Na visão de Darcy Ribeiro, “fomos nós que criamos o problema indígena”, por Roberto Bitencourt da Silva

Foto – Valter Campanato/Ag. Brasil

Na visão de Darcy Ribeiro, “fomos nós que criamos o problema indígena”

por Roberto Bitencourt da Silva

Em meio às notícias de horror e de ameaças de extermínio das populações indígenas, como recentemente ocorrido no Maranhão, notícias que nos chegam parca e timidamente das regiões distantes do nosso autocentrado mundo sudestino, não é exagero afirmar que os graves problemas que envolvem os nossos coirmãos pátrios são absolutamente desprezados pelas luzes da agenda midiática massiva e comercial. Ocioso mencionar as razões.

Raras são as notícias produzidas e veiculadas ao eixo mais urbanizado do País. Quando nos chegam são as mais pavorosas possíveis, expressando os agudos conflitos de terras que têm no agronegócio, nas madeireiras e na grilagem os personagens centrais das atrocidades e ilegalidades que assombram as vidas dos povos indígenas. Estes, costumeiramente, abandonados pelo Estado, destituídos do abrigo protetor da lei e da justiça.  

Nesse sentido, tropeçando na leitura de fecundos escritos de Darcy Ribeiro (1922-1997) – grande pensador social, militante político e antropólogo brasileiro, notório estudioso das populações indígenas brasileiras – reproduzo abaixo curto fragmento de texto seu.

Redigido e publicado no início da década de 1990, o texto do então senador Darcy Ribeiro (PDT/RJ), infelizmente, parece ter sido escrito há poucos dias. Evidentemente não tendo sido, nem por isso deixa de iluminar antigos e renitentes problemas que afetam a vida indígena. Problemas que são de responsabilidade do conjunto da sociedade brasileira, como oportunamente chama a atenção Darcy. As soluções, igualmente. O texto segue abaixo.

Roberto Bitencourt da Silva – historiador e cientista político.

Publicado no Diário Liberdade.

 

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“Integração sem assimilação”.

Extraído do livro O Brasil como problema, de Darcy Ribeiro, São Paulo, editora Global, 2ª edição, 2015 (1ª edição de 1995), páginas 91-93.

Quando voltei do exílio, anos atrás, a primeira batalha que tive no Brasil, na minha velha luta em defesa das populações indígenas, foi tão estranha que custei a situar-me e entender o que se passava. O presidente [Ernesto] Geisel, descendente de pais alemães, se considerava um bom brasileiro, tão bom que chegara à presidência da república, mas estranhava muito que os índios teimassem em permanecer índios. Desencadeou, assim, um movimento chamado ‘emancipação dos índios’, uma das coisas mais brutais de que tive notícia.

Geisel dizia: ‘Por que esses índios se mantêm nessa mania de serem índios? Meu pai e minha mãe são alemães. Eu falei só alemão até os 12 anos de idade e hoje sou um brasileiro. Esses índios teimam em ser índios, provavelmente porque são induzidos a isso pelos missionários e pelos funcionários do serviço de proteção’. Concluía disso que lhe cumpria decretar imperialmente que as tribos indígenas aculturadas deixassem de ser indígenas para passarem a ser comunidades brasileiras comuns. Essa ‘emancipação’ compulsória importaria para os índios na perda de suas terras, na perda de qualquer direito ao amparo compensatório e, portanto, em sua dizimação.

Diante de povos indígenas que sobreviveram a séculos da opressão mais terrível, cuja simples existência pareceria inverossímil se eles não estivessem aí a nos mostrar que sobreviveram, nos cumpre uma atitude mínima de respeito. A falsa emancipação geiseliana seria uma nova onda de perseguição. Embora já não contando com as armas maiores da guerra, da escravidão e da contaminação propositada, contava com todo o poder opressivo de um Estado moderno, deliberado a destruí-los.

A maioria dos povos indígenas se acha integrada na sociedade nacional que os envolve e submetida ao seu sistema de dominação política, que não os incorpora à brasilidade, nem os assimila à cultura e à etnia brasileiras. Mas mantém com eles uma interação ativa, seja no plano comercial que os obriga a produzir mercadorias que lhes permitam comer e comprar o que necessitam; seja no plano social, que os submete à autoridade de um prefeito, de um delegado de polícia; seja no plano jurídico, que cai sobre suas comunidades como uma camisa de força; seja no plano burocrático, que os submete a um órgão de proteção com o poder total de ampará-los ou de aniquilá-los.

