Um guia para eliminar a homofobia usando filosofia e biologia como armas

Cintia Alves
Cintia Alves é graduada em jornalismo (2012) e pós-graduada em Gestão de Mídias Digitais (2018). Certificada em treinamento executivo para jornalistas (2023) pela Craig Newmark Graduate School of Journalism, da CUNY (The City University of New York). É editora e atua no Jornal GGN desde 2014.
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Ignorância desvelada

Do Obvius

A homossexualidade ainda gera um gradiente de posicionamentos contrários a si, desde a renitente denegação a direitos civis, até a compactuação com medidas autoritárias e amplamente genocidas. Estes posicionamentos variam entre os diversos espectros sociais, mas geralmente estão apoiados em uma premissa biológica: descontinuação específica – impossibilidade de reprodução. Este raciocínio, entretanto, apresenta três falhas principais, uma biológica e duas filosóficas; destas, uma é analítica – referente à natureza, origem, do pensamento – e outra é sintética – referente ao artifício, finalidade.

A exemplo do observado em eventos como o apoio numeroso ao suposto agente do Estado Islâmico no recente incidente Pulse, em Orlando, muitos ainda consideram ilegítima a união entre pessoas do mesmo sexo por uma lógica semelhante àquela adotada por Immanuel Kant em seu Imperativo Categórico. Este conceito obedece a três prerrogativas, entre elas, a Lei Universal – possibilidade de aplicação da ação por qualquer indivíduo em situação idêntica. Ou seja, se todos adotassem a postura homoafetiva, seria impossível a perpetuação da espécie humana.

No entanto, a ética kantiana prevê outras duas diretrizes para a orientação da ação, não apenas a universalidade. Uma delas é a visão de humanidade enquanto fim em si mesma; em outras palavras, segundo a mesma linha de pensamento erroneamente utilizada para propagar a homofobia, o homem não é um instrumento para a perpetuação da espécie, mas, tão somente, satisfaz sua felicidade – desde que esta não interfira destrutivamente na liberdade alheia. É interessante pontuar que, para o mesmo autor, a finalidade da filosofia é a felicidade.

A propósito, falando em liberdade, ainda segundo Kant, ela seria proporcionada pela terceira diretriz das ações: a Autonomia. Autonomia, junção de auto-, “de si mesmo” e nomos, “lei”. Nesta visão, semelhante à de Aristóteles, uma pessoa só pode ser livre se não se render às suas pulsões, paixões, instintos, ódios, organizando códigos de conduta racionais para si. Portanto, a ação deve, também, ser fruto de uma racionalização originada pelo próprio ser, ou, o que é a mesma coisa, AUTOdeterminada. Para não entrar em contradição, esse argumento requer que o usuário respeite a liberdade do indivíduo em definir os gostos pessoais.

Após o estudo dessa inconsistência analítica – das premissas –, segue-se o estudo da inconsistência sintética – das conclusões. Conforme previamente apontado, não há obrigação de perpetuação da espécie humana. O diferencial entre ela e as demais é justamente o uso da razão, a ferramenta que a elevou ao topo da cadeia alimentar, garantiu seu domínio sobre o planeta, sua segurança, seu conforto. Esta é a ferramenta que possibilita a superação das imposições naturais, dentre as quais há, precisamente, o instinto de perpetuação. Esta superação implica em dois aspectos motivadores da extinção humana.

Primeiramente, há o aspecto teleológico – referente à finalidade –, visto que, mesmo que ocorra a sobreposição do desenvolvimento humano à eventual aniquilação do Sistema Solar, o Universo está invariavelmente fadado ao fim. Desse modo, qual a vantagem da reprodução indefinida do material genético? Muito melhor é buscar realização individual e social no presente.

Secundariamente, nota-se, através dos estudos dinâmicos, presentes nas ciências ecológicas, que todas as populações globais estabelecem equilíbrio com o meio em que estão inseridas.

Por processos naturais, o potencial biótico – capacidade de reprodução da espécie em condições ambientais ótimas – é inexoravelmente confrontado com fatores limitantes, denominados resistência ambiental, constituídos por processos ativos – como a ação de predadores – e passivos – como a escassez de recursos essenciais à manutenção da população. A população humana, contudo, dados os avanços tecnológicos, capacitou-se a suplantar os obstáculos da natureza, crescendo vertiginosamente em quesito quantitativo. Isto, aparentemente, denota um evento positivo, todavia, implica na exaustão dos recursos naturais.

Como brilhantemente afirmado pela personagem (Agente) Smith, na produção cinematográfica de ficção científica Matrix, de 1999, dirigido pelas irmãs Wachowski: “a espécie humana é um vírus.” No contexto da fala, a metáfora foi estabelecida de maneira pobre ao ignorar a orientação inerentemente passiva da dinâmica de populações, porém possui amplo potencial de factibilidade e concretização. Seres humanos se reproduzem e consomem os produtos do meio em que estão situados até o exaurir plenamente, posteriormente expandindo sua área de atuação para melhor comportar o contingente populacional, perpetuando este comportamento vicioso, caracterizando um evento cíclico progressivo. Observada a finitude dos recursos naturais, é evidente que esta conduta constitui caráter suicida, comprometendo o suporte da vida humana: o planeta Terra. Outro organismo cujo desenvolvimento segue o padrão desenfreadamente expansivo, enquanto compromete a integridade de seu suporte, possivelmente desencadeando a morte deste, é precisamente o vírus.

