No dia de hoje, 16 de março – Alexandre Vannucchi Leme, presente!

No cárcere, Alexandre foi torturado por cerca de dez agentes, que se revezaram em duas equipes, de modo que ele ficou mais de 24 horas sendo interrogado sob tortura.

do Vozes do Silêncio

No dia de hoje, 16 de março – Alexandre Vannucchi Leme, presente!

PARA QUE NÃO SE ESQUEÇA, PARA QUE NUNCA MAIS SE REPITA

Em 16 de março de 1973, o estudante de Geologia da Universidade de São Paulo (USP), Alexandre Vannucchi Leme, foi preso pelas forças repressivas e levado para o DOI-CODI/SP. Ele tinha passado as férias em sua cidade, Sorocaba/SP, e havia retornado a São Paulo/SP para frequentar as aulas, o que fez até a véspera da sua prisão. Ele militava na ALN (Ação Libertadora Nacional).

No cárcere, Alexandre foi torturado por cerca de dez agentes, que se revezaram em duas equipes, de modo que ele ficou mais de 24 horas sendo interrogado sob tortura. No dia 17 de março, ele foi jogado todo ensanguentado em uma cela e quando foram buscá-lo na tarde daquele dia para novas sessões, ele estava morto. As celas vizinhas foram evacuadas e seu corpo arrastado pelos corredores do DOI-CODI/SP, na rua Tutóia, n. 921.

No DOI-CODI, além de Alexandre, morreram mais de 60 presos políticos e milhares foram torturados. Várias entidades de direitos humanos tentam, há anos, transformar esse local em espaço de memória, mas ainda não conseguiram. Indiferente a esse pleito e ao significado histórico desse local como um dos principais centros de terror do período da ditadura, o governo do Estado de São Paulo permite que ali funcione, até os dias de hoje, uma delegacia de polícia.

Como sempre faziam, os policiais deram versões bem distintas da verdadeira causa para a morte de Vannucchi Leme. No mesmo dia de sua morte disseram aos demais militantes presos que ele teria se suicidado utilizando uma lâmina de barbear furtada da enfermaria. Já no dia 23 de março, exibiram-lhes orgulhosamente uma manchete de jornal que noticiava que Alexandre tinha sido vítima de atropelamento por um caminhão durante uma tentativa de fuga. Segundo relatado por testemunhas detidas, um dos torturadores responsáveis pelo assassinato de Alexandre Vannucchi regozijou-se ao afirmar: “Nós damos a versão que queremos! Nesta joça mandamos nós!”.

O corpo de Alexandre deu entrada no IML/SP no mesmo dia 17 de março e sua certidão de óbito foi expedida na mesma data. A guia de encaminhamento do corpo para o cemitério de Perus é de 19 de março de 1971. Apesar de terem todos os dados de Alexandre, ele foi enterrado no cemitério Dom Bosco, no bairro Perus, em São Paulo/SP, como indigente, sem caixão, em uma cova rasa forrada de cal, providência usual em crimes violentos para acelerar o processo de decomposição do corpo.

Outro fato bizarro é o de que, apesar de Alexandre já ter sido até mesmo enterrado, o laudo de exame de corpo de delito, mais um dos que foram forjados e assinados pelos médicos comparsas da repressão, Isaac Abramovitch e Orlando Brandão, foi lavrado com a data de 22 de março de 1973. Segundo alguns agentes explicaram depois, eles quiseram segurar a notícia da morte de Alexandre para não atrapalhar outras diligências relacionadas à ALN.

Mas esse requinte de crueldade chegou ao ponto de negar para a família as notícias da prisão e da morte de Alexandre. Em 20 de março, a família soube da prisão do estudante por meio de um telefonema anônimo, o que fez seu pai ir até São Paulo buscar informações sobre o paradeiro de Alexandre. Os agentes de segurança, mesmo sabendo que Alexandre estava morto e enterrado, passaram informações desencontradas, de forma que o pai não conseguiu nem mesmo confirmar a suposta prisão de Alexandre. Em meio à angústia de não terem informações sobre o paradeiro do filho, no dia 23 de março, leram no jornal Folha de São Paulo a notícia que não gostariam de receber.

