Metáfora do “rosa e azul” de Damares nega direitos fundamentais, diz socióloga

Cintia Alves
Cintia Alves é graduada em jornalismo (2012) e pós-graduada em Gestão de Mídias Digitais (2018). Certificada em treinamento executivo para jornalistas (2023) pela Craig Newmark Graduate School of Journalism, da CUNY (The City University of New York). É editora e atua no Jornal GGN desde 2014.
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Por Berenice Bento

No Justificando

Damares: uma metáfora de ministra?

Metáfora, aquilo que não é, mas torna-se por analogia.  Uma mistura de deboche e incredibilidade foram as reações às declarações efusivas da ministra Damares Alves que decretou uma “Nova Era” no Brasil. Seria ela uma ministra de Estado? O grotesco de sua declaração de que a era do binarismo de gênero ocupará a centralidade de sua gestão seria apropriado para uma Ministra de Estado? Após uma onda piadas, memes e artigos a ministra explicou melhor: usou as cores (“menino usa azul, menina usa rosa”) como metáfora. O que então, a Ministra queria dizer? O que a analogia com as cores nos revela?
 
1º) Um recado, principalmente, para os movimentos trans, de que no governo Bolsonaro não haverá qualquer espaço para o debate ou formulação de políticas públicas para assegurar o bem-estar físico e mental desta população. A metáfora da ministra se materializou imediatamente em ato político: a não inclusão da população GLBT na nova estrutura organizacional do Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanose a retirada da cartilha “Homens Trans: vamos falar sobre prevenção de infecções sexualmente transmissíveis” do site do Ministério da Saúde.
 
2º.) Há muito que os feminismos vem discutindo os efeitos nefastos das assimetrias hierarquizadas de gênero. Seja nos espaços públicos ou privados, o feminino é construído como o lócus da passividade, emotividade, irracionalidade. Em contrapartida, ao masculino são reservados os espaços de poder na esfera pública porque se supõe que a masculinidade seria a morada natural dos atributos necessários para lidar com tomada de decisões (racionalidade, frieza, atividade). No entanto, a organização dos coletivos T (mulheres transexuais, homens transexuais, travestis, transgêneros) e dos não–binários empurrou o debate para outro nível. A condição para se ter reconhecimento social seria, nos termos da metáfora das cores da ministra, ter uma corpo sexuado (menino-pênis, menina-vagina) que lhes daria a permissão de fala.Nos últimos anos as identidades trans e as não-binárias passaram a estruturar novas gramáticas morais que deslocam os sentidos hegemônicos das identidades de gênero. Não se trata mais de se ter um “corpo sexual coerente” que seguiria esta linha de continuidade:
 
vagina=mulher=feminilidade=maternidade
 
pênis=homem=masculinidade=paternidade
 
As existências trans demandam que o Estado reconheça as diferenças das identidades de gênero, sem ter como passaporte autorizativo para transitar no mundo público a posse de um corpo-sexuado “coerente”, como o defendido pelos ideólogos da “ideologia de gênero”.
 
3º) As políticas públicas, no que se referem ao gênero e sexualidade, estarão voltadas para pôr ordem ao caos, reestabelecer o desejo da natureza, porque ela sabe tudo: os corpos são naturalmente heterossexuais. A natureza aqui pode ser substituída por “Deus”. Será que os/as porta-vozes da natureza sabem que todos os dias nas maternidades brasileiras nascem bebes sem a prevalência de características biológicas de um determinado sexo? Todos os dias, mães, pais, enfermeiras, médicos lidam com o dilema de terem diante de si corpos que encarnam os limites do dimorfismo sexual.  Nestes corpos os padrões anatômicos, a mais sólida convicção dos ideólogos da “ideologia de gênero”para se definir o sexo da criança na certidão de nascimento,evapora-se no ar.
 
A mãe que esperou ansiosa a sábia natureza fazer seu trabalho, frustra-se. Não é uma menina porque tem o clitóris com alguns milímetros a mais do estabelecido pelo poder médico. Tampouco é menino porque tem um pênis menor do o convencionado. Esta é apenas uma das múltiplas variações dos caracteres sexuais que não estão “em conformidade” com o dimorfismo sexual hegemônico. A intersexualidade é o lugar onde a tese dos ideólogos da “ideologia de gênero” colapsam definitivamente. E quem irá “consertar” os erros da natureza? Serão as instituições sociais que se encarregarão de produzir feminilidade ou masculinidade, dependendo da escolha que se faça sobre o destino de gênero da criança.
 
