Sentados no Cais do Valongo, esperamos…, por Fábio de Oliveira Ribeiro

Sentados no Cais do Valongo, esperamos…

por Fábio de Oliveira Ribeiro

Há alguns dias resenhei o livro Estado Pós-Democrático. Desde então tenho lido e relido e meditado sobre o livro de Rubens R. R. Casara. As virtudes da obra são inegáveis. 

Alguns livros são superficiais e se tornam grãos de areia nas praias que margeiam o oceano do conhecimento. Outros rapidamente afundam em virtude do peso da erudição. Poucos são capazes de instigar o estudo de questões que foram sugeridas pelo autor ou que podem ter ficado submersas, escondidas sob a superfície a partir da qual o livro se projeta textualmente.

Casara se refere à importância da imprensa para a consolidação da razão neoliberal que culmina agora com a tolerância estatal do trabalho análogo ao do escravo. Curiosamente, o golpe de estado que consolidou o Estado Pós-Democrático ocorreu pouco depois de escavações no Rio de Janeiro que revelaram estruturas importantes do Brasil imperial, dentre estas o Cais do Valongo.

Pelo Cais do Valongo passaram centenas de milhares de escravos que chegaram para ser moídos no Brasil, por ele passou D. Pedro I ao chegar à colônia e ao partir do Brasil independente.

“À medida que nos aproximamos da abdicação de Pedro I sentimos crescer e aumentar o ímpeto das paixões. Aberta a luta pela abdicação, os pasquins saem à rua com a linguagem mais contundente e apaixonada de que se tem notícia na história de nossa imprensa. Os exageros dos periódicos já se vinham acentuando desde algum tempo, pois por aviso de 14 de outubro de 1818, foram proibidos periódicos como O Campeão e o Amigo do Rei e do Povo.” (O Rio Antigo, Delso Renault, livraria José Olympio, Rio de Janeiro, 1969, p. 79)

A abdicação de D. Pedro I consolidou o poder das oligarquias regionais. D. Pedro II, herdeiro do trono, não tinha nem idade para governar nem condições políticas de se impor. O golpe de 2016 desmantelou o Estado de bem-estar social centralizado que vinha sendo construído pelo PT. O poder das elites estaduais foi amplificado, inclusive e principalmente porque o usurpador Michel Temer se tornou refém de deputados e senadores que cobram favores (isenções fiscais, perdão de dívidas bancárias, tributárias e previdenciárias, medidas que favoreçam o desmatamento, interrupção do combate ao trabalho escravo, aprovação de emendas orçamentárias, etc…) para preservá-lo no cargo.

A virulência da imprensa contra Dilma Rousseff, evidente para qualquer pessoa que analise o período que antecede o golpe de 2016, encontra um paralelo evidente no ataque sistemático feito a D. Pedro I. O motivo foi basicamente o mesmo: o assalto ao poder e aos cofres públicos. A campanha pela abdicação do imperador não questionava o principal fenômeno do Brasil do século XIX (a escravidão), a que resultou na queda de Dilma Rousseff em momento algum questionou a desigualdade social.

No Brasil Império a igualdade social só era um valor político entre os homens livres e, especialmente, entre aqueles homens livres que dispunham de poder econômico e que, portanto, estavam em condições de monopolizar o poder após a queda do rei. No Brasil Pós-Democrático, a desigualdade entre a população em geral e os beneficiários econômicos do golpe era o objetivo político a ser alcançado. O golpe como disse em outro lugar, não foi um ponto fora da curva. Ele pavimentou uma reta entre o passado e o futuro escravocrata brasileiro.

“Feitor assassinado
Ao amanhecer do dia 11 foi morto na fazenda Cachoeira nas immediações da estrada da Rocinha o feitor da mesma fazenda por seis escravos que se evadiram. O infeliz feitor servia apenas há 12 dias na fazenda.” (Província de São Paulo, 15 de novembro de 1881)

“Assassinado em campinas
Um horroroso acontecimento deu-se quando foi barbaramente assassinado por seus escravos o conceituado e conhecido fazendeiro Sr. Francisco Sales, 27 anos de idade e cunhado do distinto advogado Sr. Dr. Manoel Ferraz…” (Correio Paulistano, 1876)

“Enforcado
Hontem enforcou-se o escravo Domingos (…). Ignora-se o motivo que levou a este acto de desespero, pois era pagem.” (Correio Paulistano, 26 de setembro de 1880)

