Kucinski, das lutas jornalísticas às denúncias sobre tortura

Jornal GGN – “Antes de 1964 não havia no Brasil nenhuma proposta de luta armada da esquerda”. Não acredite que o golpe militar ocorreu em resposta a radicalização dos movimentos de esquerda. É o que defende Bernardo Kucinski, considerado um dos mais experientes e respeitados jornalistas do país. Físico de formação na USP, ele foi levado para o jornalismo a convite do amigo Raimundo Pereira, editor do Amanhã, já em meio à ditadura militar. Durante sua participação no especial “50 anos do Golpe Militar”, do programa Brasilianas.org de 17 de março, na TV Brasil, Kucinski desmistificou a carga de culpa que os movimentos à esquerda recebem pelo Golpe Militar de 31 de março de 1964.
 
Sua tese é de que a radicalização política partiu da direita, somente. “A ideia da revolução existia como uma ideia genérica, dentro do ambiente geral de rebeldia (…), mas as ações principais eram de mudanças que partiam do cultural, da educação, das reformas”, rebateu ao apresentador Luis Nassif. Kucinsci destacou que a juventude universitária de então mantinha um fascínio pela Revolução Cubana, mas sua forma de agir era através de ações sociais, como as caravanas para disseminar a educação de adultos utilizando o método Paulo Freire. 
 
No período que antecedeu ao Golpe de 1964 também surgiram os trabalhos de intelectuais que estavam repensando o Brasil, como Celso Furtado, Sérgio Buarque de Holanda e o próprio Fernando Henrique Cardoso, nas palavras de Kucinski. “Essa radicalização [que resultou na derrubada de João Goulart] vem da concepção americana da Guerra Fria, quando eles se assustam com qualquer sintoma de reformismo, a exemplo da privatização de uma empresa americana pelo Leonel Brizola, no Rio Grande do Sul e a atuação das ligas camponesas no nordeste”, ponderou. 
 
No final da década de 1960, Kucinski se sentiu obrigado a se exilar na Inglaterra por ter participado do mapeamento da tortura no Brasil, em duas reportagens publicadas na revista Veja. O jornalista contou que o trabalho, apoiado então pelo editor da revista Mino Carta, foi apresentado para o presidente recém-empossado Emílio Garrastazu Médici que havia prometido durante sua tomada do poder que não toleraria mais torturas. 
 
“Então nós bolamos uma série para ajudar o presidente Médici a não permitir que houvesse tortura. Quer dizer, nós íamos levar para ele os casos. Esse foi um pouco truque, um pouco também a forma como a gente trabalhou”. A matéria não surtiu o efeito esperado pela revista e, a partir da primeira metade dos anos 1970, a opressão do regime militar se intensifica no país. Até então, os registros de tortura das matérias eram “coisas pálidas” frente ao que aconteceria depois contra militantes de esquerda, pois ainda não existia a Operação Bandeirante (OBAN), organização financiada por empresários de São Paulo, que depois se transformará no DOI-CODI.
 
Nessa época, que antecede os anos 1970, parte considerável dos meios de comunicação que haviam apoiado o golpe militar em 1964 começavam a criticar o regime. Por isso, Kucinski avaliou que a publicação das duas capas sobre o dossiê da tortura no país foi o momento dado para que todos os jornais aproveitassem para divulgar sistematicamente os terríveis esquemas de perseguição, tortura e morte. “Mas a nossa imprensa não seguiu e ficamos pendurados na brocha”. Assim, Kucinski culpa fortemente os grandes meios de comunicação brasileiros pelo número de mortes que ocorrerão até o final da ditadura militar.
 
A seguir, acompanhe a transcrição e o vídeo da entrevista completos: 
 
Nassif – Gostaria que você situasse um pouco aquele ambiente político na USP [Universidade de São Paulo], a partir de 1964, quando você começa a cursar física e, antes mesmo disso, a partir dos anos 1960, como no meio estudantil se sentia aquela movimentação política?
 
Bernardo Kucinski – Aqueles eram anos de rebeldia, de muita transformação social na juventude, não apenas no Brasil, eram os anos da rebeldia nos Estados Unidos, os anos dos hippies, o ambiente em que surge a pílula, então toda a sexualidade também muda. Era a época da guerra do Vietnã, época dos movimentos negros. A rebeldia era a palavra de ordem. Eu creio que no nosso caso brasileiro, na USP, em especial quando eu entrei, coincide com a época também em que os filhos dos imigrantes estão chegando à universidade, o pessoal do interior, os japoneses, os filhos dos italianos. Eles se tornam cidadãos no mundo na universidade. É a descoberta do mundo.
 
[Para] uma pessoa que estava na USP, nos anos 1960, foram os anos formativos dela, os anos marcantes que ficaram para sempre. Havia também um processo de participação no interior, principalmente estudantes que iam fazer alfabetização de adultos, por exemplo. Muitos dos futuros combatentes da luta armada começaram a atividade política nos cursos de alfabetização que usavam o método Paulo Freire.
 
Nassif – Quer dizer que a questão da miséria, do Nordeste, era elemento presente…
 
Bernardo Kucinski – Sim. Havia os CPCs [Centros Populares de Cultura, associados à União Nacional dos Estudantes], aqueles grupos de teatro que iam para o interior. E, também, na própria universidade, foi um período que estavam repensando o Brasil, o período dos grandes intelectuais, Celso Furtado, Sérgio Buarque [de Holanda], Fernando Henrique. Foi o período que criaram a Universidade de Brasília. Então esse é o ambiente que se tinha na época que veio [antecedente ao] golpe [de 31 de março de 1964].
 
Nassif – E os grupos que eram dominantes na política universitária? 
 
Bernardo Kucinski – Eu não tinha uma afinidade direta com grupos políticos, mas o grupo mais famoso quando eu entro na universidade era o Polop [Organização Revolucionária Marxista Política Operária].
 
Nassif – Que era uma dissidência da AP, Ação Popular, que veio da Igreja [Católica]?
 
