Novo colonialismo não explora apenas riquezas naturais, explora nossos dados

Para o professor Nick Couldry, da London School of Economics and Political Science, o chamado “colonialismo de dados” pode marcar nova fase histórica, mediada pelas corporações

Você já parou para se perguntar o que as empresas da internet estão fazendo com seus dados? Pesquisador da London School alerta que um modo de vida radicalmente novo está sendo construído

do Jornal da USP 

Novo colonialismo não explora apenas riquezas naturais, explora nossos dados

por Denis Pacheco 

Nas salas de aula, durante o ensino fundamental, aprendemos as primeiras noções sobre as origens do nosso País. Da chegada dos portugueses até o estabelecimento de uma república independente, nos acostumamos a dividir nossa história a partir de um período conhecido como “colonialismo”.

Embora nos livros escolares esse período tenha uma data de começo e de fim, para o professor Nick Couldry, da London School of Economics and Political Science, no Reino Unido, esse período ainda não acabou, e tem passado por diferentes fases. A atual, batizada “colonialismo de dados”, é assunto de sua mais recente obra, The Costs of Connection: How Data Colonizes Human Life and Appropriates if for capitalism, escrito em parceria com o autor mexicano Ulises Mejias.

No último dia 20 de maio, Couldry esteve na Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP, em São Paulo, para uma conferência que discutiu as implicações do seu trabalho. Em entrevista para o Jornal da USP, o professor explica que desenvolveu, juntamente com Mejias, o conceito de “colonialismo de dados” para entender uma questão fundamental que afeta a todos no mundo: o que está acontecendo com os nossos dados?

Durante três anos, o especialista trabalhou com a hipótese de que a economia de dados que movimenta as grandes empresas de mídia e tecnologia no mundo é resultado de um enorme desenvolvimento do capitalismo. Entre outras autoridades sobre o assunto, Couldry cita o trabalho de Shoshana Zuboff ao conceituar a atual evolução do sistema econômico como “Capitalismo de Vigilância” que, em suma, representa um novo gênero de capitalismo que monetiza dados adquiridos por vigilância.

Entretanto, para Couldry, a atual fase é, mais do que um desdobramento das novas tecnologias, um “estágio genuinamente novo do colonialismo”. E ele dá exemplos de como esse novo colonialismo funciona globalmente. “Podemos dizer que, um pouco do que o Facebook está fazendo na África, com suas plataformas gratuitas, é neocolonialismo. Eles estão usando o antigo poder do Ocidente para entrar nas economias africanas que têm uma infraestrutura fraca devido ao legado do colonialismo”, explica.

Para ele, esses movimentos podem ser observados em diferentes manifestações não apenas no continente africano, mas também em países como a China, Alemanha, o próprio Estados Unidos e até mesmo o Brasil. Para entendê-lo, é preciso enxergar o colonialismo por um viés diferente do que estamos acostumados.

Nick Couldry na Escola de Comunicações e Artes (ECA) – Foto: Marcos Santos / USP Imagens

“O recurso somos nós”

“As pessoas lembram do colonialismo histórico e do que os conquistadores espanhóis fizeram, do que os conquistadores portugueses fizeram quando chegaram ao Brasil. E eles se lembram, é claro, em termos da violência terrível, do terrível racismo que se tornou o meio de controlar as populações”, reconta ele. Para o professor, esse colonialismo histórico se concentrou na tomada de propriedade, “a tomada de terra”.

E a partir dessa diretriz exploradora, surgiram novos tipos de relações sociais. ”Antes de 1500, não havia relação social entre as pessoas na Europa e as pessoas no continente da América Latina. Eles não se conheciam. As novas relações sociais foram criadas nos governos coloniais”, conta.

Tais relações, explica ele, foram formadas em um contexto de imensa concentração de riqueza, gerando uma nova forma de desigualdade que deu origem a todo um grupo de novas ideologias, que eram as “histórias que foram contadas para dizer ‘isso não é apropriação’, ‘isso não é roubo’, ‘isso é apenas pegar o que está naturalmente lá’”, exemplifica.