A grande novidade do estudo que fiz na década de 1950 para a Unesco foi mostrar que não há nenhuma assimilação indígena. Esperava-se de mim que mostrasse que as relações dos índios com os não índios no Brasil constituíam um padrão de democracia racial. Tal se supunha que ocorresse, também, com os negros. Nossa pesquisa mostrou que, em nenhum lugar, nenhuma comunidade indígena se converteu, jamais, numa comunidade brasileira. Cada grupo indígena permaneceu com sua identificação étnica, por mais aculturado que chegasse a ser.

O índio vive a situação desesperada de quem não quer identificar-se com a sociedade nacional, de quem se nega a dissolver-se nela, mas que precisa, igualmente, do seu amparo compensatório. E é um amparo que só o Estado pode dar e deve dar, mesmo porque o problema indígena somos nós, que invadimos suas terras e destruímos suas vidas. Fomos nós que criamos o problema indígena. Somos nós os agressores. Nós, em consequência, é que lhes devemos esse amparo oficial e legal – o único que pode garantir condições de sobrevivência.

Como sobreviveram e aí estão, nos cabe a nós atentar para eles, saber o que reivindicam primariamente, ouvir suas vozes a nos dizer: ‘Estamos aqui. Somos os primeiros. Somos habitantes originais dessas terras. O que necessitamos é que não nos persigam tanto, que nos reconheçam a posse das terras em que estamos assentados. É o direito de viver, segundo nossos costumes’. Esse é o seu drama. Essa é a questão indígena do Brasil, hoje, aqui, agora.

Darcy Ribeiro.

Redação

8 Comentários

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  1. grande Darcy
    Faltou só acrescentar em sua apresentação do Darcy Ribeiro que, mais do que exilado fisicamente pela ditadura, ele foi exilado de nossa “academia”.Sua extensa produção foi relegada ao esquecimento, em prol das “novas” correntes antropológicas, sempre importadas e seus ventrículos de plantão. Obrigado por trazê-lo à luz, nesta hora em que vemos todos os (poucos)direitos conquistados por nossos indígenas,inclusive o direito à vida, seriamente ameaçados pela canalha golpista e seus asseclas.

  2. De 1990 até hoje vivenciamos

    De 1990 até hoje vivenciamos as maiores investidas internacionais relacionadas ao indigenismo e ao ambientalismo no Brasil. Tendo sido objeto inclusive de CPI’s no congresso e de diversas publicações do MSIA. O Brasil tem enormes áreas protegidas de floresta Amazônica e indígenas, como a  famigerada “Nação” Yanomami.

    Milhares de ONG’s, exército francês, coroa britânica, CIA e o escambau habitam na região amazônica. Muito dinheiro Europeu chega até as ONG’s para “ajudar” na preservação do patrimônio material e imaterial das florestas. Os índios se dividem em aqueles absolvidos pelo Brasil, os “isolados” e aqueles incorporados ao mundo globalizado (falam francês, inglês, etc, só não falam português).

    Abdicar de integrar os indígenas, entregar a Amazônia legal a estrangeiros (SIVAM), pouco investir em ciência e tecnologia na região, achar que as ONG’s internacionais são as mais aptas a cuidar da região, manter o Norte pouco povoado, etc. Acho que tudo isso transformará a Amazônia em zona de litígio internacional em breve, e terá como consequ~encia sua divisão ou a tornará zona internacional como a Antártica.

    O Governo Federal acabou de abrir licitação internacional para monitoramento da Amazônia (78milhões). Segundo profissionais do INPE esse valor é muita acima do recebido pela instituição nos últimos 30 anos para monitorar as queimadas e o desmtamento na região.

    Ou seja, com a privatização do satélite estacionário, com o SIVAM, com o monitoramento satelital por empresas privadas podemos dar adeus ao sonho de um dia tirar proveito da amazônia para o desenvolvimento nacional. capacidade hidroelétrica, escoamento da produção para o Pacífico, terras raras, Nióbio, biodiversidade, agricultura, etc. Tudo isso ficará sobre controle privado.

    Os índios são apenas uma variável numa equação complexa que envolve a conquista de uma região riquíssima e mal aproveitada pelos brasileiros. A elite sudestina, alienada e servil como sempre, será a responsável pela total perda de soberania do Brasil na região Amazônica.

    1. de….

      Caro sr. Victor, ainda bem que não existem apenas inocentes beste assunto. Parabéns. Gostaria que as ongs estrangeiras mostrassem como seus paóses de origem lidaram com o assunto indigena. Na maioiria só tem exterminio e limpeza étnica para mostrarem. Como o sr. cita, os interesses são muito mais amplos. abs. 

  3. darcy….

