O Brexit e o fim da identidade dos trabalhadores, por Rosana Pinheiro-Machado

Lourdes Nassif
Redatora-chefe no GGN
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Leon Neal / AFP

Brexit

Em Londres, pessoa pega uma cópia do London Evening Standard anunciando a saída do Reino Unido da UE

Da CartaCapital

O Brexit e o fim da identidade dos trabalhadores

A xenofobia é, sim, um fator, mas o centro da questão é a destruição do bem-estar social da classe trabalhadora

por Rosana Pinheiro-Machado

Essa madrugada, para muitas pessoas no Reino Unido, foi um pesadelo. Bandeiras espalhadas pelas casas e gritos de alegria de vizinhos a cada voto para sair da União Europeia. Não sou europeia, mas a cada grito eu confirmava que Londres, Oxford e Cambridge são ilhas.

Nestes últimos anos, tive a oportunidade de viver o que os ingleses chamam com orgulho de ser a Inglaterra: o interior, especialmente ao norte. A cada grito me senti expulsa. A cada grito eu entendia que este não é o meu lugar. Era o grito engasgado de muitas famílias inglesas que conheci fora das ilhas.

Eu passei a madrugada acompanhando todos os debates em cada canto deste país. Nem vou citar aqui a questão da xenofobia – que é o tema mais discutido e mais óbvio da questão. A xenofobia é apenas um dos sintomas de uma grave crise que começou com o fim da classe trabalhadora (e sua capacidade de articulação) na Inglaterra desde os tempos de Thatcher.

Foram semanas de movimentação. Brigas entre amigos e familiares – nada que nós brasileiros não estejamos acostumados. Foi uma decisão emocional – como sempre é – baseada na raiva que assolou a classe trabalhadora inglesa.

Muitos gritaram “devolver o país aos ingleses”. É claro que a xenofobia é uma variável importante. Mas olhar só para ela é um erro imenso. O maior problema é a vida fodida da classe trabalhadora que perde seu estado de bem estar social. Aquela fase que o encanador tinha uma casa muito parecida com o do banqueiro acabou. Tudo acabou.

Mas o que acabou principalmente é a consciência de classe (sem levar muito a sério o conceito aqui, certo?) da classe trabalhadora, especialmente do norte do país que empobreceu. O desmonte da identidade de classe começou com Thatcher, que agiu no âmago da troca de subjetividades e do orgulho de classe.

Como diz o escritor britânico Owen Jones, romantizar o trabalhador de uma mina de ferro tampouco é o ideal, mas certamente a identidade negada da classe trabalhadora resulta não apenas na xenofobia, mas no ódio irrestrito à classe política e à própria classe trabalhadora. “O problema são os pobres” – gritava uma trabalhadora de uma universidade que ganha um salário mínimo e referia-se aos camponeses.

Os trabalhadores mostravam rejeição a toda forma política. “Nós queremos chutar para fora todos os políticos” – mas, no fim das contas, chutou-se contra si mesmo, pois quem vai pagar a conta da recessão certamente é a classe trabalhadora.

Todas as comunidades pobres que votaram para sair anunciaram que votaram porque não aguentavam mais a austeridade – o que é uma loucura tremenda, mas que temos que ouvir e entender.

Temos, como no Brasil (pedindo desculpa por esta comparação rasa e anacrônica) uma massa perdida e revoltada e uma esquerda – o Partido Trabalhisa – incapaz de reorganizar a classe trabalhadora.

Uma massa – como diria o historiador E. P. Thompson – cuja economia moral é defensiva. Ela age para não perder o que tem. É o que aconteceu aqui esta madrugada. As pessoas votavam – cegamente – pela sua vida empobrecida, mas movida pelo sentimento de ódio a tudo, muito bem aproveitado pela extrema direita, que agora se junta ao coro do “odiamos a política tradicional”.

Como sempre, são os mais fracos que vão pagar pelo desmonte do Estado britânico. Não tenho esperanças numa eleição de Jeremy Corbyn, o líder dos trabalhistas, ameaçado de perder o posto. A classe trabalhadora desde Thatcher odeia a si própria, assim como odeia o Outro. Projeta-se no mito do sucesso dos empreendedores ao mesmo tempo em que rejeita o imigrante.

