Quem são os Xokleng, os indígenas que podem mudar a trajetória jurídica das demarcações

Os indígenas Xokleng que se autodenominam "Laklanõ" ("gente do sol" ou "gente ligeira") vêm lutando para preservar sua cultura, seu idioma e mitologia após processos de aculturação e ataques ao seu território.

Grupo Xokleng no Rio Plate, Santa Catarina — Wessel/Instituto Socioambiental

da Comissão de Direitos Humanos e Minorias – Câmara

Quem são os Xokleng, os indígenas que podem mudar a trajetória jurídica das demarcações

No século XIX, com a colonização europeia no sul do país, os indígenas, apelidados pejorativamente de “bugres” (pagãos), sofreram um intenso processo de extermínio. Os bugreiros, como ficaram conhecidos os indivíduos especializados em atacar e dizimar aldeias inteiras, eram contratados pelos governos imperiais das províncias do Paraná, Rio Grande do Sul e Santa Catarina. Por vezes, somente meninas indígenas eram “poupadas” e escravizadas.

Mas mesmo migrando do Rio Grande do Sul para Santa Catarina, os Xokleng não escaparam do contato com os brancos, o primeiro em 1914. Nos 20 anos seguintes, dois terços deles foram dizimados por grandes epidemias de gripe, febre amarela e sarampo, como indicado no último censo, feito em 1997.

Os Xokleng se dividiram em três grupos. Os Angying, que habitavam a Serra do Tabuleiro, nunca foram oficialmente contatados e são tidos como desaparecidos ou mortos. Os Ngrokòthi-tõ-prèy firmaram-se no oeste do Estado, próximo ao município de Porto União, mas, em 1914, aqueles que rejeitaram as condições impostas por colonizadores e pelo Estado foram executados em uma enorme chacina, restando cerca de 50 indígenas, que morreram, quase todos, de doenças respiratórias decorrentes do contato com não índios. Os Laklanõ, por sua vez, firmaram-se no Vale do Itajaí, próximo ao município de Ibirama.

Os indígenas Xokleng que se autodenominam “Laklanõ” (“gente do sol” ou “gente ligeira”) vêm lutando para preservar sua cultura, seu idioma e mitologia após processos de aculturação e ataques ao seu território.

O Serviço de Proteção ao Índio (SPI), criado em 1910, serviu, em grande medida, para “pacificar” os indígenas e viabilizar a construção da estrada de ferro São Paulo-Rio Grande e a concessão de terras a colonos. Nesse processo de “pacificação”, duas famílias Kaingang contribuíram com o SPI em troca do direito ao usufruto daquelas terras. Desde então casamentos interétnicos vêm ocorrendo, e o número de mestiços Kaingang/ Xokleng tornou-se um traço marcante nessas comunidades.

Ainda nesse processo de “pacificação”, o órgão indigenista reduziu o território ocupado pelos Laklaño de 40 mil hectares para 15 mil, apesar de já haver, na época do Império, lei que reconhecia o direito indígena sobre seus territórios (Lei 601, de 1850).

Na década de 70, o órgão indigenista autorizou a construção da Barragem do Norte para proteger das enchentes no vale do Itajaí as cidades de Ibirama, Indaial, Blumenau e Gaspar. O preço foi a inundação de 1000 hectares de terra produtiva dos indígenas, justamente onde ficavam as aldeias. Basta um pouco de chuva para deixar a escola indígena submersa até a metade. Já não se pratica a agricultura e a caça é rara. A pesca serve como suplemento alimentar, junto a alimentos comprados.

Famílias desabrigadas; casas inundadas e condenadas; falta de água potável e alimentos; estradas interditadas; aldeias isoladas; cancelamento das aulas nas escolas; falta de acesso dos profissionais de saúde às aldeias; riscos de novos deslizamentos; insegurança e angústia pela próxima enchente. Esse é o cenário com que a comunidade precisa lidar após a construção da barragem.

De acordo com o Instituto Socioambiental, até hoje os indígenas não foram devidamente indenizados; tampouco houve a construção total de casas, pontes e estradas prometidas pelo governo. Apesar de os prejuízos serem imensuráveis e cumulativos, até o momento nenhum estudo foi realizado para verificar os impactos ambientais, socioculturais e psicológicos para a população indígena.

A comunidade indígena buscou, na Justiça, o cumprimento de um protocolo de intenções firmado com o Estado de Santa Catarina, a Funai e a União. Os indígenas ganharam em primeira instância, mas a União e o estado recorreram e o processo encontra-se no Supremo Tribunal Federal.

Luta pelo reconhecimento da terra – uma saga judicial

Apenas em 1998, foi criado um grupo de trabalho pela Funai, que reconheceu o confinamento dos indígenas em área reduzida pelo próprio Estado e constatou a necessidade de ampliação dos seus limites. Em 2003, o Ministério da Justiça publicou Portaria Declaratória, restando pendente apenas a homologação da demarcação pelo Presidente da República, a última etapa da demarcação.

Hoje, mais de dois mil indígenas de três povos, Xokleng, Guarani e Kaingang, residem na Terra Indígena Ibirama-La Klaño, com 37 mil hectares, à margem do rio Itajaí do Norte, em Santa Catarina. Estão sobrepostas sobre 10% do território a Reserva Biológica Sassafrás e a Área de Relevante Interesse Ecológico Serra da Abelha.

