o que realmente está ocorrendo. É fato, os brasileiros sequer conseguem sentir o cheiro de que estamos diante de “uma grande farsa” como disse Paulo Sérgio Pinheiro. Diariamente eles são instigados a não dar ouvidos às poucas vozes dissonantes na internet e no mundo jurídico.

Foi essa pena imposta ao respeitável público que possibilitou a regressão do nosso Direito Penal aos padrões jurídicos do Egito da Décima Nona Dinastia. Os deuses oniscientes que condenaram Lula à prisão, sem direito a HC, não estão nem no MPF, nem na Justiça Federal ou no STJ e STF. Divinizados por seus empregados, os membros do clã Marinho atuam nos bastidores. Os jornalistas são os arautos de sua vontade jurídica irrevogável que se impõe aos escribas do Judiciário como decisão irresistível.

O suicídio é um favor especial concedido a Lula, como no caso do Egito da Décima Nona Dinastia. O ex-presidente, porém, rejeitou expressamente a mercê razão pela qual seguirá sendo devorado impiedosamente pelo crocodilo virtual* até que seja metido numa prisão como ordenaram os deuses onipotentes que comandam o processo-espetáculo vulgarmente denominado Lava Jato. O que mais devemos esperar nas próximas semanas? A exibição de Lula sendo chicoteado pela delegada Érika Marena numa cela da Papuda?

 

*Portal G1

 

PS: O jornalista Merval Pereira forneceu a prova que faltava para confirmar minha tese: https://www.diariodocentrodomundo.com.br/audio-em-ato-falho-merval-pereira-diz-que-a-gente-vai-ter-que-decidir-sobre-a-prisao-de-lula-apos-julgamento-do-hc-no-stf/. O julgamento do Triplex segue o rito jurídico criado pela Décima Nona Dinastia do Egito. O processo será julgado por uma divindade (o dono da Rede Globo), do qual Merval é o sumo-sacerdote e arauto. Os ministros do STF serão obrigados a se resignar as decisões do deus anunciadas pelo arauto como se fossem meros escribas. 

 

Fábio de Oliveira Ribeiro

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