Por fim, uma questão que não quer calar: Quem é de esquerda e acredita na democracia teve de se deparar com questões muito intrigantes nos últimos tempos do referendo. Eu tenho ouvido muitos políticos que admiro se perguntando “como dar uma decisão tão importante para o povo ignorante?”.

Este é o ponto central para todos aqueles que acreditam na democracia direta. Então, não se pode dar ao povo a decisão porque o povo é ignorante? Quando que pode se dar ao povo então a capacidade de decidir? Quando houver debates intelectuais? Quando isso vai acontecer?

Quando vai existir esse dia em que votaremos racionalmente e não com emoção? Quando teremos debatido o suficiente para escolher o rumo de um país? Eu tive que aguentar a noite vendo políticos trabalhistas dizendo que o povo era ignorante. Que paradoxo.

Esse tipo de questão abre diversas frentes de discussão que se referem ao próprio Brasil, sua democracia representativa e a possibilidade de chamar eleições novamente. Afinal, o povo é soberano ou não é? É um momento para pensar o que entendemos por democracia e, finalmente, olharmos seriamente para os anseios e as penúrias das classes trabalhadoras sacrificadas no Reino Unido, no Brasil e no mundo.

 

Lourdes Nassif

Redatora-chefe no GGN

14 Comentários

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    1. Concordo, o texto é

      muito bom.

      Mas no fundo quem escreveu sabe que os proximos anos na Europa vão ser mais tensos ainda.

      È por isso que Marine Le Pen e demais lideranças populistas estão eufóricos!

      1. Le Pen et fils

            Uma lista com a qual teremos que nos acostumar para os próximos anos, alem dos já conhecidos FN ( França ) e LN ( Itália ) :

             Começando pelo belga/francês, herdeiro direto da FN de Le Pen, o “GI” ( Generation Identitaire ), e sua violenta facção, mas crescente em votos, que opera em Flandres, o neonazista ” VB “, já do ladinho, na Holanda ( possivelmente onde será realizado o próximo plesbiscito ), temos o tb. bem votado “PVV”, continuando no Norte,mais um neonazista, euroraivoso e violento, o ” DFP ” da Dinamarca ( mais de 22 % em recente eleição ), já para mais o centro da tensa Eurolandia, mais dois neonazistas influentes, como na Hungria do ” JOBBIK “, e atravessando a fronteira para a Austria, encontramos o muito bem votado, aliás quase venceu a ultima eleição presidencial, a “FPÖ”.

              Quanto ao UKIP britanico, nem vale a pena comentar, afinal o Reino Unido já decidiu.

               Tenso mesmo, e pode piorar bastante, um monte de hrdeiros do “Lebensraum ” podem pipocar na Eurofantasia.

        1. Júnior, leia o que escrevi em 2011

          Em 2011 escrevi uma pequena história fantasia denominada 

          Uma pequena história das tribos de uma região que o nome não se sabe direito a origem, a Europa.

          Depois de uma história das tribos de uma região chamada Europa eu termino da seguite forma:

           “….Como os povos do norte trabalharam mais do que os do sul, vendendo seus artesanatos para os do sul, e emprestando o tal de Euro para eles comprassem cada vez mais para eles poder trabalhar cada vez mais. Chegou o dia em que os povos do norte não conseguiram emprestar mais para os do sul, nem os do sul pagar suas dívidas deixando os germânicos brabos. Depois disto que aconteceu? Não sei, porque a história acabou por aí, mas será que todas estas tribos que brigaram por três mil anos e ficaram 50 anos de paz vão continuar em paz?”

          Já tem 5 anos, mas não é meio profética!!!

           

  1. O texto é interessante, mas é

    O texto é interessante, mas é a visão de um estrangeiro(brasileiro) vivendo em outro país. Deve faltar “alguns detalhes” da sociedade que um estrangeiro não consegue captar, que fica oculto.

    É como um estrangeiro que vive no Brasil. Muitos não consegue entender, como a Dilma uma mulher honesta, que não tem acusação nenhuma contra ela, e mesmo assim, foi apeada do poder por um presidente interino, ladrão comprovado, acompanhado de sua gang. São os “detalhes da cultura local”

    O ideal seria ouvir  a opinião dos nativos, dos dois lado (sim e não). Acredito que seria uma leitura mais correta dos fatos.

