Quando a meritocracia se torna a ideologia da desigualdade, por Jailson de Souza e Silva

Cintia Alves
Cintia Alves é graduada em jornalismo (2012) e pós-graduada em Gestão de Mídias Digitais (2018). Certificada em treinamento executivo para jornalistas (2023) pela Craig Newmark Graduate School of Journalism, da CUNY (The City University of New York). É editora e atua no Jornal GGN desde 2014.
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Por Jailson de Souza e Silva¹
 
No Observatório e Favelas
 
A revolução francesa realizou um grande feito histórico quando permitiu a superação do princípio feudal de que as pessoas² seriam naturalmente desiguais, em decorrência de sua origem social. A ideia de que todas são iguais – mesmo que uma igualdade restrita à lei e ao poder do Estado – representou uma verdadeira revolução do ponto de vista conceitual, jurídico e social. Nasceu, então, o discurso do mérito pessoal como um elemento justificatório das condições sociais alcançadas pelos sujeitos, reconhecidos em suas diferenças a partir da biologia, do ethos trabalhador e mesmo da moral. Desde então, o discurso meritocrático se tornou a principal forma de legitimação das desigualdades no mundo social ocidental. E o tipo ideal de herói capitalista passou a ser o “self made man” – na típica linguagem sexista, seria o homem que faz a si mesmo.
 
O processo de naturalização da meritocracia se apresenta como a principal justificativa, no caso do Brasil, da evidência que os brancos, especialmente os homens, estão nas principais posições econômicas, políticas, hierárquicas, culturais e escolares no mundo social. São eles – e, em menor proporção, as mulheres brancas – amplamente majoritários nas universidades públicas, na direção e gerência de empresas do mercado, na ocupação dos cargos mais valorizados e prestigiados do Estado, na área cultural e mesmo na área esportiva, especialmente nos esportes que demanda mais investimentos econômicos.
 
A meritocracia se torna uma ideologia – no caso, um efeito que se afirma como causa ou uma explicação que cria uma ilusão sobre a realidade – quando a estrutura desigual brasileira não é reconhecida como a verdadeira base da manutenção das posições dominantes das pessoas brancas, e não o contrário. O vestibular é um dos exemplos mais gritantes disso: as desigualdades econômicas e de escolarização fazem com que as adolescentes oriundas das famílias mais ricas e escolarizadas tenham melhor desempenho na prova de acesso à universidade. Isso porque essas universidades trabalham historicamente com a premissa de uma pretensa excelência em sua porta de entrada e não em sua porta de saída. Os resultados da política de cotas demonstraram que não há diferença de desempenho entre estudantes cotistas ou não cotistas nas universidades. Mas, mesmo com dados científicos comprovados, o fato não arranhou a pretensa credibilidade do discurso meritocrático.
 
O exemplo mais perverso, no presente, é o sistema judiciário: sua estrutura histórica de seleção favorece pessoas jovens de classe média alta, que tiveram acesso a universidades de maior qualidade, que não precisam trabalhar durante o curso e depois podem permanecer alguns anos, realizando bons cursos, se preparando para os concursos em profissões como juízas, promotoras, procuradoras etc. São elas, sem nenhuma experiência no mundo mais abrangente da sociedade, dominadas pela ideologia meritocrática e uma perspectiva punitivista que estão colocando nas prisões centenas de milhares de jovens pessoas negras, das periferias e favelas.
 
Pierre Bourdieu já demonstrava em sua teoria social o peso central dos capitais social, econômico, político, cultural e simbólico, dentre outros, para se reproduzir a condição social distintiva ou para melhorá-la. Ele provou como a meritocracia perde qualquer capacidade explicativa quando coloca em condições ilusoriamente iguais pessoas com diferentes volumes de capitais.
 
Assim, uma jovem que chega na universidade e a conclui quando nenhuma pessoa da sua família ou sua rede social o fez tem muito mais mérito do que uma pessoa que já encontrou todas as condições dadas para isso. Logo, as ações afirmativas têm como premissa a busca de colocar em posições iguais pessoas estruturalmente desiguais do ponto de vista do acesso aos diferentes capitais.
 
Por isso, as políticas de cotas para as universidades, reconhecidas como um elemento central de ação afirmativa, estão sendo complementadas com as cotas para o serviço público. Isso é um grande avanço. Que deve ser seguido pelas mesmas políticas de valorização da diversidade nas empresas privadas. Desse modo, a meritocracia será reconceituada, sendo considerada a partir das diferentes condições de tratamento para pessoas que se construíram como seres sociais em uma sociedade estruturalmente desigual e distintiva. Apenas quando atingirmos plenamente essa igualdade de oportunidades poderemos recuperar o sentido mais generoso e pleno da igualdade das pessoas imaginada na Revolução Francesa. Que esse dia logo chegue para todas.
 
¹ Fundador do Observatório de Favelas, Diretor do Instituto Maria e João Aleixo, Professor associado da Universidade Federal Fluminense.
² A fim de enfrentar o sexismo que vive em mim, e em todos nós, quando for necessário explicitar o gênero no texto, terei como premissa a palavra “pessoa”; logo, o gênero escolhido será o feminino, mesmo quando citar também pessoas do sexo masculino.
Cintia Alves

Cintia Alves é graduada em jornalismo (2012) e pós-graduada em Gestão de Mídias Digitais (2018). Certificada em treinamento executivo para jornalistas (2023) pela Craig Newmark Graduate School of Journalism, da CUNY (The City University of New York). É editora e atua no Jornal GGN desde 2014.

2 Comentários

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  1. Sou da geração em que não

    Sou da geração em que não havia Ciência sem Fronteiras nem Inglês sem Fronteiras. As fronteiras de uma boa formação escolar eram o poder aquisitivo e as relações de parentesco e amizade dos pais das crianças ou jovens. Na vida profissional, a meritocracia que prevalecia era ainda a do parentesco (mesmo que fosse por casamento com alguém importante), ou ligação a algum movimento influente (político, maçonaria) ou bajulação escancarada dos superiores hierárquicos. Quem não tinha QI não se estabelecia. Parece que retrocedemos a isso.

  2. Abolir a meritocracia é sabotagem. Qualquer trabalho voltado para oferecer às minorias condições equânimes de ponto de partida será maravilhoso. Mas baixar o nível de exigência seletivamente, com base em critérios como características étnicas, níveis de pobreza, gênero etc. é absurdo. Que se criem entidades de capacitação para estes que portam hipotéticas desvantagens. A meritocracia envolve empenho e desempenho em proporções variáveis de acordo com diferentes visões. Se for abolida ocorrerá o que nossa “mestra” profetizou: ninguém vai ganhar ou perder, todos vão perder…

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