Bernardo Kucinski – Não sei se era da AP, mas era um grupo de formação mais trotskista, não era da linha stalinista. Na minha visão você tem duas mães desses movimentos todos, a Igreja Católica e o Partido Comunista. Ou os grupos vinham de um ou de outro. Então da Igreja Católica vem AP e, do Partido Comunista, acabam vindo as dissidências, a ALN [Aliança Libertadora Nacional], os próprios trotskistas são uma dissidência…
 
Nassif – Nós gravamos um depoimento do ex-senador [Roberto] Saturnino Braga. Ele foi eleito deputado lá em 1962. E, naquele clima maluco da época, ele diz que até hoje não tem uma explicação clara para a radicalização do Partido Comunista. Ele acha que era aquele clima de Guerra Fria, um pouco aquela ilusão de Cuba… Você sentia aquela radicalização?
 
Bernardo Kucinski – Eu não acho houve radicalização do Partido Comunista. Na minha visão a radicalização vem da direita.
 
Nassif – Então, digamos, aquela radicalização que veio da esquerda é uma reação à radicalização da direita?
 
Bernardo Kucinski – Não. A radicalização vem da direita. Na minha percepção da época, nós tínhamos um grande movimento pelas reformas de base, que era um movimento reformista…
 
Nassif – E tinham clareza de quais eram essas reformas?
 
Bernardo Kucinski – Eram as grandes bandeiras, a reforma agrária, a reforma do ensino, entende?
 
Nassif – Ou seja, veio o Juscelino [Kubitschek], com aquela industrialização concentradora de renda, daí entra o ajuste que o Jango [João Goulart] pretendia.
 
Bernardo Kucinski – Tanto assim que, no famoso discurso da Central do Brasil [realizado por Jango em 13 de março de 1964, no Rio de Janeiro], que deflagrou o golpe [militar em 31 de março de 1964], o Jango anuncia a estatização das terras ao longo das estradas. Então, uma das bandeiras era que as terras ao longo das estradas, valorizadas, teriam que ser objeto de reforma agrária.
 
Na minha visão a radicalização vem da direita. O que estava acontecendo no Brasil era um
ascenso das forças populares. Por exemplo, a bancada do PTB [Partido Trabalhista Brasileiro], que era o partido popular da época, o equivalente ao PT hoje, era uma bancada que a cada eleição crescia. E, quando veio o golpe, ele é cortado em 30% do Congresso, porque na próxima eleição teriam 40 [por cento]. Então a radicalização é uma coisa que veio da direita e, na minha visão ela vem de uma concepção americana de Guerra Fria, que eles se assustam com qualquer sintoma de reformismo, especialmente se o sintoma é acompanhado com elementos de nacionalismo. Houve, por exemplo, uma nacionalização de uma empresa americana pelo [Leonel] Brizola [então governador do Estado do Rio Grande do Sul]. Os americanos se assustaram muito com o movimento das ligas camponesas, do Francisco Julião [organizações dos camponeses do Brasil que começaram a ser formadas pelo Partido Comunista do Brasil em 1946]…
 
Nassif – Pois é, outro dia publique até um trabalho do Wanderley Guilherme dos Santos, de 1962, prevendo o golpe. Ele tinha ido junto com o Carlos Araújo [ex-marido da presidente Dilma Rousseff] para o Nordeste para escrever sobre as ligas camponesas. No relato viram que ali não tinha a menor estrutura [para uma revolução], agora a imprensa e a direita criavam os fantasmas e a esquerda acreditava nos fantasmas?
 
Bernardo Kucinski – A esquerda não, mas os americanos sim. Mas, na verdade, os americanos acreditavam porque para eles era bom acreditar naquilo. Tem que entender que a coisa é a coisa da Guerra Fria, e ela começa nos anos 1950. Então, no mesmo ano em que o Getúlio [Vargas] comete suicídio [1954] – e veja que a carta dele fala do nacionalismo e do imperialismo…
 
Nassif – Das perdas internacionais…
 
Bernardo Kucinski – Nesse mesmo ano [1954] os americanos invadem a Guatemala, derrubam o governo de Jacobo Arbenz. Era um governo democraticamente eleito, mas que tinha nacionalizado uma empresa bananeira. Nesse mesmo ano eles derrubam Mohammed Mossadegh [primeiro-ministro] no Irã, democraticamente eleito, mas que tinha nacionalizado o petróleo e alguns anos depois [1965], eles organizam um golpe na Indonésia que leva à chacina de todos os comunistas do país, mataram milhares de pessoas. Então, a Guerra Fria é determinante e ela combina com interesse americano de rejeitar qualquer tipo de nacionalismo que vai contra o interesse de empresas deles (…). A radicalização, então, é essa, que criminaliza qualquer movimento reformista.
 
Nassif – Agora vamos pegar o Jango. Ele oscilava entre uma posição mais conciliadora e uma posição mais de confronto, puxada pelo Brizola, Darcy Ribeiro e tudo… Como vocês da planície da universidade viam o Jango?
 
Bernardo Kucinski – Eu não acho que o Jango foi um personagem importante nessa história toda. Porque a juventude estava em outra, ela estava com o povo, estava nas ações de base. O Jango era um governo, inclusive, que estava tapando um buraco. O Jânio [Quadros] renunciou [em 25 de agosto de 1961] e o Jango foi para o governo [por ser, então, vice-presidente]. O papel que eu atribuo ao Jango foi de fomentar a desordem. No sentido de que, quando ele assume, assume sobre um pacto que foi imposto sobre ele, o parlamentarismo (…). O Jango passa todo o tempo dele mostrando que o parlamentarismo não funciona. Então entra um primeiro ministro, não dá certo, em seguida outro. E, com isso, ele contribui para criar um clima de desordem que também ajudou a preparar o golpe. Assim o papel dele foi negativo nesse sentido. Ele nunca foi um revolucionário, as propostas que ele tinha não eram revolucionárias e nem acho que havia uma articulação muito forte entre jango-janguismo e qualquer movimento revolucionário.
 