Escravo fugido
“Fugiu de Limenra (…) o escravo Luiz mulato, pouca barba, cabellos soltos (…) muito preguiçoso, algum tanto abobado, muito obediente e humilde, foi cosinheiro hoje trabalha na roça…” (Província de São Paulo, 30 de julho de 1878)

“Castigos immundos
É preciso que se acabe de vez com o systema antivo e bárbaro usado pelos fazendeiros estúpidos que castigam barbaramente seus escravizados carregando-os de ferros, matando-os a fome e nudez… Ainda ha poucos dias libertou-se uma preta de nome Joaquina que pertence a um fazendeiro titular e rico. Essa infeliz amamentou com seu leite a um dos filhos desse fazendeiro e conta que quando carregava a criança a fim de amamental-a trazia vezes na boca um ferro de pao. Eis aquí o que se pode chamar de acúmulo de malvadez” (A Redempção, 14 de agosto de 1887)

Estes artigos de jornal foram reproduzidos por Lilia Moritz Schwarcz, na obra Retrato em Branco e Preto, Companhia das Letras, São Paulo, 2008, respectivamente nas páginas 121, 167, 131, 149 e 218. Eles exemplificam à violência praticada por escravos, a violência auto-infligida por escravos, a violência imposta aos escravos e a violência contra os interesses patrimoniais dos senhores de escravos. A violência da desigualdade social entre o senhor e o escravo, porém, era naturalizada. Ela fazia parte da paisagem econômica e não era vista pela imprensa brasileira.

Alguns séculos depois, a imprensa parece ter evoluído. Ela já é capaz de ver a favela (local privilegiado dos atos ilegais de violência praticados pelos agentes do Estado Pós-Democrático que se tornam espetáculos televisivos rentáveis, como menciona Rubens R. R. Casara no seu livro). Mas a paisagem das cidades brasileiras, marcada por desigualdades (o bairro nobre x a favela; a boa casa x o barraco), continua naturalizada. Tão naturalizada que ela não pode ser vista pelo Estado.

Quando Dilma Rousseff criou o programa Minha Casa Minha vida e ameaçou transformar a paisagem urbana a reação da imprensa e, consequentemente, da classe média, cresceu até se tornar irresistível. No Brasil os pobres não devem ter direito de habitar casas modestas financiadas com dinheiro público. O mercado solucionará o problema, o que equivale a dizer que os pobres devem permanecer nas favelas até que sejam expulsos delas pelo próprio mercado quando os empresários resolvam construir novos condomínios de classe média. As favelas, com seus barracos transitórios, podem ser deslocadas para as novas periferias à medida que a cidade cresce. E assim elas continuarão a fazer parte da sagrada paisagem brasileira. Tem que manter isso… diria Michel Temer.

“…em qualquer lugar onde o homem tenha aparecido ele tomou posse, em forma nômade ou estável, de uma certa faixa da natureza, com vistas à atividade econômica que necessariamente tinha que desempenhar. Ele podia deslocar-se – e é notório que assim aconteceu com a maior frequencia – em busca de outro habitat, de novas condições naturais, de modo que este processo de ocupação ou integração terra/homem foi contínuo.
No caso do Brasil, como para todo o Novo Mundo, o fenômeno assumiu um feitio mais peculiar, pois além da ocupação inicial pelas populações aborígenes, houve uma ocupação – no sentido de conquista – vinda de fora, visando à integração das terras conquistadas não apenas aos seus novos habitantes, mas também ao sistema central que empreendia a conquista.
Dentro desse modelo expansionista, pode-se falar, ao invés de ‘ocupação’ ou ‘integração’, em ‘colonização’, no duplo sentido da palavra: transformação em colônia e habitação por colonos  – fatos que ocorreram de maneira simultânea, pois, independente da decisão legal, teórica, de colonização, havia o fato concreto da ocupação que criava o status de colônia.”
(Brasil: problemas econômicos e experiência histórica, Mircea Buescu, Forense-Universitária, Rio de Janeiro, 1985, p. 27/28)

A violenta ocupação do espaço geográfico que originou a colônia é agora legitimada do Estado Pós-Democrático. Os mitos fundadores do país (dentre os quais a precedência do concreto ao legal, do econômico ao humano, da desigualdade real à igualdade jurídica) reencontram assim seu lugar na política. Que política? Onde predomina a expansão da violência, do uso da força sem qualquer limite, não ha espaço para a política. A conquista não é um ato político ele é sua negação. Não por acaso o golpe de 2016 se construiu como uma negação da política como menciona o autor do livro Estado Pós-Democrático.

