União homoafetiva: o discurso vazio e a capa da invisibilidade, por Marília Bassetti

 

Artigo do Brasil Debate

Por Marília Bassetti*

Maria Berenice Dias, célebre defensora dos direitos da população LGBT, responsável pela criação da expressão “união homoafetiva” e presidenta da Comissão da Diversidade Sexual da OAB, aponta para diversos avanços significativos abraçados por um judiciário à frente de seu tempo.

Para a advogada, “ausência de lei não significa ausência de direito” e, diante do dever de julgar, o juiz precisaria encontrar respostas no próprio sistema jurídico, obedecendo aos parâmetros constitucionais que veda qualquer discriminação.

Ainda que soe como novidade para os desinformados, a Justiça passou a reconhecer as uniões homoafetivas como entidade familiar há mais de uma década e, assim, alguns direitos passaram a ser deferidos em sede administrativa, tais como a concessão pelo INSS de pensão por morte e auxílio reclusão, o pagamento do seguro DPVAT e a expedição de visto de permanência para parceiro estrangeiro, assim como a inclusão do companheiro como dependente do imposto de renda e a soma do rendimento do casal para a concessão de financiamento imobiliário, segundo Um Estatuto para a diversidade sexual

Há, em resumo, o reconhecimento de aspectos majoritariamente patrimoniais, logrando-se os direitos previdenciários.

Em 5 de maio de 2011, o Supremo Tribunal Federal, por unanimidade, reconheceu e qualificou a união estável homoafetiva como entidade familiar.

afeto, como valor jurídico impregnado de natureza constitucional, passou a dar fundamento ao conceito de família, invocando alguns princípios essenciais – e muito esquecidos – como da dignidade da pessoa humana, da liberdade, da autodeterminação, da igualdade, da intimidade, da busca da felicidade, da não discriminação e do pluralismo.

Daí, diversos juízes e tribunais passaram a considerar a conversão das uniões estáveis homoafetivas em casamento.

Outro avanço ocorreu alguns meses depois: a insegurança e a morosidade da via judicial foram substituídos pela ação do Superior Tribunal de Justiça que, em 25 de outubro de 2011, admitiu a habilitação do casamento de forma direta perante o Registro Civil, o que significa que não seria mais necessário formalizar a união estável para então transformá-la em casamento.

A priori, os bem-casados já poderiam ser encomendadosNo entanto, sob o viés interpretativo diferenciado da lei de Organização Judiciária de cada Unidade da Federação (ainda que o impedimento de tal conversão contrarie a Corte Suprema e descumpra a recomendação constitucional), o plano das ideias se distanciava da realidade, tornando diversas uniões homoafetivas invisíveis para alguns tribunais de Justiça.

A unificação do entendimento sobre a possibilidade do casamento entre pessoas do mesmo sexo, seja pela via direta, seja pela conversão da união estável, sob âmbito nacional, só ocorreu a partir da Resolução 175 do Conselho Nacional de Justiça, de 14 de maio de 2013.

O CNJ uniformizou os procedimentos, proibindo as autoridades competentes de se recusarem a habilitar, celebrar casamento civil ou de converter união estável em casamento homoafetivo.

Em caso de descumprimento da Resolução do CNJ, o juiz corregedor competente determinará o cumprimento da medida e poderá ser aberto processo administrativo contra a autoridade que se negar a habilitar o casamento.

Portanto, o casamento e a união estável entre pessoas do mesmo sexo já são possíveis no Brasil. Não reconhecer esse fato é marginalizar milhares de uniões homoafetivas já existentes e desconsiderar a trajetória destemida do judiciário, frente ao legislador omisso.

Então, por que continuar reivindicando “os mesmos direitos com os mesmos nomes”? Será que os deputados federais Jean Wyllys (PSOL-RJ) e Érika Kokay (PT-DF) não encontraram nada melhor para fazer?