    Darcy Ribeiro é a nossa elite que nunca assume ser elite. Sempre viveu de um belo cargo público, por largas indicações. Diversas vezes foi governo e nunca mudou a realidade citada. mas sabemos, o problema eram sempre os outros. Assim como as elites. O indigena brasileiro é um cidadão brasileiro. Se conforme sua vida, necessitado de supervisão e proteção. De terceiros. Se inserido à sociedade contemporânea, tutelado por terceiros da mesma forma. O gargalo esta aí. Voltaremos a 1500? Então devolvamos as terras paulistas e paulistanas aos indigenas que habitam os bairros de Parelheiros e Jaraguá na cidade de São Paulo. Ou que estão de sul ao norte da Serra do Mar. Ou no centro do RJ, no Maracanã. Ah, tem indios nestes lugares? Mas estes não interessam para nossa Gestapo Ideológica e seus interesses usando os direitos dos indios. Nos preocupamos com os indigenas brasileiros? Comecemos por nossos irmãos que são nossos vizinhos. Fizemos casas em cima das suas terras. Aí a história muda !! Ninguém pode dar lição ao Brasil neste assunto. Precisamos melhorar e direcionar políticas mais conviventes a esta gente. E isto a Constituição Cidadã não fez. E não é só dar mais terra. Muito mais importante é dar apoio e condições de vida. Não existe país do planeta com tantas terras indigenas protegidas, com tantos povos indigenas, com legislaçao tão abrangente, com povos, em pleno 2017, que vivem de forma isolada. Melhorar, precisamos. Mas não somos os párias neste assunto. Somos exemplo.  

    1. Se é para devolver as terras

      Se é para devolver as terras de Pinheiros, de não sei da onde, então que se devolva, as terras são dos índios e acabou!

      Foram roubadas, esbulhadas pelos invasores, agora temos um governo velhaco, corrupto, elitista, atrasado, a FUNAI que deveria proteger e resguardar os interesses dos índios, é dirigida por um obtuso que afirma “os índios estão parados no tempo”, um sujeito que quer escancarar as terras dos índios aos mineradores, ao capitalismo explorador e de quinta categoria engendrado no Brasil, afirmando que as terras são da União, que conversa cara, União não existe, existe seus donos, muitos grileiros, invasores.

       

      Não tem conversa, as terras dos índios têm de ser demarcadas e não adianta este ministro da justiça horroroso, filho de imigrantes que vieram ao Brasil para “fazer a América”, como todos nós, querer completar a destruição dos povos índigenas, verdadeiros donos das terras brasileiras.

       

      1. Extrapolando conceitos extemporânios

        Todos repetem facilmente essa história de que “os índios são os verdadeiros donos das terras”, “o Brasil não foi descoberto, mas invadido”, etc. Parece uma verdade óbvia. Mas é uma conclusão apressada obtida pela aplicação de conceitos de propriedade e nacionalidade que não se aplicavam ao Brasil do século 16.

        Dito assim, fica parecendo que em 1500 havia aqui um país com fronteiras definidas e propriedades delimitadas, habitado por um povo chamado “índio”, até que um dia o português chegou, invadiu a terra tal como um exército estrangeiro invade um país, e expulsou os índios assim como jagunços expulsam posseiros.

        O primeiro erro está em achar que lá por 1500 havia aqui um país e um povo. O que existia de fato era uma região geográfica habitada por numerosos povos tribais semi-nômades, sem afinidades entre si, que viviam em constante luta, sem nenhum tipo de federação que os unisse. Praticavam uma agricultura de queimada, quando praticavam alguma forma de agricultura, e não tinham propriedades delimitadas. Nesse contexto não se pode falar de invasão, pois o território era, de fato, uma imensa terra devoluta. Tanto os índios não se sentiram invadidos, que receberam amistosamente os recém-chegados, achando um grande negócio trocar toras de madeira de uma árvore muito comum ali por artefatos de metal que os permitiam passar instantaneamente da Idade da Pedra à Idade do Ferro. Algumas tribos se aliaram aos portugueses, e outras, inimigas daquelas, se aliaram aos franceses. As guerras entre índios e portugueses foram um desdobramento da guerra destes contra os franceses, e não uma suposta reação dos índios contra o suposto invasor branco.

        Antes de se discutir quem é dono do país e da terra, é preciso estabelecer os conceitos de país e propriedade privada. O conceito de estado-nação, como se sabe, surgiu no século18, na Europa do iluminismo, sendo desconhecido dos índios do século 16. Por esta época também se estabeleceu a definição moderna de propriedade privada, delimitada, escriturada e tributada pelo Estado. Esses conceitos não podem ser extrapolados para épocas e locais onde não existiam, isso é uma mistificação barata.

  4. Darcy. Saudades.
    Resolvi ler

    Darcy. Saudades.

    Resolvi ler seu “O Povo Brasileiro”, para ver se emtendo melhor aonde erramos e se temos alguma esperança no futuro…

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