Peleumonia, por Mestre Yoda

por Mestre Yoda

Muitas pessoas que, como eu, nasceram em famílias de trabalhadores, oriundos de algum pequeno município do interior do Brasil, se indignaram com o escárnio contido na selfie de Guilherme Capel, um jovem médico, branco, de classe media, que zombava do mecânico José Mauro de Oliveira Lima, um paciente que, por sua pouca escolaridade, não falava as palavras “pneumonia” e “raio-x” segundo a norma padrão do português brasileiro.

O ato que provocou enorme indignação foi capaz de traduzir, perfeitamente, o pensamento de muitos médicos brasileiros para os quais, o paciente humilde, trabalhador, semialfabetizado, é uma sub-raça, é sub-humano e, por isso, não merece um tratamento digno, não é capaz de pensar, dialogar e, por isso, sequer merece respeito. É bicho! É inferior, na escala de valores, ao poodle que pisa o sofá de sua sala.

A postagem de Capel caracteriza aquilo que o linguista Marcos Bagno definiria, em sua obra mais conhecida, como preconceito linguístico. Capel, o doutor sem doutorado que deve julgar-se o suprassumo da inteligência, mal deve ter ouvido falar na obra ou no famoso linguista. Tampouco deve ter familiaridade com grande parte dos conhecimentos das Humanidades. Como tantos médicos brasileiros, é provável que tenha se formado num curso no qual há primazia de disciplinas dos campos da biologia e das ciências biomédicas, tornando-se assim mais um profissional com a marca do mecanicismo, do biologicismo. Em outras palavras, um médico com tal formação, em seu consultório, trata de um mero corpo enfermo, do mesmo modo que o mecânico José Mauro conserta seus carros. Conhecimentos técnicos, da prática, mecânicos, que requerem pouca reflexão, num e noutro. O que os difere, ao que tudo indica, pode contar em favor do mecânico, pois se o mesmo for minimamente respeitoso com seus clientes, estará em vantagem sobre o homem do jaleco.

Tal comportamento, comum entre médicos brasileiros, tem origens na atrasada medicina medieval europeia, que, naqueles tempos misturava conhecimentos e crendices de povos nativos da Europa com a Astrologia. Neste período, as chances de cura, numa população altamente infectada por doenças infecciosas como a peste bubônica, a sífilis, a tuberculose e o tifo, eram mínimas. Os médicos tratavam os pacientes ricos e poderosos, como hoje, enquanto os religiosos cuidavam dos pobres, apenas com gestos de caridade, alimentando-os e afastando-os da população saudável.

Depois deste tempo, com a invenção do microscópio, as ideias de que partículas do ambiente, os miasmas, poderiam ser transmitidas, em dias de conjunção de Marte com Júpiter ou por castigo divino, começaram a ser questionadas. Isso, claro, fora das universidades. Em pleno século XX, no Brasil, muitos cursos de Medicina eram ainda resistentes às ideias de vacinação e tratamento químico via penicilina. Um dos maiores compositores brasileiros, Noel Rosa, por exemplo, ainda morreu, em 1937, por falta de tratamento adequado para a tuberculose.

Deste modo, o domínio de conhecimentos desta medicina científica brasileira, tão juvenil ainda, deveria ser motivo para mais humildade do rapaz que, mesmo tendo pedido desculpas, sabemos, não deixará de ser um elitista preconceituoso assim, da noite para o dia.

Além do mais, os que dominam o Estado da Arte da Epidemiologia, da Infectologia, da Saúde Pública, compreendem, diferente do arrogante rapaz, já superaram esta visão, segundo a qual a doença infecciosa inscreve-se no corpo. Especialistas contemporâneos compreendem que a doença é um complexo no qual estão englobados fatores como os psíquicos, os sociais e os culturais. Médicos que, dominam estes e outros saberes, compreendem a nocividade do processo que Paulo Freire denomina de invasão cultural.