Tais deputados são responsáveis pelo projeto de Lei de alteração do Código Civil (PL 5120/2013), especificamente a Lei 10.406, de 10 de janeiro de 2002, para reconhecer o casamento civil e a união estável entre pessoas do mesmo sexo.

Infelizmente, é preciso reafirmar, em meio a tamanha desinformação propagada recentemente, que não se trata de qualquer mudança em termos do casamento religioso, para o qual os efeitos jurídicos são reconhecidos no artigo 226 § 2 da Constituição. Lembrete para pregar na geladeira: o casamento civil é uma instituição laica.

“A luta pelo casamento, portanto, não aponta tão somente à conquista desse direito: significa uma luta pelo reconhecimento social e político da dignidade da condição humana das pessoas homossexuais. É por isso que se trata, também, de uma luta cultural e simbólica” (PL 5120/2013).

Por falar na relação incestuosa entre religião e política, em seu programa de governo, Marina Silva defendia “apoiar propostas em defesa do casamento civil igualitário, com vistas à aprovação dos projetos de lei e da emenda constitucional em tramitação, que garantem o direito ao casamento igualitário na Constituição e no Código Civil”.

A candidata do PSB pronunciava-se atenta à fragilidade que envolve o direito à união estável e ao casamento homoafetivo conquistados pelas determinações do judiciário. Essas e diversas outras decisões não possuem o mesmo peso de uma lei, assim sendo, diante de uma lei mais conservadora, tais determinações evaporariam.

A pressão de sua base de apoio fundamentalista fez seu discurso mudar em menos de 24 horas para algo bem mais simples e inacreditavelmente sem sentido algum – “garantir os direitos oriundos da união civil entre pessoas do mesmo sexo”.

Ou seja, sob um olhar ingênuo, Marina Silva demonstra total desconhecimento sobre o assunto. Sob um olhar atento, o cinismo vem à superfície. O uso da expressão “união civil” quando essa nem ao menos existe na legislação brasileira, não apenas confunde, mas desinforma e aliena. Marina Silva justificou sua decisão de voltar atrás sobre o casamento homoafetivo com um desavergonhado “erro de editoração”.

É passada a hora de adequar as leis brasileiras à realidade social do País. Mas, para cobrar um legislador ativo, é preciso ampliar os termos da discussão por meio de um discurso informativo e não desnorteador.

Tratar deste assunto com o oportunismo eleitoreiro dos últimos dias só reforça o retrocesso ao qual as uniões homoafetivas estão fadadas – uma vez passada a eleição, voltarão a vestir a capa da invisibilidade.

Crédito da foto: EBC

* Marília Bassetti é doutorando em economia e pesquisadora do Neit/IE-Unicamp

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Redação

15 Comentários

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  1. Sinceramente, isso não é
    Sinceramente, isso não é assunto para eleição.

    Trazer estes assuntos a baila em.epoca eleitoral desperta o que há de pior . em nossa sociedade.

    Se.fossem espertos, ficariam quietinhos.
    Mas…ou não são espertos ou não tem interesse nas.suas bandeiras.
    Porque o que este pessoal a favor atrapalha não está no gibi.

    1. Até porque o problema não é

      Até porque o problema não é no âmbito político, mas religioso. Ter pensão do INSS é fácil, o problema é obrigar toda igreja aceitar fazer casamento homoafetivo

  2. Eu já tinha dito há muito tempo aqui neste blog

    O casamento entre pessoas do mesmo sexo já é uma realidade amparada pelo ordenamento jurídico brasileiro. O STF apenas consagrou isso. Não há, a rigor, depois da decisão do STF, qualquer necessidade de alterar o Código Civil, a não ser que se queira explicitar algo que já é uma realidade do jeito em que o texto do Código Civil se encontra hoje (art. 1726, basicamente, pois autoriza que a união estável se converta em casamento e isso vale também para a união homoafetiva, é óbvio).