Nassif – Houve um clima de anticomunismo ali, se a gente for até comparar essa questão do “bolivarismo” tipo Arnaldo Jabor, o anticomunismo foi usado quase como uma peça de dramaturgia para espalhar ódio e temor…
 
Bernardo Kucinski – Para justificar intervenções americanas…
 
Nassif – Sim, mas antes disso se criou uma exacerbação na classe média, militares, nas Marchas de Deus com a família, padre [Patrick] Peyton, que fui um negócio articulado, mas que trouxe um clima de ódio também. A gente pega [hoje] o governo Lula e Dilma – até outro dia estava falando, republicanismo ingênuo -, não entram em nenhuma dividida. Agora, lá atrás, quando você tem a radicalização da direita e você tem a radicalização da esquerda como contraponto, não acaba fazendo o jogo que essa direita queria?
 
Bernardo Kucinski – Acho que não adiantaria ter feito nada, nada, nada. Não adiantaria você ter sido mais moderado, não ter aceito provocações, nada! O jogo já estava dado. O jogo é dado quando tem a Revolução Cubana [1959], Na verdade antes, como falei, em 1954, quando tem a invasão da Guatemala.
 
Nassif – Outro dia achei um livro com um artigo do Afonso Arinos [de Melo Franco, jurista, político e historiador], que era da UDN [União Democrática Nacional], prevendo o golpe também, falando da exploração do anticomunismo, dizendo que desde o encontro do [Nikita] Khrushchov e [John F.] Kennedy, depois do episódio da Baía dos Porcos [Cuba, em 1961], acabou a Guerra Fria, em 1963. Mas, no entanto, continuou a exploração da ideia do anticomunismo, que se o governo [do Brasil] não mostrasse firmeza isso terminaria em golpe militar. Quer dizer essa sensação de fim da Guerra Fria a partir do encontro Khrushchov e Kennedy não chegou a ser sentida pelo movimento estudantil?
 
Bernardo Kucinski – Não. O que havia no movimento estudantil era um grande fascínio pela Revolução Cubana. Então acho que a ideia da revolução existia, como uma ideia genérica, dentro do ambiente geral de rebeldia. Mudar a sociedade! Mas as ações principais eram de mudanças que partiam do cultural, da educação, das reformas. Não havia no Brasil nenhuma proposta de luta armada antes de 1964. Não há registro de nenhuma organização que propõe luta armada antes de 1964.
 
Nassif – Lembro de um versinho do Paulo de Tarso [Santos, ministro da Educação no governo Goulart]: “Paulo, ó Paulo! Vamos fazer revolução!”. Isso era uma coisa mais retórica? Quem representava junto ao movimento estudantil as lideranças reformistas, as mais radicais, os gurus dos discursos antigos?
 
Bernardo Kucinski – A minha lembrança daquele tempo não trabalha bem com isso que você está colocando. Mas eu sei, por exemplo, que o Ministro da Educação, Paulo de Tarso, disseminou pelo Brasil o programa de educação de adultos pelo método Paulo Freire. Esse programa foi muito importante e ele foi visto pelas classes dominantes como uma coisa comunista importante. Então, veja, acho que esse é um bom exemplo para ver como a coisa funcionava. É um programa de educação de adultos, que utiliza um método de conscientização, mas não é nenhum programa de revolução, de luta armada, de derrubar o sistema, mas ele é visto como uma ameaça pelas classes dirigentes, então ele tem que ser cortado.
 
Nassif – Estava vendo uma entrevista de um empresário venezuelano, Santos Vahlis, ligado ao Jango e ao Brizola, ele iria comprar [o jornal] ‘A Noite’, no Rio de Janeiro, e o IBAD [Instituto Brasileiro de Ação Democrática] acabou comprando a opinião do jornal ‘A Noite’. O Vahlis chegou a ser preso antes de 1964, a ser colocado nu em uma cela sob acusação de ter feito uma naturalização irregular. Quer dizer, apesar de ter o governo Jango, você tinha um aparato de repressão subterrâneo contra os forças de esquerda, do ponto de vista da polícia e da polícia militar, né?
 
Bernardo Kucinski – Eu estava vendo outro dia em um livro, a repressão à esquerda é um fator estruturante de todas as polícias brasileiras desde 1922, desde a formação do Partido Comunista. É uma coisa como se fosse uma missão permanente das forças policiais brasileiras…
 
Nassif – Àquele negócio do inimigo externo, daquela lenda de que o [Luís Carlos] Prestes obedeceria mais a Rússia do que ao Brasil…
 
Bernardo Kucinski – Exato. O comunismo já é o inimigo permanente no Brasil desde os anos 1920, assim como para as Forças Armadas a Argentina vai ser a hipótese de guerra principal, que nunca se realizou. Na repressão, então, os fichamentos, os acompanhamentos dos imigrantes que vinham de fora, tudo sempre em função de combater o comunismo. Isso estava mesmo entranhado.
 
Nassif – Quer dizer, não é em 1935 que começa o anticomunismo?
 
Bernardo Kucinski – Nem com o Golpe, é de antes.
 
Nassif – Hoje o Partido Comunista tem pouca expressão, mas no seu tempo era a única estrutura nacional. Dentro da estrutura estudantil, com as dissidências, com aquele balanço dos crimes do [Josef] Stalin [ex-líder da União Soviética], ele [o PC] manteve durante algum tempo a hegemonia? Ou nos anos 1960, no meio estudantil, ele já esta em segundo plano?
 
Bernardo Kucinski – Eu não sou um especialista nisso, nem vivi isso diretamente, mas ele tinha as principais influências. As mais organizadas eram a dissidência estudantil, que logo vai conseguir a dissolução dela com a formação da ALN, embora não tenha sido um processo mecânico de que uma tenha virado a outra. E a dissidência estudantil é Partido Comunista, são os seus quadros que vão formar a ALN quase que ao mesmo tempo.
 
Nassif – Como era o ambiente do jornalismo daquela época? Você entra quando [nessa função]?
 