Por fim, há uma inconsistência biológica no argumento homofóbico, posto que mais de setenta espécies de animais promovem, de modo opcional ou compulsório, a reprodução assexuada, garantindo, simultaneamente, variabilidade genética, como é o caso de dragões de Komodo, tubarões martelo e lagartos da família Teiidae. Este último grupo consiste de fêmeas pertencentes aos gêneros Aspidoscelis e Cnemidophorus, após um declínio quase absoluto no número de machos. Nesse cenário, as fêmeas desenvolveram a habilidade de se reproduzir sem efetuar a cópula. Depreende-se, portanto, que, em uma conjuntura de totalidade homossexual nos relacionamentos humanos, não seria inviável uma adaptação dos sistemas reprodutores. Não obstante, ausentes de reprodução assexuada ou não, há evidência de mil e quinhentas espécies animais que apresentam, desenvolvem e estabelecem relações sexuais, afetivas ou parentais de orientação homo ou bissexual, um terço das quais são solida e consistentemente documentadas.

Dessa maneira, ao olhar em retrospectiva, conclui-se que a existência da humanidade, criada à imagem e perfeição de Deus, não é nem tão relevante, nem tão benéfica quanto se esperaria. Não somos o centro da galáxia, muito menos do universo, e nem ao menos do Sistema Solar; não teremos tempo de explorar nenhum dos ambientes citados completamente; não temos uma função prática predefinida, como nossos coabitantes terráqueos possuem; e, como se não bastasse, boa parcela de nós não consegue tolerar as diferenças entre os indivíduos.

Enfrentamos transtornos, empecilhos, barreiras, contratempos, resistência, caímos e nos levantamos, só para podermos tropeçar novamente, enquanto vagamos sem objetivo, rumando à aniquilação de nossa própria espécie e corroborando com a extinção de outras tantas. É um cenário, certamente, bem fúnebre.

Mas, nem tudo é tão lúgubre. De acordo com o Princípio Cartesiano –“penso, logo existo”, do célebre pensador iluminista René Descartes –, há três certezas na vida, uma delas é a morte e outra são os impostos, porém, há também certeza da própria vida. Existimos, aqui e agora, e, querendo ou não, ficaremos por algum tempo, então o melhor é sentar, relaxar e aproveitar a viagem, tendo como finalidade última a felicidade. Gandhi disse: “viva simplesmente para que os outros possam simplesmente viver.” Parece um conselho útil em uma época de muitas incertezas e pouca tolerância.

Cintia Alves

Cintia Alves é graduada em jornalismo (2012) e pós-graduada em Gestão de Mídias Digitais (2018). Certificada em treinamento executivo para jornalistas (2023) pela Craig Newmark Graduate School of Journalism, da CUNY (The City University of New York). É editora e atua no Jornal GGN desde 2014.

2 Comentários

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  1. Homofobia

    Sensacional a forma com a qual o texto escrito interligando setores diferentes da compreensão humana e conseguir concluir de forma tão fácil, mas bem fundamentada a questão do “Para que viemos?”. Acho que deveríamos estudar mais, como Aristóteles, sobre a teleologia e a finalidade das coisas. Embora nesse ambiente a qual vivemos atualmente e sua conjuntura seja difícil puxar a atenção da população para que possamos refletir sobre isso. 

    O episódio de Orlando é, certamente, um dos mais tristes desse ano e mais uma vez comprova a chama homofobia que ainda é vista como algo inexistente perante aqueles que a fundamentam! É preciso que haja diálogo sobre isso com a população, para que esse ódio que está intrinseco em váriados veículos de comunicação e e instituições como Igreja e escola que moldam o indíviduo. 

    É preciso que voltemos também nosso olhar para a vida e pensar o que estamos fazendo com ela se realmente estamos vivendo ou se não somos simplesmente a reprodução mais falha de um indivíduo que poderíamos chegar a ser se não fossemos tão mesquinhos e tão covardes em nos criticar! 

    Belíssimo texto, mais uma vez! *-* 

  2. É bom ver que especialista,

    É bom ver que especialista, doutores, professores, enfim acadêmicos das mais diversas áreas começam a opinar nos meios de comunicação sobre tudo que está acontecendo atualmente. Mesmo que a gente não entenda muito bem a linguagem sofisticada às vezes utilizada, ao final dos textos a mensagem termina por ser captada e sente-se alívio em saber que muita gente pensa como a gente e que há reação ao avanço do mal. 

    Há pouco troquei o canal da TV e vi o final de um documentáro sobre o nazismo. Mostrava as imagens de um discurso do ministro da saúde de Hitler irritado com o tratamento dado às pessoas deficientes físicas ou doentes mentais. Dizia ele que enquanto alemães fortes, saudáveis, jovens, moravam em lugares insalubres, em casas humildes, aqueles doentes recebiam do estado tratamento de luxo, em instituições que pareciam palácios – aparecem então imagens de jovens, velhinhos e crianças com algum tipo de deficiência sendo bem tratadas em ambiente limpo e decente na Alemanha.  Dizia ele que até os animais faziam sua seleção, livrando-se dos mais fracos e doentes e que com os humanos germânicos não poderia ser diferente. E daí começou o extermínio dos fracos e deficientes – inclusive crianças.

    É inacreditável a fala daquele homem.  A naturalidade com que um monstro faz aquele discurso é simplesmente assustadora – um pesadelo, quando sabemos que ele foi plenamente ouvido e suas vontades postas em prática na época. Um grande horror começou com episódios assim.

    Por isso todos nós temos a obrigação de mostrar algum tipo de reação contra a brutalidade e as injustiças. Geralmente as bestas-feras dão sinal do que pretendem fazer. As pessoas precisam ficar alertas. Precisamos dar ouvidos aos nossos acadêmicos, cientistas, professores. Precisamos valorizar o ensino da história  para não cairmos enquanto sociedade nas aberrações e monstruosidades que vez por outra rondam as nações, como já nos aconteceu também.

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