Para Couldry e Mejias, os fundamentos desse colonialismo histórico continuam presentes hoje. E, embora ambos defendam que a apropriação de recursos continue, “o recurso hoje somos nós. Nossas vidas, nossas experiências estão sendo convertidas em valor por meio dos dados.”

E é nesse contexto que Couldry aponta o surgimento de novos tipos de relações sociais, relações que estão, cada vez mais, sendo mediadas por dados.

“Sabemos que toda vez que clicamos ‘aceitar’ os termos e condições de um aplicativo ou uma plataforma, temos pouca escolha, mas esses termos e condições sempre significam que os dados serão extraídos de nós”, esclarece.

E em cima desses acordos aparentemente consentidos, “uma riqueza extraordinária está sendo criada”, alerta o especialista. “Não sabemos se a Uber terá algum lucro, mas sabemos que o Google, Apple, a Microsoft e o Facebook são algumas das empresas mais lucrativas do mundo”, cita ele.

O esvaziamento do mundo social

Para fundamentar esse novo negócio, as chamadas Big Tech, empresas de tecnologia que impulsionam grandes mudanças sociais, se utilizam – tal como no colonialismo histórico – de uma ideologia própria, a de que “devemos estar sempre conectados”. Para Couldry, essa ideologia norteia o negócio dessas grandes corporações, afinal “precisamos estar conectados porque isso significará que a publicidade poderia se tornar mais pessoal, os serviços poderiam chegar até nós de modo personificado, porque eles sabem o que queremos.”

Na opinião dele, esse tipo de nova relação promove um “esvaziamento do mundo social”, no qual o capitalismo corporativo assume uma forma paradoxal de um novo domínio predisposto a uma exploração sem fim e à manipulação da sociedade.

Para o professor, a essência da discussão envolve enxergar o colonialismo de dados como uma “nova fase da história”.

“Quando falamos sobre o capitalismo, hoje, muitas vezes esquecemos que o capitalismo só aconteceu por causa dos dois séculos anteriores ao colonialismo. Foi daí que veio o dinheiro, o combustível do capitalismo”

De acordo com ele, esse novo colonialismo com dados poderá fornecer o combustível para um novo capitalismo, com consequências ainda imprevisíveis para os próximos 50 ou 100 anos.

Universidades e resistência

Ao ser questionado sobre o papel das universidades diante desse cenário que envolve o mundo corporativo e as forças políticas vigentes, Couldry defende: é papel da academia resistir ao cerco daqueles que almejam cercear a liberdade intelectual.

“Eu ouvi sobre a acusação do presidente Bolsonaro de que as universidades representam apenas balbúrdia”, comenta o professor. “Isso é muito interessante porque o governo que não se importa com a democracia ou a liberdade, obviamente se sente ameaçado pelas universidades, que tentam defender esses valores.”

Para ele, é central que as universidades questionem o governo sobre o tipo de sociedade que as forças políticas pretendem fomentar. Ao relembrar a obra Ensaio sobre a Cegueira, escrita pelo autor português José Saramago, Couldry traça um paralelo que une a noção de colonialismo de dados com a importância de que os governos coloquem o interesse dos seus cidadãos à frente de interesses corporativos ou forças totalitárias.

“Uma doença acontece e quase todos ficam cegos, com exceção de alguns. Pessoas tentam fingir que não estão cegas e dizem ‘nós podemos ver, sabemos para onde ir’, mas isso não era verdade e as faz lutar contra si mesmas até a morte”, sumariza ele ao concluir que, para evitar esse cenário apocalíptico, devemos, enquanto cidadãos e governos, nos questionar se estamos entrando em um novo período de cegueira voluntária. “É por isso que precisamos começar a resistir”, pontua ele, ao alertar para os perigos dessa nova fase.

“Estamos em um momento histórico em que um modo de vida radicalmente diferente está sendo construído. E temos que prestar muita atenção a essas mudanças. E em um país como o Brasil, estamos vendo alguns dos efeitos colaterais dessa nova ordem”, finaliza.
Redação

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