Bernardo Kucinski – É preciso que se diga que o golpe militar foi dado com a cobertura de um discurso supostamente democrático, que era um golpe para preservar a democracia. Então isso vai criando toda uma ambiguidade, desde o começo, não existe um aparato de censura sistemática e, de 1964 até 1968, há relativa liberdade de imprensa. Há muita arbitrariedade de órgãos específicos, em Goiás, no Nordeste, prisão de estudante na universidade, mas também há muitos episódios de denúncia na imprensa, tem livros…
 
É um período muito conflituoso, de muita insegurança, muito medo, mas há uma margem de ação que o jornalista pode usar se ele quiser, dependendo também da empresa que ele está naquele momento. Quando os governadores que apoiaram o golpe acabam se rebelando contra os militares e formam a Frente Ampla [grupo político reunindo Carlos Lacerda e seus antigos adversários Juscelino Kubitschek e João Goulart contra o Regime Militar], se da o rompimento entre a elite paulistana que apoiou ao golpe e aos golpistas.
 
Os Mesquitas [proprietários do jornal Estado de São Paulo] rompem com os militares e aí os jornais são submetidos à censura prévia. A censura à imprensa atingiu pouquíssimos jornais de forma sistemática, em períodos também curtos, não muito longos, e quase que a maioria esmagadora dos jornais brasileiros nunca foi submetida a uma censura material, física. Recebiam alguns telefonemas. O que funcionava mais era o medo de alguns empresários e o próprio apoio que os empresários davam ao golpe. Então se estabeleceu, na verdade, um conflito entre a função do jornalista e o alinhamento político dos proprietários. Quer dizer, como proprietários de um meio de informação, eles tinham que vender uma boa informação, razoavelmente boa, mas como dirigentes de órgãos de comunicação, de um sistema político que acabou de dizer não à liberdade, eles têm que contemporizar.
 
Nassif – Tenho uma história muito interessante que foi me relatada pelo Delfim Neto e pelo  Walther Moreira Salles. Tentaram cassar [o cargo político] do Doutor Walther e não conseguiram, então o Delfim vai tentar negociar com o Walther para ver se conseguia, o Linus Pauling, figura mítica da CBS e TV norte-americana, fazer um especial sobre o Brasil. Depois que tudo estava negociado, o Pauling liga para o doutor Walther e diz: “não vai dar, porque os jornalistas daqui se forem aí vão querer falar sobre as prisões, sobre a ditadura…”. Ou seja, essa questão dos princípios jornalísticos nas empresas norte-americanas tinham também seu peso… Agora aqui, como você consegue fazer a série de denuncias sobre tortura?
 
Bernardo Kucinski – Primeiro eu me engajei um pouco por acaso e um pouco pelo meu temperamento, na imprensa alternativa do Amanhã, que era um jornal do Grêmio de Filosofia, criado para combater o golpe. Depois que fui para a Editora Abril. Lá surgiu um grupo em torno do Raimundo [Pereira] que foi editor do Amanhã, o [Dirceu] Brizola, Elio Gaspari. Foi um grupo muito ativo e com fontes…
 
Nassif – Com o Mini [Carta] dirigindo a Veja?
 
Bernardo Kucinski – Sim. Nesse momento há um conflito no meio militar por causa da sucessão do [Marechal Artur da] Costa e Silva [afastado por um derrame cerebral em 1979]. Chega a haver uma eleição dentro do exército em que um oficial nacionalista, [Afonso de Albuquerque Lima] se coloca candidato…
 
Nassif – Nacionalista, mas de linha duríssima…
 
Bernardo Kucinski – Sim, nacionalista, mas de direita. E há um racha no exército e a Veja cobriu. Ninguém tinha essas informações, e nós tínhamos. Essa equipe vai se impondo dentro da revista e com o apoio do Mino Carta que, na minha opinião, é diferente da maioria dos editores brasileiros, porque é de fato um liberal, digamos, na linha do liberal italiano. Num certo momento foi tomada [nessa equipe] a decisão de fazer um dossiê sobre as torturas porque o presidente [Emílio Garrastazu] Médici tinha dito a um jornalista do Rio, quando ele assumiu: “no meu governo não admitirei torturas”. 
 
Nassif – Então foi uma luz verde para a imprensa denunciar o governo anterior?
 
Bernardo Kucinski – Sim. Então nós bolamos uma série para ajudar o presidente Médici a não permitir que houvesse tortura. Quer dizer, nós íamos levar para ele os casos. Esse foi um pouco truque, um pouco também a forma como a gente trabalhou. Então soltamos os cachorros no Brasil inteiro, reunimos as histórias e saiu uma primeira capa, depois uma segunda capa.
 
Nassif – Chegou a ter duas capas?
 
Bernardo Kucinski – Aí eu acho que foi o momento do fracasso da imprensa brasileira. Eu tive uma sensação aguda que se naquele momento o resto da imprensa seguisse a direção que a Veja estava dando, talvez [nós da imprensa] teríamos interrompido esse processo terrível que houve depois de desaparecimento, de mortes… Mas a nossa imprensa não seguiu.
 
Nassif – Nem o Estadão, com a tradição dele?
 
Bernardo Kucinski – Não. Ninguém seguiu da forma como deveria, e ficamos pendurados na brocha. Tanto assim que depois a equipe teve que sair da Veja. Ficou isolada. Para você ter uma ideia quando o [empresário Fernando] Gasparian abre um processo…
 
Nassif – O Fernando Gasparian que criou o [jornal] Opinião?
 
Bernardo Kucinski – Quando ele abre um processo contra a censura no Opinião, e o Estadão também tem censura e deveria apoiar, não o faz. Ele [o Estadão] não quer ser identificado com aquele processo do Opinião. Aquele momento da segunda capa de Veja em que o resto da imprensa poderia [ter seguido], foi o momento de desgosto e a minha percepção de que a Veja tinha ficado isolada.
 
Nassif – Junto à linha dura vocês ficaram evidentes?
 
Bernardo Kucinski – Ficamos, porque depois o Raimundo [Pereira] fez uma entrevista com o Ministro do Planejamento [João Paulo dos] Reis Velloso…
 
Nassif – Que era um sopro também de liberalismo naquele mar…
 
Bernardo Kucinski – Mas ele [Raimundo] fez uma entrevista com o Reis Velloso que o próprio Reis Velloso e o governo argumentaram que o Raimundo falseou a entrevista, que cometeu um desvio ético. Criaram um caso. E, aí a nossa equipe teve que sair. Eu fui para a Inglaterra, o Raimundo foi para a [revista] Realidade. Alguns ficaram, como Elio Gaspari e o Dirceu Brizola.
 