    Mas a narrativa é boa.

     

     

    1. é por aí não

      Rosana Pinheiro-Machado é cientista social e antropóloga. Professora do departamento de Desenvolvimento Internacional da Universidade de Oxford

       

  2. Crise da Democracia representativa

    Não é exclusividade nossa. É pra quem acha que é exagero, é bom rever a votação do golpe, digo, impitim na Câmara.

  3. Mas como defender a UE?

    A UE se tornou uma tecnocracia neoliberal anti-povo e não há nada que aponte um futuro melhor para ela.

    Por que continuar na UE? A esquerda light está delirando um conto de fadas da união dos povos. Os povos estão reunidos na UE como o gado no curral – para serem ferrados.

    É muito mais fácil um implementar um projeto de esquerda num país do que na UE. Pelo menos num país, o BC e a Fazenda/Tesouro respondem formalmente ao presidente/primeiro ministro. Se ele for de esquerda há mais possibilidades de políticas de esquerda.

    A quem responde o BCE? A burocratas e seus mandatários do sistema financeiro!

    Que loucura esta insistência em querer “permanecer” na UE! A esquerda deveria aproveitar a brecha que a extrema direita abriu e brigar com ela pelo governo no país. Agora, por menor que seja, pelo menos há chance de um governo de esquerda na Inglaterra. Na UE a chance é (e será) zero!

    1. E isso aí, Wilton. De acordo.
      E isso aí, Wilton. De acordo. Em vez de ficar fazendo coro com o neoliberalismo e com o elitismo europeista e ficar se lamuriando a esquerda inglesa sa tem é que arregaçar as mangas e disputar a hegemonia com os farage e que tais.

      1. Com o mesmo discurso

        Com o mesmo discurso nacionaista que os Farage fica dificil disputar espaço. Além disso, a esquerda luta por poder pelo poder ou o poder é um meio para realizar princípios? Se for o poder pelo poder, melhor fazer um governo de coalisão com os Farages da vida – afinal já vimos isso por aqui, PT com PMDB e sabemos onde isso vai parar…

    2. Sendo assim se cai no mesmo nacionalismo que caracterizou….

      Sendo assim se cai no mesmo nacionalismo que caracterizou o início da primeira Grande Guerra!

    3. É simples responder isso: a

      É simples responder isso: a quem responde o BC do Brasil? ao povo? aos mesmos financistas internaciionais a que responde o BCE. Estado nacional e mercados internacionais são cúmplices para ferrar os trabalhadores no mundo todo.

  4. O que falta na Europa é mobilidade vertical e protagonismo dos d

    O que falta na Europa é mobilidade vertical e protagonismo dos descendentes das classes trabalhadoras.

    Muitos se perguntam por que da revolta dos ingleses contra a Comunidade Europeia e os votos nos movimentos populistas de direita em toda a Europa, se pode pensar que as pessoas que recebam todos os recursos de estados de Bem Estar Social, não deveriam reclamar tendo uma série de direitos e ajudas.

    Porém as pessoas confundem conforto e segurança mínima do Estado de Bem Estar Social a satisfação pessoal de cada um com mobilidade social e falta de protagonismo que se baseia todo o discurso Europeu. Espantam-se também pela revolta contra o “establisment” político-burocrático europeu que na realidade fornecem a estes revoltados todos os benefícios sociais que conhecemos. Estes que não entendem porque da revolta esquecem que as pessoas não vivem só de comida!

    Por mais que se criem mecanismos de garantia social, de serviços públicos com relativo sucesso a Europa tem um sistema de ensino associado a um sistema de progressão social que torna extremamente difícil a carreira de um jovem filho ou neto de operários aos cargos mais altos tanto das carreiras públicas como das carreiras em instituições privadas.