4º) A fala da saltitante ministra explicita o óbvio: gênero e sexualidade dizem respeito às relações de poder. Aliás, a todo o momento os ideólogos da “ideologia de gênero” reafirmam o que dizem combater. Quando esbravejam: “A família é a responsável por discutir sexualidade e gênero!!”, estão reafirmando que a produção destas identidades é função de uma instituição social: a família. Não se trata de uma discussão biológica, mas de quem pode falar sobre, quem tem autorização para decidir. O que está posto é uma disputa política de quais identidades de gênero e sexuais têm direito a existência, quais serão objeto de politicas públicas. De certa forma, é um tipo de reedição dos debates que marcaram a história do Brasil sobre quais sujeitos merecem habitar o Estado-Nação, quais serão objeto de cuidado pelo Estado e quais devem ser eliminados.
 
5º) O que muda? Agora o Poder Executivo se posicionou abertamente a favor de uma determinada concepção de gênero e sexualidade que tem como fundamento para suas “teorias” a Bíblia.
 
As cores são a metáfora de uma concepção de gênero e sexualidade que nega direitos fundamentais àqueles que divergem da posição dos ideólogos da “ideologia de gênero”. E qual seria a melhor metáfora para explicar a ministra? Ao tentarmos encontrar uma política, uma estadista, que entende o caráter laico do Estado, nos termos da Constituição Federal, encontramos uma pastora que declarou aos gritos de “aleluia” e “glória a Deus”, que “o Estado é laico, mas esta ministra é terrivelmente cristã”, numa alusão a orientação que deverá permear a gestão Bolsonaro nas questões que dizem respeito a laicidade do estado brasileiro. Nãose trata, portanto, de uma metáfora mas de uma antítese. E aqui talvez tenhamos que sair do mundo das figuras de linguagens, para entrar no mundo das figuras grotescas.
 
Berenice Bento é doutora em Sociologia/UnB
Cintia Alves

Cintia Alves é graduada em jornalismo (2012) e pós-graduada em Gestão de Mídias Digitais (2018). Certificada em treinamento executivo para jornalistas (2023) pela Craig Newmark Graduate School of Journalism, da CUNY (The City University of New York). É editora e atua no Jornal GGN desde 2014.

7 Comentários

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  1. Finalmente alguém entende que

    Finalmente alguém entende que “menino veste azul, menina veste rosa” não tem nada a ver com roupa. Estava cansado dessa idiotice. Significa simplesmente: menino é menino, menina é menina e acabou. Quem não se adapta a isso que se lasque.

    1. Palhaço errado…

      Mas o Bolsonaro definitivamente não é o Bozo, por mais que o discurso em Davos tente nos convencer disso.

      O Bolsonaro é o Pennywise, como vai sendo demonstrado pela revelações da famiglia com as milícias cariocas.

  2. A opressão é cor-de-rosa

    Que um dos alvos da retórica – e das ações – do bolsonarismo é a população trans, acho que não há a menor dúvida.

    Mas o discurso do azul e cor-de-rosa, mais do que negar os direitos e a própria existência da minoria trans, nega os direitos e a própria existência da “metade maior” da população: as mulheres.

    Por que se menina veste rosa, também lugar de menina é em casa (e não chefiando ministério, viu, dona Damares?) Se menina veste rosa, é por que as mulheres não passam de um acessório, de propriedade dos homens. 

    Se é uma metáfora, é uma metáfora disso: há papéis diferentes para homens e mulheres, e os papéis das mulheres são menores, menos numerosos, mais limitados, e menos recompensadores que os papéis dos homens. Do contrário, não há como entender como metáfora.

    A metáfora é simplesmente essa: lugar de mulher é na cozinha. E por isso a escola pública não tem de dar palpite: é só à família que cabe a reprodução da ideologia de gênero, é só à família que cabe colocar as mulheres no seu devido lugar. (A escola pública não tem como fazer isso, até por que ela está repleta de mulheres “no lugar errado”, trabalhando fora em vez de cuidar dos próprio filhos – um péssimo exemplo para um país que, pelo jeito como vota, aparentemente pretende restabelecer a moralidade vitoriana em toda sua plenitude…)

  3. essaa turma tipo damares a

    essaa turma tipo damares a tudo demoniza,

    inclusive a ela mesma….

    por isso é qu esempre em cada palavra dessa turma o diabo diz, rindo:

    TÁ  TUDO DOMINADO….

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