Nassif – Quando eu chego para trabalhar na revista Veja nos anos 1970 encontro o Brizola e o Elio, acho, estava no Rio.
 
Bernardo Kucinski – Eu fui para a Inglaterra, minha mulher [também] precisava fazer doutorado.
 
Nassif – Lá você vai trabalhar no Guardian?
 
Bernardo Kucinski – Não, eu fui para a BBC [de Londres]. Mas quando eu fui para a Inglaterra levei comigo uma cópia do dossiê – uma havia sido entregue para o Medici. É interessante porque quando o Médici faz aquele discurso [contra a tortura], foi totalmente hipócrita, porque naquele momento a cúpula já tinha decidido, digamos entre aspas, pela solução final. Foi um momento da radicalização. Foi o momento em que a cúpula do exército se sentiu já de posse de todos os elementos para fazer uma repressão mais forte. Nós, então, surrupiamos uma cópia desse dossiê e com ele, eu e o Italo [Arnaldo] Tronca, escrevemos um livro denunciando as torturas e depois publicamos no exterior  que foi publicado no Brasil agora, há dois meses atrás [Pau-de-arara, a violência militar no Brasil].
 
Nassif – Muitos relatos de tortura e desaparecimento?
 
Bernardo Kucinski – Uma coisa interessante nesse livro [é que] embora ele já tenha relatos de torturas chocantes, ele não é nada frente ao que aconteceria depois. Porque ele fecha em 1970, quando ainda está se formando a OBAN, a Operação Bandeirante, [organização que perseguia militantes de esquerda financiada por empresários de São Paulo], que depois vai virar o DOI-CODI [Destacamento de Operações de Informações do Centro de Operações de Defesa Interna].
 
Nassif – Então eram relatos chocantes no nível da repressão até então…
 
Bernardo Kucinski – É, mas era uma coisa a pálida frente ao que aconteceria depois.
 
Nassif – E como chegava na Inglaterra esse recrudescimento da tortura no Brasil?
 
Bernardo Kucinski – Eu acho que, no exterior, a ditadura brasileira sempre foi vista com uma certa negligência. Um misto de complacência com negligência. Primeiro, mais uma ditadura de uma república bananeira, naquele continente que está cheio de ditadores. Sabe? Segundo, os interesses econômicos. As pessoas às vezes não se lembram que à época da ditadura foi também a época do milagre econômico. Aliás, um dos fundamentos, digamos econômicos do golpe, foi fazer as reformas econômicas necessárias ao milagre. Então o primeiro ato econômico dos militares foi eliminar garantia do emprego e criar o FTGS, depois eles criam o sistema financeiro de habitação e vários instrumentos que vão abrir caminho para o milagre. Então, até 1968, é o período da recessão que tem o objetivo de destruir o ineficiente, quebra os empresários nacionais que tinham certo protecionismo. Aí também entra o fator do interesse imperialista, de quebrar esse núcleo. O milagre que veio depois foi realmente um período extraordinário de crescimento de até 12% ao ano, por quatro ou cinco anos seguidos. Então no exterior o Brasil era muito mais visto pelo milagre econômico do que pela repressão. Até porque os militares, até o fim, mantiveram o discurso da democracia.
 
Nassif – Quer dizer, perdem a legitimidade quando chegam às duas crises do petróleo [de 1973 e 1979] e o crescimento não era mais o mesmo…
 
Bernardo Kucinski – Então, mas, ela vem pelo lado econômico.
 
Nassif – Ou seja, a tradição democrática de direitos humanos no Brasil não existe, né?
 
Bernardo Kucinski – Não, ela vem pelo lado econômico. E a opinião pública internacional também não dá tanta bola. Se você for ler os livros do [Noam] Chomsky sobre a atitude da mídia americana respeitável, tipo New York Times, sobre a guerra civil em El Salvador, ao assassinato do [Óscar Arnulfo] Romero [acontecimentos de 1980], a invasão da Guatemala [1954], a invasão cubana [1961], verá que a visão dessa imprensa que lá, domesticamente, é liberal, quando olham para o mundo é com olhares imperiais.
 
Nassif – Você chegou a dar um furo na Inglaterra, que depois o Estadão encampou nos anos 1970, que foi a questão da venda de plutônio do Brasil, através de São José dos Campos para o Iraque.
 
Bernardo Kucinski – Foi urânio, em 1981. Aquele foi um momento interessante porque eu tive essa informação, de uma fonte militar. Eram embarques de urânio quimicamente puro, não enriquecido. O urânio quimicamente puro tem essa qualidade de poder ser transformado em plutônio, por isso que sua memória fala de plutônio. Eu mandei essa matéria para o meu jornal de Londres e foi um furor. Caíram em cima de mim, dizendo que eu era um agente do Mossad [serviço de inteligência israelense], que isso tinha sido plantado.
 
Esse é um aspecto importante da nossa imprensa, porque essa revelação criou um grande constrangimento para o governo brasileiro, e o governo brasileiro precisava desmentir isso, desqualificar essa informação. E a forma para isso que encontraram foi embananar a informação. “Não, o governo brasileiro não poderia ter fornecido urânio enriquecido para o Iraque, porque o Brasil não enriquece urânio!”. Sendo que eu nunca falei em urânio enriquecido, e sim quimicamente puro. Daí entra um pouco uma análise da nossa imprensa, nossos coleguinhas foram instrumentos dessa embananação.
 
Nassif – Eu estava no Jornal da Tarde, na época, e o [jornalista] Paulo Andreólli pegou sua denúncia e a repercutiu no Estadão. Daí o Estadão foi alvo de um massacre pela Vela, pelo Gáspari, pela Folha [de S. Paulo] e o Estadão estava com uma estrutura muito precária por conta da crise. Eu, como tinha estudado muito o tema, me ofereci para fazer duas páginas desmontando todas as acusações da Folha e da Veja. Mas a intenção por trás era essa mesmo [de confundir a história da venda de urânio para o Iraque]…
 
Bernardo Kucinski – Exatamente.
 