    A imensa maioria dos filhos e netos das classes proletárias em ascender a altos postos de trabalho na administração pública e privada. No exemplo francês, por exemplo, se tu és egresso de uma grande escola (grande escola são escolas de engenharia, de administração pública e de outros setores que são as melhores ranqueadas no sistema de ensino superior) tu terás garantido no setor público vagas para os egressos destas assim como nas empresas privadas serás recebido de braços abertos para tanto. Porém para ascender a estas grandes escolas terás que fazer um curso preparatório em instituições especiais para este fim (Classes  Préparatoires aux Grandes Écoles – C.P.G.E.) desde que tenha conseguido um bom resultado no BAC (exame semelhante ao ENEN, só que diferenciado conforme a carreira a ser desejada).

    Dos anos 40 até os anos 70 vários estudos realizados provam que a dificuldade de entrada nas Grandes Escolas aumentou após os anos 80 ou seja no sentido contrário do que se pode pensar (vide Diversité sociale dans les classes préparatoires aux grandes écoles : mettre fin à une forme de « délit d’initié » Publicação do Senado Francês), a diferença é tanta que em 2002 os alunos nas Grandes Escolas eram distribuídos na seguinte proporção conforme a “Origem sócio profissional do pai)

    Agricultores 3,5%

    Operários 5,2%

    Empregados 5,7%

    Artesãos 6,36%

    Aposentados 7,2%

    Profissionais de nível médio 10%

    Quadros superiores e profissionais liberais 67,5%

     

    Em resumo, profissionais de nível superior, que são uma minoria na França, conseguem colocar 67,5% de seus filhos nas grandes escolas, enquanto filhos dos demais só 32,5% entram nas Grandes Escolas.

    Por outro lado o Sistema Educacional Francês permite o ingresso livre nas Universidades em que recebem milhares de títulos diversos, e com um bom diploma conseguem se não ficarem desempregados um emprego de “technicien de grande surface” (faxineiro de supermercado).

    Em toda e Europa se reproduz o mesmo tipo de cenário, os grandes cargos e empregos são reservados para a elite da “meritocracia”, enquanto para os filhos do proletariado é reservado um diploma para ficar desempregado e ganhar um auxílio desemprego ou um emprego bem abaixo da formação acadêmica do mesmo.

    Esta falta de mobilidade social cria uma verdadeira revolta contra os chamados burocratas em geral e da Comunidade Europeia em particular, pois simplesmente estes filhos de operários e camponeses que ajudaram a construir a Europa dos dias atuais, além do desemprego, se eles conseguirem sair dele, a possibilidade de ganhar um salário inferior a que ganhava um bom operário entre 1955-1975 é muito grande.

    Estas pessoas se sentem alijadas das decisões europeias, pois o protagonismo que tem nas organizações políticas e sociais diversas é nulo, são chamados a votar periodicamente e encontram somente partidos de direita ou de esquerda que não apresentam nenhuma solução para os seus problemas.

    Nenhum filho de operário ou mesmo de desempregado passará fome, ficará sem abrigo ou ficará sem escola, porém a chance de saírem deste círculo vicioso é muito baixa.

    Na realidade o estado de bem estar social deu o mínimo para que seus pobres não passassem necessidade nem que seus filhos aparentemente tivessem a mesma oportunidade da burguesia europeia.

    O voto no Brexit, o voto nos partidos de direita e no extremo o ingresso no Daesh é explicado por uma ruptura entre a sociedade de massas e o “establisment” que realmente manda nesta sociedade. Estes movimentos simplesmente adotam um discurso de contrariedade a tudo sem precisar provar nada, e quando são confrontados com intelectuais estes são vistos mais como inimigos como alguém que queira resolver o problema (e grande parte das vezes a identificação é real).

    A falácia da meritocracia está levando a ruptura das sociedades que apesar de apresentarem índices mínimos de qualidade de vida satisfatórios não estão dispostas a discutir profundamente uma política de inclusão social real e de azeitamento da mobilidade vertical, pois claramente se vê que políticos e burocratas estão nesta perversa e desleal concorrência com as categorias sociais inferiores, e talvez instintivamente garantam antes de mais tudo a preservação do status quo que lhe dá certa garantia a sua prole.

  5. bom, muito bom!

    Gostei do post!

    È o que eu penso e não é de hoje.!!!!

    Interessante ver a irritação de histórico Daniel Bendit-Cohen ( ele está vivo, sim senhor) na tv francesa!

    Ele estava muito puto com o resultado!

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