Casara afirma que a razão neoliberal tende a dividir a sociedade entre aqueles que tem (capacidade de consumo, cidadania, poder político) e aqueles que não tem (e não terão dinheiro, direitos e garantias constitucionais, dignidade humana). Uns são incluídos e protegidos pelo Estado, outros são excluídos e controlados porque “…demonstram ‘falhas de caráter’, ‘deficiências comportamentais’, ‘preguiça para o trabalho’, ‘rebeldia’ ou qualquer outra etiqueta neoliberal…” (Estado Pós Democrático, Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 2017,  p. 189/190).

No Brasil colonial, também havia uma clara distinção entre excluídos e incluídos.

“Constituiam uma parcela significativa da população os carentes de recursos. Entre eles vamos encontrar os que viviam de esmolas, os pobres, doentes, vadios e dependentes de familiares. Chamou-nos a atenção o grande número de indivíduos que dependiam de esmolas (97).
Os vadios em algumas vilas apareciam com maior freqüência e estes em muitas ocasiões mereceram  a atenção das autoridades, que procuravam combate-los com várias medidas. Em 1765, por exemplo, a Câmara de São Paulo procurou fazer com que os vadios se dedicassem a algum ofício ou então que plantassem roças…”
(As elites na sociedade paulista na segunda metade do século XVIII, Elizabeth Darwiche Rabello, Editora Comercial Safady, São Paulo, 1980, p. 79)

“Sem dúvida alguma a necessidade de construção de engenhos, o incremento econômico que a Capitania de São Paulo vinha aos poucos tomando deve ter contribuído para que nas últimas décadas do século XVIII aumentasse o número de concessões de sesmarias. Entretanto, a posse da terra ‘quase sempre precede a concessão da sesmaria em São Paulo…A pessoa constroi a casa, roças, engenho para depois então pedir a sesmaria e muitas vezes o roceiro deixava de pedir a sesmaria (51).’” (As elites na sociedade paulista na segunda metade do século XVIII, Elizabeth Darwiche Rabello, Editora Comercial Safady, São Paulo, 1980, p. 53)

Na fase atual, sob um prefeito neoliberal, São Paulo se esforça para incluir um empresário que pretende produzir ração com restos de comida vencida. Os neo-vadios (desempregados, mendigos, viciados em drogas, etc…) são espancados pela PM e expulsos das praças onde dormem com jatos de água fria durante o inverno. Opera-se aqui uma evidente inversão: além de nem sequer cogitar a hipótese de construir roças comunitárias para fazer os excluídos trabalharem a fim de se alimentarem de maneira saudável, o poder público tenta legitimar a distribuição de ração antes mesmo do empresário ter investido na produção da gororoba. O neoliberalismo não elimina apenas a dignidade humana dos vadios, ele elimina também o risco econômico daqueles que produzirá a ração para alimentá-los.

Casara afirma que a razão neoliberal é excludente e que reserva para o excluído a face punitiva do Estado. Doria Jr. parece pensar de maneira diferente. O prefeito de São Paulo quer incluir os neo-vadios como consumidores da ração lucrativamente produzida com incentivo público. A nova punição imposta a eles (comer ração fabricada com restos quase vencidos e vencidos) substituirá as punições tradicionalmente impostas pela razão neoliberal (espancamentos, prisões e jatos d’água).

O neoliberalismo conseguirá assim transformar a desumanização em lucro. A vida dos neo-vadios poderá ser mantida, desde que eles se alimentem como se fossem animais. Todavia, os animais das madames paulistas poderão continuar consumindo ração feita com padrões sanitários e humanitários mais elevados. Cachorro também é gente… como diria o ex-ministro Rogério Magri. 

Otimista, Casara estranha a facilidade com que o Estado Pós Democrático foi implantado no Brasil. A única coisa que me causa estranhamento é o fato do Estado de Direito ter sido considerado um projeto político viável. Último país a abolir a escravidão o Brasil se torna o primeiro a considerá-la oficialmente tolerável. Sentados no Cais do Valongo, esperamos… somos especialistas em esperar um futuro que naufragou no passado porque ninguém é capaz de agir de maneira desesperada.

Fábio de Oliveira Ribeiro

1 Comentário

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  1. Caro Fábio, parabéns por mais

    Caro Fábio, parabéns por mais esta reflexão sobre o Estado pós-democrático, ou mais apropriadamente, Estado pré-totaltário. 

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