Nassif – No primeiro bloco da entrevista você comentou sobre o PTB ser o PT da época [na década de 1960]. Essa questão da inclusão social, as novas gerações chegando e criando um clima de mudança…, depois o PT é eleito [em 2002] e você vai ser assessorar o Lula. Quais os paralelos que você tem entre esses dois períodos, tanto do ponto de vista dos que eram contra a inclusão, como do ponto de vista da posição dos partidos políticos de esquerda?
 
Bernardo Kucinski – O que acabou pondo o ponto final na ditadura, que começa a cair com a crise do petróleo, em 1973, é uma inquietação entre dos metalúrgicos que começa em 1977. Há uma certa retração dos salários. Antes disso, o milagre cria uma classe operária grande, que está bem e de repente começa a sentir pelo corte de pequenos benefícios [por conta dos impactos da crise do petróleo]. Aí fazem um congresso onde surge a figura do Lula, que é exemplar desse fenômeno Nordestino que vem para São Paulo na época do milagre. Me lembro de uma greve, ainda antes dessa, de motoristas e cobradores de ônibus em São Paulo, por volta de 1967, com 100 mil. Falei: “100 mil é quase que o efetivo do exército brasileiro!”. Na região de São Paulo o exército deveria ter dez mil ou cinco mil. Aquilo deu uma dimensão ao movimento contra a ditadura em outra escala, e não tinha mais como reprimir. Aí acabou a ditadura.
 
O Lula surge logo em seguida também, como movimento de massa. Eu lembro que eu ia às assembleias que [metalúrgicos] eles faziam no estádio de Vila Euclídes [em São Bernardo do Campo]. Eram gigantescas e a gente sentia a dramaticidade daquele momento.
 
Nassif – Os helicópteros passado…
 
Bernardo Kucinski – Aliás, em uma dessas assembleias, acho que foi de 1979 ou 1980, lembro que estava descendo em direção [a uma manifestação] e encontrei o [Luiz Eduardo] Greenhalgh ou o [Eduardo] Suplicy, e tinha saído à notícia de que o [comandante do Dops, Sérgio Paranhos] Fleury tinha morrido naquele dia. Não se sabe até hoje se foi assassinado, já estávamos, então, realmente no fim da ditadura. Daí o episódio do Riocentro [atentado frustrado de militares contra civis em 30 de abril de 1981], foi de desesperados que queriam criar uma mortandade grande para rejustificar um novo golpe.
 
Nassif – Inclusive prevendo bombas no palco [do show do compositor e cantor Gonzaguinha]…
 
Bernardo Kucinski – Nós vimos o PT como uma nova era da política, que não tinha nada a ver com as coisas antigas. Desde a derrota da luta armada, do exílio, da repressão, até o PT, são sete ou oito anos. E o PT vem com uma coisa nova e com uma forte carga ética que depois vai explicar porque perdeu tanto com o episódio agora do mensalão. Aliás, o PT é formado por forças políticas tão heterogêneas que a única coisa que poderia uni-lo era essa ética. Ele tinha católicos que eram contra o aborto, marxistas que eram a favor do amor livre, tinha trotskistas.
 
Nassif – Ao contrário do velho PTB, dos anos 1960, que era mais homogêneo.
 
Bernardo Kucinski – Sim, e até hoje o PT não é um partido político homogêneo, tem facções que eles chamam de tendências a tal ponto que elas são formalizadas, vivem como tendências dentro do partido, têm cotas. Ele [o PT] não tem centralismo democrático, aquele da tradição stalinista. Não tem uma linha ideológica única, não impõe, porque não consegue. Então o PT nasce como uma coisa muito heterogênea e de exaltação de uma nova política. Eu me identifiquei imediatamente com o PT, ao contrário dos grupos anteriores. Embora tivesse uma identificação, por conta da minha formação de família, com esse espírito de liberdade, da dissidência.
 
Acho que a dissidência é o sal da terra. Nunca fui muito afinado com coisas específicas de cada organização. Tanto assim que nos jornais alternativos em que eu trabalhava, onde tinham muitas facções, eu nunca sabia direito quem era quem.
 
Nassif – Eu também não. É preciso fazer doutorado para entender…
 
Bernardo Kucinski – E quando falavam [das diferenças ideológicas de cada segmento da esquerda] eu logo esquecia. Mas o PT não, eu me identifico fortemente com o PT e com a figura do Lula e inclusive trabalhei no partido depois, fui ajudar a fazer jornal, depois fui trabalhar no governo. Escrevia um informe diário para o Lula, ainda durante as campanhas dele. Então o PT surge como o grande veículo político que leva ao fim da ditadura. Esse é um mérito que o PT vai ter e sempre terá, independentemente do que acontece depois.
 
Nassif – Pegando daqui para adiante, como você enxerga a oposição partidária, o anticomunismo, grupos de esquerda radicais começando a surgir? Como vê o Brasil hoje?
 
Bernardo Kucinski – Vejo o Brasil hoje com um certo pessimismo e desânimo. Em parte acho que sofremos também essa estupefação que é mundial, desses novos meios de comunicação, dessa banalização do sexo, dessa proliferação da droga. Muitos marcos caíram e não se erigiram novos marcos muito confiáveis. Então há uma perplexidade e acho que nós somos vítimas disso e também dos nossos próprios DNAs. Somos um país colonizado, temos uma elite que se formou na escravatura, temos problemas de demandas sociais reprimidas gravíssimas, com milhões de pessoas sem moradias, milhões de residências sem esgoto, apesar de estarmos na hipermodernidade. E eu acredito que o PT não teve condições ou capacidade de mudar o jogo no plano ideológico, no plano da hegemonia. Então você teve um partido que conseguiu avanços sociais importantes para os mais pobres, inclusive mudar a maneira como o brasileiro pobre se vê hoje, com mais autorrespeito. Hoje [o brasileiro] pode sonhar que o filho dele vai para a faculdade. Mas tudo isso sem ter havido a possibilidade de mudar o jogo político substancialmente, a forma como se cria a informação, o espectro da informação.
 
Nassif – Por falar em informação, o seu livro que ganhou o Jabuti [com o livro Jornalismo Econômico de 1996], analisa alguns aspectos da imprensa. Queria que você explorasse um pouco esse tema.
 
