Matê da Luz: Mudanças, transformações e laroyê, Exu

Matê da Luz: Mudanças, transformações e laroyê, Exu

Recentemente, como alguns já sabem se acompanham os registros aqui escritos, mudei da umbanda pro candomblé. Também mudei de São Paulo para Ubatuba e, desde então, venho vivenciando experiências de transformação potentes e, é claro, experienciando as enormes diferenças de viver em uma cidade muito, mas muito menor do que a capital.

Uma das coisas que mais me chama atenção nessa troca é a relação que se estabelece entre os indivíduos e, então, a religião acaba aparecendo muito mais como fator diferencial do que nos grandes centros. Por aqui, já sou apontada como “a nova filha de santo do ilê do Pai, aquele do maracatu”, e isso não é necessariamente ruim. Prova disso é que tive que comprar tecido para confeccionar minha saia e candomblé e, então, fui até a lojinha no centro da cidade. O atendimento é feito pelo próprio dono da loja e, então, ao perceber que só seleciono tecidos brancos, ele lança: “ah, você é a nova filha do ilê lá de cima, né? Vai fazer saia de ração também? Aqui, ó, leva este, este e este outro, e como é pro axé, te dou um metro de cada de presente. Se precisar do figurino do grupo de maracatu também, é só falar, encomendo os acabamentos pra você e combinamos um desconto, tá?”.

Macumbeiro, só pode ser, logo pensei. Agradeci muito, convidei para a festa de Ogum que acontecera naquele final de semana e, para minha enorme surpresa, ele respondeu: “obrigada pelo convite, mas tenho evento na igreja. Sou evangélico e honro meu compromisso dentro do templo, sabe?, mas também fora dele, reconhecendo toda fé como uma fé que vale ser vivida.”

Quase chorei e perguntei de onde vinha tanta liberdade, já que candomblé é normalmente visto com preconceito, especialmente pelos praticantes das religiosidades crísticas. Ele rebateu com o argumento mais bonito que poderia escutar e, então, troco aqui com vocês, deixando um conto do Reginaldo Prandi sobre Exu, o rei da controversa e que encabeça de longe a listinha do preconceito, logo abaixo, pra que a gente pare de ter preconceito com aquilo que não conhece e, ao invés de gastar essa energia criticando e julgando o outro, invista em estudar e entender.

“Respeito porque escolhi meu caminho com segurança, amor, conhecimento. Não tenho medo das práticas de vocês, estudei algumas coisas e apesar de não combinar com o meu dia a dia, entendo que são somente maneiras diferentes de chegar ao mesmo lugar, que é essa calmaria de conviver com gente de tudo quanto é tipo”.

Viva a informação e obrigada, mundo, por apresentar gente assim no meu caminho.

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Exú ganha o poder sobre as encruzilhadas
 

Exu não tinha riqueza, não tinha fazenda, não tinha rio, não tinha profissão, nem artes, nem missão.
Exu vagabundeava pelo mundo sem paradeiro.
Então um dia, Exu passou a ir à casa de Oxalá.
Ia à casa de Oxalá todos os dias.
Na casa de Oxalá, exu se distraia, 
vendo o velho fabricando os seres humanos.
Muitos e muitos também vinham visitar Oxalá,
mas ali ficavam pouco.
Quatro dias, oito dias, e nada aprendiam.
Traziam oferendas, viam o velho orixá,
apreciavam sua obra e partiam.
Exu ficou na casa de Oxalá dezesseis anos.
Exu prestava muita atenção na modelagem
e aprendeu como Oxalá fabricava
as mãos, os pés, a boca, os olhos, o pênis dos homens,
as mãos, os pés, a boca, os olhos, a vagina das mulheres.
Durante dezesseis anos ali ficou ajudando o velho orixá.
Exu não perguntava.
Exu observava.
Exu prestava atenção.
Exu aprendeu tudo.
Um dia Oxalá disse a Exu para ir postar-se na encruzilhada por onde passavam os que vinham à sua casa.
Para fica ali e não deixar passar quem não trouxesse
uma oferenda a Oxalá.
Cada vez mais havia mais humanos para Oxalá fazer.
Oxalá não queria perder tempo
recolhendo os presentes que todos lhe ofereciam.
Oxalá nem tinha tempo para as visitas.
Exu tinha aprendido tudo e agora podia ajudar Oxalá.
Exu coletava os ebós para Oxalá.
Exu recebia as oferendas e as entregava a Oxalá.
Exu fazia bem o seu trabalho
e Oxalá decidiu recompensá-lo.
Assim, quem viesse à casa de Oxalá
teria que pagar também alguma coisa a Exu.
Quem estivesse voltando da casa de Oxalá
também pagaria alguma coisa a Exu.
Exu mantinha-se sempre a postos
guardando a casa de Oxalá.
Armado de um ogó, poderoso porrete,
afastava os indesejáveis
e punia quem tentasse burlar sua vigilância.
Exu trabalhava demais e fez ali sua casa,
ali na encruzilhada.
Ganhou uma rendosa profissão, ganhou seu lugar, sua casa.
Exu ficou rico e poderoso.
Ninguém pode mais passar pela encruzilhada
sem pagar alguma coisa a Exu.

 

Mariana A. Nassif

6 Comentários

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  1. Também fiquei emocionada

    com a postura desse senhor evangélico. Tão lindo isso! Entender que as diferentes religiões são apenas caminhos diferentes para chegar no mesmo lugar. Tribos diferentes, todas filhas do mesmo Pai. E até as religiões, que não gostam de ser chamadas de religião, que não têm Deus, como o budismo. Também agradeço a Deus por encontrar autores de textos assim em meu caminho.l

  2. Maravilha, Matê da Luz.
    Se um

    Maravilha, Matê da Luz.

    Se um dia, por conta de um argueiro qualquer tiver que abjurar do ateísmo, suspeito ter encontrado um remanso onde apoitar a velha catraia.

    Orlando

  3. Vibrei com sua ousadia.

    Parabéns – Matê!

    Lendo-a, se percebe um ir a Exu e um voltar a racionalidade aristótelica-hegeliana!

    Um perder-se em Exu, e um encontrar-se na escrita analítica, a quel foi apenas suplementada por Prandi.

    Ou ambos simultaneamente, me perdi!

    Exu parace estar aquém do bem e do mal, não além como buscou Nietzsche. 

    Aquém, porque escolhe o bem e o mal segundo as nececidades e as possibilidades.

    Talvel, daí equilibrio das pulsões de vida e de morte, que rasga as couraças que insistem-se em cercear a vida. 

    Com iso, a alegira e a tristeza são oferecidas em encruzinhadas pelas Deusa Fortuna.

  4. 16 “odús”

        Os “contos” do Prof. Prandi , alguns deles oriundos de seu estágio com o já falecido Pai Doda de Ossain, com o qual ele deu variás obrigações – Prandi é tipo um Obá de Ilê – devem ser interpretados, não somente pelo pessoal da religião, mas pelo que explicam.

         Os “16 anos” que o Orisá Esú passou com Oxalá, nesta tradição gege ( na tradição de ketú, a história muda ), significam em tese, os 16 odús que são de Esú, referentes ao jogo opelé de Ifá.

          Filha, o caminho não é apenas longo, é eterno, um constante aprendizado, muitas vezes não será “bonito”, já quanto ao “evangélico compreensivo”, é comum, encontrei varios, inclusive dentro de um terreiro.

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