Por isso, ao invés de perceber seu próprio povo como digno de pena ou compaixão, admira-o e sente orgulho destas que são suas próprias raízes, fincadas nos vastos rincões deste país que fala píula (ou pírula), célebro, custipação e peleumonia. Jovem Capel, escute a voz do Mestre Patativa que diz “é melhor falar errado dizendo a coisa certa do que falar certo dizendo a coisa errada”!

Redação

18 Comentários

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  1. Todo arrogante, na realidade

    Todo arrogante, na realidade é um ignorante.

    Pena que muitas vezes, leva um tempo para ser desmascarado, na cultura do roubo de colarinho branco e da falsidade.

    Espero que o pedido de desculpa do caso em questão, tenha sido sincero, e leve o referido médico, para patamares humanos superiores.

    1. pois é, Meire, é como se

      pois é, Meire, é como se esquecessem que, no final, viraremos, todos, comida de minhoca. Acredito que o pedido de desculpas foi importante, mas estou certo de que, para mudar, é necessário que este sujeito tenha outras vivências, que mudanças consistentes requerem tempo. Quem viver verá! Abraços

    1. Você tocou num ponto

      Você tocou num ponto importante, Frederico: ética. Nos cursos de Medicina, a chamada “Ética Médica” que, em muitos cursos é disciplina de graduação, é reduzida à Deontologia, um mero conjuntinho, um receituário moralista que preceitua, entre outras coisas, que um médico não deve ‘falar mal’ de outro médico, o que os torna, como categoria, quase uma maçonaria. E é por isso que fatos como esse, embora envergonhem grupos de médicos sérios, integram, como regra, o comportamento e o valores da maioria.

  2. Infelizmente essa arrogância

    Infelizmente essa arrogância é disseminada na sociedade brasileira.

    Por ocasião do juri do assasino da prefeita de Mundo Novo (MS), Dorcelina Folador (PT), os sem terra fizeram uma manifestação em frente ao Fórum, onde gritavam: Dorcelina ‘vévi’. Eu fazia faculdade de Direito e meu professor de Direito Penal, promotor,  fez piada em sala de aula pelo ‘vévi’ dos sem terra.

    1. Concordo, Selma, mas

      Concordo, Selma, mas profissionais de áreas mais elitizadas, como o Direito e a Medicina, com a crítica e a compreensão social que você tem, ainda que raros, crescem a cada dia e nos dão alento. Quem dera um dia tenhamos, como regra, mais Selmas, mais Fábios Comparatos, mais Dráuzios Varellas! Abraços

  3. E nos grupos privados nas redes sociais????

    O medico demitido disse que era uma brincadeira que foi postada num grupo privado de me´dicos nas redes sociais. Aí me veio a seguinte curiosidade: Quantas barbaridades devem ser postadas nesses grupos privados de médicos???? Fico até com medo, afinal não podemos escapar deles!!!

    1. De fato, Fredson, aquilo que

      De fato, Fredson, aquilo que vem à tona corresponde, provavelmente, à ponta do iceberg dessa sujeira toda. Como disse o Renato, acima, as denúncias de violência nos trotes em cursos de Medicina, pelo Brasil, as denúncias de posturas fascistas, entre outras coisas, nos mostram que é preciso uma reforma curricular nos cursos de Medicina urgentemente, além de uma inclusão mais maciça de pessoas de outros estratos sociais, para termos mais médicos comprometidos, verdadeiramente, com a população.

  4. No meu face divulguei o

    No meu face divulguei o escárnio do médico e ontem seu pedido de desculpas. Me pareceu bem sincero e um exemplo a ser seguido por outros de sua classe.

     

     

    Edivaldo Dias de Oliveira compartilhou a publicação deGuilherme Capel Pasqua.