Bernardo Kucinski – A imprensa brasileira é oligárquica, de grandes famílias, muito mais oligárquica do que é, por exemplo, a imprensa Argentina. Não temos, por exemplo, um diário de centro-esquerda, ou liberal. Todos os nossos jornais são conservadores, todos trazem frequentemente a mesma manchete. A impressão que tenho é que há um supereditor que edita todos eles ao mesmo tempo. Todos são antipetistas. Então o pluralismo natural da sociedade brasileira não se expressa na sua imprensa. Acho que, mais do que isso, enquanto você tem uma presidenta Dilma que, com todas as críticas que se possa fazer, tem 40% de apoio da opinião pública, quando você lê os jornais parece que ela não tem apoio nenhum. Eles estão totalmente em dissonância com a própria opinião pública que eles pretendem expressar ou formar. É uma esquizofrenia midiática que a gente tem. Por outro lado acho que tudo isso está desabando. Quem lê jornal impresso hoje? Meia dúzia de pessoas. Há outro mundo da comunicação que tem suas limitações e certamente os jornais sobreviverão na medida em que eles conseguirem se tornar digitais.
 
Nassif – Mas daí a ferramenta digital dilui esse impacto da primeira página, da manchete… o poder ficará diluído…
 
Bernardo Kucinski – Sim. É outro tipo de veículo, outro tipo de empresa, outro tipo de mecânica, de influência – em alguns casos até maior ou menor. A própria televisão vejo hoje como muito diluída. É interessante o caso da televisão. Ela se tornou tão parte do nosso ambiente, quer dizer, você entra em qualquer boteco ou restaurante, na linha do metrô, e é como se ela já não existisse. Não tem aquele impacto. Antes você ligava a TV no Jornal Nacional, às 20h, e o Brasil inteiro naquele momento ia ver uma denúncia contra o Collor. Hoje não, a coisa é contínua e diluída.
 
Nassif – Juntando essa fase de transição em que o velho morreu e o novo não nasceu, juntando esse caos de informação com redes sociais e modelo antigo dos jornais desabando, juntando que você mencionou essa questão da exacerbação do sexo e drogas, você é pessimista em relação ao futuro?
 
Bernardo Kucinski – Você sabe que eu sou pessimista por natureza. Eu nasci pessimista e sempre fui pessimista. Agora eu vejo uma situação contraditória. Por outro lado você nota também a modernidade avançando. Eu costumo contar uma história de que, quando eu era moleque, eu brincava de roubar jabuticaba e empinar pipa, a maior revolução foi quando fiz um carrinho de rolimã. Agora o meu filho já brincava de fazer uma banda, e o meu neto brinca na internet. Então são coisas que é um avanço na direção de trabalhar mais com o conhecimento.
 
A seguir, assista ao vídeo completo da entrevista.
Redação

13 Comentários

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  1. Assinando embaixo, e complementando.

    A condução da entrevista, magistralmente feita pelo grande conhecimento do Nassif, que mesmo não tendo participado daquelas lutas homéricas, em São Paulo, nem no ABC, isso ja no início do fracasso da malfadada revolução, e a tentativa de abafar as lutas dos sindicatos então florescentes, é uma aula de história, e deveria ser eternizada, neste blog, como um marco, pois as explicações sociológicas do Prof. Kucinski é perfeita e sem desvios partidários.

    Ele esteve presente nas grandes transformações, que aqueles contra-revolucionários fizeram, e desenha um mapa exato, do que ocasionou e sustentou a tomada do poder democraticamente conquistado, pelo conservadorismo das direitas e das elites, e embora sem querer, por uma imprensa, que deixou-se enganar, e depois calou-se, em nome da sobrevivência numa sociedade desinformada.

    Que havia uma ideia utópica, de muitos de nós jovens estudantes universitários, e de muitos intelectuais, como este professor, de que o sucesso da revolução cubana, poderia ser um horizonte a ser perseguido, e adaptado à nossa realidade, e houve um verdadeiro terror e ameaça de que isto, comunizaria e destruiria a sociedade brasileira, num processo que assustou e convenceu aos menos cultos politicamente.

    Uma vez, conseguida a derrubada do governo Jango, e o início da ditadura, o resto da estória, a história brasileira encarregou-se de registrar, e ainda conta, em encontros históricos da imprensa independente, como acaba de fazer a Brasilianas.org, e este blog dito sujo.

    Obrigado Professor, por contar maravilhosamente, esta página da nossa redemocratização. Você é um daqueles atores, que não negam a luta, nem a participação, e não escondem fatos e situações vistas e vividas.   

    1. Bernardo Kucinski está mal

      Bernardo Kucinski está mal informado ou falta com a verdade.  Havia, sim, uma proposta de luta armada desde 1961 com os Grupos dos Onze, no sul e as Ligas Camponesas, no nordeste.  Por isso, o movimento de 1964 é, na verdade, uma contrarrevolução porque estava em curso uma revolução comunista no Brasil.  

      1. precisa desenhar?

        O senhor(a) leu o texto ou quer que eu desenhe…?

        Nassif – Pois é, outro dia publique até um trabalho do Wanderley Guilherme dos Santos, de 1962, prevendo o golpe. Ele tinha ido junto com o Carlos Araújo [ex-marido da presidente Dilma Rousseff] para o Nordeste para escrever sobre as ligas camponesas. No relato viram que ali não tinha a menor estrutura [para uma revolução], agora a imprensa e a direita criavam os fantasmas e a esquerda acreditava nos fantasmas?

  2. Kucinsky

    Bela entrevista. Grande entrevistador, grande entrevistado. Duvido que a vekha mídia tenha a coragem e o discernimento para fazer uma entrevista deste tipo. Fico orgulhoso de ser jornalista ao ver que no Brasil aidna temos profisisonais desta envergadura. 

  3. “”Antes de 1964 não havia no

    “”Antes de 1964 não havia no Brasil nenhuma proposta de luta armada da esquerda”

    E a intentona comunista?

    Falta de respeito com história e pelos mortos.

    Os fatos que levaram a 1964 começam em 1935.