A Portaria que declarou a terra como tradicionalmente ocupada pelos indígenas foi questionada na Justiça pelo estado de Santa Catarina, por empresas madeireiras e por particulares. O processo tramita no Supremo Tribunal Federal (ACO 1100). O relator é o Ministro Edson Fachin. Foram apensadas a esse processo outras ações relacionadas à demarcação, à posse da terra e à área de proteção ambiental.

Em uma dessas ações, havia decisão da segunda instância autorizando reintegração de posse contra os indígenas. O argumento do Tribunal Regional Federal da 4ª Região foi o de que a posse somente precisaria ser assegurada aos indígenas após a conclusão do processo de demarcação. A Funai recorreu à Suprema Corte, que reconheceu a repercussão geral do recurso (RE 1017365), uma vez que condicionar o direito de posse dos índios à homologação do procedimento demarcatório viola o que dispõe a própria Constituição, no seu artigo 231 da Constituição. Como bem lembrou o Ministro, essa interpretação equivocada ainda é frequentemente adotada pelo Judiciário.

O plenário do Supremo, ao reconhecer a repercussão geral, asseverou que a Corte precisa se debruçar mais uma vez, e com efeito vinculante, sobre temas não pacificados da questão indígena, como o marco temporal, a caracterização do esbulho possessório das terras indígenas, a relação entre os poderes de posse dos índios e o procedimento administrativo de demarcação, entre outras questões.

O Presidente da Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara dos Deputados se manifestou perante o Ministro Fachin, relator do Recurso Extraordinário, denunciando uma série de violações advindas do próprio poder público aos direitos dos índios e solicitando a imediata suspensão de parecer da Advocacia-Geral da União que limita as demarcações.

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Após o julgamento do Caso Raposa Serra do Sol, em 2009, a análise do Caso Xokleng pelo Supremo deve substituir aquele precedente, instituindo parâmetros de interpretação dos direitos indígenas assegurados na Constituição que deverão ser aplicados a todas as terras indígenas.

Resgate da cultura e adaptação da espiritualidade

Após a inundação das aldeias pela construção da barragem, a comunidade precisou se mudar para a parte mais alta, e passaram a lidar mais diretamente com o desmatamento, a exploração ilegal de madeira, e a tensão dos conflitos com posseiros e fazendeiros.

Nesse contexto de rupturas sociais, políticas, econômicas e culturais, aumentaram também os casamentos com não indígenas, desencadeando um gradual processo de aculturação a ponto de, hoje, a maioria dos jovens falar somente o português.

Por outro lado, falar a língua Lakaño-Xokleng em público tem se tornado um símbolo político muito forte, ligado ao empoderamento e à construção de uma identidade étnica positiva.

Isso porque, a partir de 1992, por iniciativa do Xokleng Nanblá Gakran, o idioma vem sendo revitalizado, através da sua incorporação nas escolas da terra indígena Ibirama. O líder e professor indígena criou um pequeno dicionário xokleng-português e um livreto com “lendas”, nos dois idiomas. Com o apoio da FUNAI, das prefeituras locais e da Fundação Universidade Regional de Blumenau, esses materiais têm sido usados em sala de aula.

Além disso, o Estado de Santa Catarina mantém monitores bilíngues nas escolas básicas de municípios circunvizinhos para viabilizar o aprendizado do idioma. Discute-se, ainda, a organização de uma grade curricular diferenciada para os Xokleng, ainda não concretizada.

Com essas iniciativas, tanto os adultos, que não conheciam o xokleng escrito, quanto as crianças, que não falavam a língua, estão despertando para a importância de se conhecer seu idioma e cultura.

E a espiritualidade dos Xokleng sofreu grande influência dos missionários da Assembleia de Deus, que frequentam as aldeias desde a década de 50, . Num processo de conversão ao pentecostalismo, os indígenas reformularam suas antigas crenças e práticas religiosas, tentando manter sua identidade. Apesar das imposições e receios dos líderes da Assembleia de Deus, os mitos têm sido recontados, escritos em cartilhas e passados para as crianças. O xamanismo foi deixando de ser praticado quando não foi suficiente para curar as doenças trazidas pelos brancos. Hoje é praticado um ritual parecido pelos líderes evangélicos Xokleng chamado de des(possessão), quando os indígenas aplaudem, gritam, jogam-se no chão, pulam e imitam animais.

Assistência social e saúde

O posto indígena, que até 1996 se situava dentro da terra indígena Ibirama, foi deslocada para o município de José Boiteux. A Funai está dilapidada, cada vez mais sem recursos e sem pessoal qualificado.

Não há atendimento médico especializado, como determina a lei; os indígenas dependem do SUS. A comunidade convive com a tuberculose, a desnutrição e doenças sexualmente transmissíveis – em 1988, os Xokleng se tornaram o primeiro grupo indígena, identificado no Brasil, a apresentar casos de HIV/AIDS.

Organização política e social

Atualmente os Xokleng da TI Laklano-Ibirama vivem em oito aldeias, todas com autonomia política e um cacique-presidente dá unidade aos Xokleng perante as instituições com que dialogam. Os líderes são escolhidos por voto direto e periódico, podendo ser reeleitos ou destituídos por abaixo-assinado.

A organização social se dá em núcleos familiares de forma que irmãos, cunhados, noras e genros vivem próximos uns dos outros, trabalham juntos e repartem os frutos de sua produção.

 

Mariana Trindade / CDHM

Com informações do CIMI e do ISA

Redação

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