    12 h ·    Foto de Guilherme Capel Pasqua.Guilherme Capel Pasqua  sentindo-se arrependido em Serra Negra.Seguir20 h ·  

    “Uma imagem fala mais que mil palavras”

    Eu errei, me arrependi e me sinto mal com isto. Este pedido de desculpas vai a todos os brasileiros que se ofenderam com a brincadeira da “peleumonia”. Sr. José Mauro hoje tornou-se meu amigo. Fui até a casa do mecânico que virou símbolo nacional. Diante da exposição ao hospital Santa Rosa de Lima de Serra Negra gostaria também de me retratar. Como prova disso, fico à disposição da ONG que ajuda este hospital para realizar plantões voluntariados nos quais todo o dinheiro arrecadado será destinado a ONG que ajuda este hospital.

    Este sou eu: Guilherme Capel Pasqua.

    Obs: O telefone para quem quiser doar para esta mesma ONG é 19 38924946.

     

    1. Ninguém muda,

      Ninguém muda, substancialmente, de uma hora para outra. O médico precisava limpar sua barra, ficou queimado. Só o tempo dirá se foi sincero ou não, mas, enfim, foi positiva a atitude, aguardemos o desfecho da história para saber se a lição, de fato, serviu a ele.

    2. Não tem perdão nenhum!

      Não tem perdão não, descendente de carcamanos fascistas!

      O mecânico pode ter te perdoado, porque nosso povo mais humilde é de uma grandeza que jamais vai ser entendida por um italiano fascista, com pretensões a sapiente como você, mas quem se ombreia contigo em cultura sabe que você é apenas um lixo humano, descendente de uma raça de víboras que em má hora deixamos se estabelecerem no Brasil, depois de expulsos da Europa como refugiados econômicos, pela segunda revolução industrial.

      Sabemos o que você pensa do Brasil e dos brasileiros, e queremos que você, seus pais, irmãos e filhos, deixem o país para sempre, se possível só com a roupa do corpo e sob a mira de fuzis… 

    3. Medão de proce$$o !

      “Arrempendimento” coordenado por advogado?

      Um processo na justiça pode custar muito dinheiro.

      No CRM, não daria em nada, pois lá a ética é mais “”para os nossos, “não vem ao caso”” !

      Mas na justiça comum poderia sim custar uma grana preta.

      Se esse rapaz queria só fazer uma chacota, ainda assim mostra o quanto ele despreza (foi ensinado!?) o paciente do “nível” do mecânico, que, depois, passou até a ter nome!

  5. Médicos têm bom vocabulário,

    Médicos têm bom vocabulário, o que lhes permite ganhar dinheiro fácil por exemplo inventando colecistectomias (tirar a vesícula) desnecessárias. Fora o que tem de nego carregando telinhas na barriga, sobre hérnias inexistentes (no máximo irrelevantes) e partos cesáreos induzidos… pela força do convencimento.

    Esse negócio de neoliberalismo, tudo egoicamente por dinheiro, poder e glória, ainda ia acabar mal…

    Não à toa os “trotes” mais violentos, muitas vezes assassinos, são nas escolas de Medicina frequentadas pela elite. Estabelecer hierarquias de poder é a regra número um nesse ramo.

    1. De fato, Renato. Conheço até

      De fato, Renato. Conheço até bons médicos, gente rara. Ministrei uma disciplina para o curso de Medicina durante mais de uma década e é um trabalho inglório, dado que grande parte do curso são especialidades ministradas por médicos privados com altos interesses mercantis e bastante desumanizados.

  6. Coisa de pobre…

    … de espírito.

    Infelizmente muito mais difundido do que poderíamos imaginar.

    Médica mineira que comentou polêmica da ‘peleumonia’ sofre ataque racista

     

    Júlia Rochana sexta

    EXISTE PELEUMONIA.

    Eu mesma já vi várias. Incrusive com febre interna que o termômetro num mostra. Disintiria, quebranto, mal olhado, impíngi, cobreiro, vento virado, ispinhela caída. Eu tô aqui pra mode atestá. Quem sabe o que tem é quem sente. E eu quero ouvir ocê desse jeitinho. Mode a gente se entendê. Por que pra mim foi dada a chance de conhecê as letra e os livro. Pra você, só deram chance de dizê.

    Facebook/Reprodução

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