     

    1. Desinformação ou maldade pura ?

      Qual a real ligação, entre as duas épocas e/ou suas motivações ?

      Você parece ser relativamente informado, porem é reacionário demais, e este excesso de reacionarismo, leva-o à uma incoerência inaceitável.

      1. Rai a história é um processo

        Rai a história é um processo continuo, as forças armadas queriam depois da intentona comunista eliminar a influência dos comunistas nas forças armadas.

        Diversas insubordinações aconteceram no periodo anterior a 1964 , ate sequestro de avião para vc ver como a coisa andava.

         

    1. Quantos eram os onze?

      Sempre houve e sempre haverá. Qual sua dimensão e vaibilidade, então e hoje? Talvez ele nem tenha percebido na época. Era mais fácil uma revolta militar insuflada pelo cabo Anselmo ou pelos sargentos do exército, que também serviram de estopim.

  4. A história se repete como farsa

    “Então, no mesmo ano em que o Getúlio [Vargas] comete suicídio [1954] – e veja que a carta dele fala do nacionalismo e do imperialismo…”

    Almino Affonso revela em seu livro sobre 1964 que, ao datilografar um manifesto à nação em 1˚ de abril, ditado por Tancredo na presença de Jango, achou que estava muito parecido com a carta-testamento de Getúlio e perguntou, irônico:

    “Tancredo, parece que foi você quem escreveu a carta do Getúlio!”

    O manisfesto, ao contrário do testamento de Getúlio, nunca foi divulgado.

    Por isso é que 1964 foi a farsa de um golpe frustrado dez anos antes.

  5. Mudanças que partiam do

    Mudanças que partiam do cultural, da educação, das reformas” não necessitariam de armas para sequestros, roubos a bancos e justiçamentos. Chega a ser pueril acreditar que a esquerda mundial permitiria que jovens universitários, “ingênuos” realizassem uma revolução de esquerda no Brasil e que não seriam diretamente cooptados pelo totalitarismo cubano ou soviético. Santa ingenuidade.  Quem disse que o cidadão brasileiro comum dos anos 60 queria o socialismo como regime? Ou a esquerda usaria da força, que tanto critica no Regime Miliar, para impor sua vontade à população Brasileira? É quase certo que sim! Basta olhar para Cuba e para a antiga União Soviética.

  6. Um artigo que escrevi

    Um artigo que escrevi recentemente trata exatamente da mesma questão. Argumento que, o que as elites coloniais do Brasil querem com a disseminação da ideia de que havia uma disputa entre capitalistas e socialistas no Brasil da época é culpar as vítimas da ditadura pela arbitrariedade e pelo sadismo dos algozes, de resto, tática típica desta elite. Não existia uma disputa política entre um modelo socialista e um modelo capitalista a ser implantado no Brasil, mas a disputa entre dois modelos de capitalismo para o país. A bem da verdade, o que as esquerdas brasileiras que estavam no poder na época desejavam não era colocar o país no caminho do socialismo, mas o inverso, modernizar o capitalismo brasileiro, o que exigia promover reformas econômicas, sociais e políticas. As “reformas de base” do João Goulart visavam exatamente atacar as estruturas arcaicas da sociedade e da economia nacional, que sempre constituíram gargalos ao desenvolvimento do capitalismo e da sociedade. A reforma urbana, a reforma agrária, a reforma tributária, a reforma bancária propostas por Goulart e os objetivos por ele perseguidos na educação e nas relações de trabalho, dentre outros, nada mais pretendiam do que fazer o que todo e qualquer país capitalista desenvolvido havia feito: criar as bases de um desenvolvimento sustentado, com base em tecnologia, capital, recursos naturais, humanos e mercado nacionais mais do que estrangeiros. Não fazer isso significava manter o país dependente de tecnologia, capital, mercado consumidor e recursos humanos estrangeiros, que era o que pretendia a elite colonial pátria e seus aliados estrangeiros -donos de grandes empresas multinacionais que sangravam as riquezas do país e seus governos. As propostas das esquerdas, portanto, voltavam-se para aprofundar o modelo de desenvolvimento autônomo e nacionalista iniciado por Getúlio Vargas na década de 1930. Sua radicalização previa o fortalecimento econômico do país, o aprofundamento da democracia política e o enraizamento da democracia na sociedade, desenvolvendo o lado social da democracia, por meio do espraiamento de direitos, conquistas e benefícios sociais. O Golpe Militar desferiu não somente um golpe contra a democracia política, mas contra o modelo nacionalista de desenvolvimento nacional e a democracia social. Há quem se engane, por puro desconhecimento da história, de que os militares brasileiros eram nacionalistas. Nada mais equivocado, dado que nossos generais foram formados dentro de uma doutrina de segurança norte-americana e se comportaram, no poder, como verdadeiros servos dos interesses imperialistas norte-americanos e europeus. Jamais as riquezas brasileiras foram tão internacionalizadas quanto no período da ditadura; jamais houve tanta sangria de riquezas do país para o exterior; jamais houve tanta concentração de riquezas nas mãos de tão poucas pessoas; jamais se produziu tanta pobreza, miséria e desigualdade; jamais se verificou tanta agressão aos direitos civis, sociais e humanos dos cidadãos. Há, ainda, aqueles que se autoenganam achando que a corrupção era menor neste período. Novamente, jamais houve tanta corrupção nos bastidores do poder, mas o controle sobre a imprensa e a manipulação de dados impediu que os grandes escândalos fossem divulgados. Foi nesse momento que se consolidou o moderno modelo de Estado altamente corrupto que só funciona à base de grandes negociatas. Portanto, não era uma questão de capitalismo ou socialismo que estava em jogo, mas uma disputa entre dois modelos de capitalismo para o Brasil: um colonialista e um modernizante. Venceu o colonialista, e se os 25 anos do regime de exceção produziram o país mais desigual e endividado do mundo, isso se deve exatamente ao fato de que jamais o ímpeto imperialista e colonial teve tanta liberdade para se esbaldar. A Ditadura Militar, no Brasil, foi uma tragédia não somente política, mas também social, econômica e cultural. Devemos a ela a amputação das forças históricas nacionais verdadeiramente modernizadoras.

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