A família procurou o IML/SP a fim de fazer o reconhecimento do corpo e levar o filho para ser sepultado dignamente. A crueldade das estruturas do Estado repetiu-se. Admitiram a morte mas informaram que já não tinham mais o corpo.

Grupos de estudantes e a Igreja Católica se mobilizaram e protestaram em virtude do assassinato de Alexandre, das mentiras apresentadas pelo Estado e do sofrimento da família por não conseguir realizar o sepultamento de seu filho.

No dia 30 de março, na Catedral da Sé, foi celebrada uma missa de Sétimo dia em homenagem a Alexandre, pelo cardeal-arcebispo de São Paulo, D. Paulo Evaristo Arns, e o bispo de Sorocaba, D. José Melhado Campos. Apesar de as forças de segurança terem tomado o centro da cidade, mais de três mil pessoas conseguiram se reunir no ato religioso. Durante a liturgia, o compositor Sérgio Ricardo interpretou a canção “Calabouço”, que se refere ao assassinato do jovem Edson Luís, ocorrido no Rio de Janeiro/RJ em 1968.

A censura impediu que tais manifestações pela morte de Alexandre fossem publicadas na imprensa, mas a partir delas o movimento estudantil iniciou sua reorganização e ele foi homenageado, ainda no mesmo ano, em shows de artistas como Gilberto Gil e Chico Buarque.

Os restos mortais de Alexandre foram trasladados dez anos depois de sua morte e, em 24 de março de 1983, foi realizada uma missa na Igreja dos Dominicanos, em Perdizes, em memória de Alexandre Vannucchi Leme e de frei Tito de Alencar Lima, que havia se suicidado na França em decorrência de sequelas de tortura.

Em homenagem a Alexandre, o Diretório Central dos Estudantes – Livre (DCE-Livre) da USP, reorganizado em 1976, passou a se chamar Alexandre Vannucchi Leme. Uma escola de ensino fundamental em Ibiúna/SP e uma escola municipal de educação infantil de São Paulo/SP, também adotaram seu nome. O mesmo ocorreu com a praça próxima à casa onde morou com seus pais, em Sorocaba/SP.

Seus pais, Egle Vannucchi Leme e José de Oliveira Leme, enfrentaram a dor deixando a história de Alexandre narrada no livro  “Meu filho Alexandre Vannucchi”. Seu tio, Aldo Vannuchi escreveu o livro “Alexandre Vannucchi Leme: jovem, estudante, morto pela ditadura”. Sua história também é contada no livro “Cale-se”, de Caio Túlio Costa.

–  Alexandre Vannucchi Leme, presente!

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Este texto faz parte da campanha de divulgação da II Caminhada do Silêncio pelas Vítimas de Violência do Estado e pela Democracia que será realizada em São Paulo/SP, no dia 29/03/2020, no Parque do Ibirapuera, e é uma adaptação do texto já utilizado por ocasião da divulgação da I Caminhada, realizada no ano passado.

Autoria: Eugênia Augusta Gonzaga, procuradora regional da República, mestre em Direito Constitucional e coautora das primeiras iniciativas de responsabilização de agentes da ditadura.

Fonte: Relatório Final da Comissão Nacional da Verdade, Volume III, páginas 1.205 a 1.211.

Redação

3 Comentários

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  1. Parabéns ao GGN e à doutora Eugênia Gonzaga por não deixar cair no esquecimento essas historias da perversa ditadura militar brasileira. A jornalista Leneide Duarte-Plon tem um bom livro sobre o caso de Frei Tito de Alencar e outros freis dominicanos torturados pelo regime militar.

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