    Portanto, toda aquela discussão levantada pelo Jean Wyllys e reverberada pela campanha de Dilma é um completo engodo. Inclusive Marina está errada quando diferencia o direito à união estável homoafetiva do casamento, o que faz inclusive citando a decisão do STF. Uma coisa implica a outra, necessariamente.

    O que o post diz aí eu já tinha dito aqui há muito tempo, com a diferença de que não há “fragilidade” nenhuma na atual situação. Tanto não há que homossexuais hoje se casam livremente entre si em vários estados do país.

    Esse texto também é oportunista politicamente, pois vende a ideia de que a posição de Marina exploraria uma suposta “fragilidade” derivada da inexistência de previsão expressa em lei acerca do casamento homoafetivo, o que é uma ideia contraditória com muito do que foi dito no texto. A se valer essa fragilidade, jamais o STF teria reconhecido a validade da união estável homoafetiva. O que o STF fez foi, por via oblíqua, legalizar o casamento homoafetivo.

    Na mesma linha, o aborto. Particularmente, eu entendo que o aborto, por mera iniciativa individual, está liberado no Brasil a partir da decisão do STF sobre o aborto do anencéfalo, o maior “cavalo de tróia” implementado pelo Poder Judiciário neste país em todos os tempos.

    Qualquer mulher que hoje queira abortar, no início da gestação, pode requerer ao Poder Judiciário uma ordem judicial que autorize o procedimento com base nas premissas daquela decisão do STF sobre o anencéfalo, já que a inexistência do sistema nervoso central faz com que não exista vida a ser protegida e, portanto, não há violação ao direito à vida.

    O silêncio sobre esse efeito daquela decisão na imprensa e junto à opinião pública apenas mostra o quanto o tema é um tabu na sociedade brasileira. A premissa é ampla, sem qualquer serventia falar em “vida em potencial”. Ou tem vida a ser protegida ou não tem. É uma questão relativa ao conceito de vida que foi assumido na decisão.

    1. Mas por que qualificar como

      Mas por que qualificar como casamento apenas pessoas do mesmo sexo, abre se a possibilidade de varias tipos de “uniões estaveis” como inter espécies, varias composições de genero e numero, nada impede de 5 homens e 2 mulheres contituirem uma familia e ter os mesmos direitos civis de um casamento.

      1. No Brasil, casamento é um ato

        No Brasil, casamento é um ato consensual reconhecido apenas quando entre 2 pessoas

        Se 3 pessoas querem se unir, é direito delas ao menos tentar argumentar junto à autoridade competente, e você ou eu não temos nada a ver com isso. Se o argumento delas for válido, vai te incomodar por quê? Te afetará em quê?

  3. Então, o texto é muito

    Então, o texto é muito bom.

    Indica avanços – lentos e invisíveis – mas que são conquistas civilizatórias.

    Agora, o que o texto indica, além de aproveitar e dar uma chapuletada na Fada, é que estes direitos são invisiveis. Apesar da premissa “ausência de lei não significa ausência de direito”, a ausência do Direito em determinados códigos importantes, como o que se propõe o deputado do PSOL, é um impasse: O Direito Evolui, mas o Estado não acompanhou esses avanços. Isto é, ainda existe desigualdade. Portanto, sim é um tema para eleição. Pena que tudo reduzido a simplificações.

     

    Abraços

    Marcio 

  4. Quando me deparo com tanta

    Quando me deparo com tanta violência contra pessoas por serem “diferentes” (racismo, sexismo, preconceitos contra religiosos e ateus, pobres, favelados, nordestinos, bolivianos, haitianos, etc) sinto vergonha em fazer parte da raça humana. Quanto ainda temos que crescer? Quando iremos nos respeitar? O caso do garoto na reportagem abaixo é apenas um exemplo entre tantos. É preciso criminalizar a homofobia. Aplicar a Lei com rigor. E, não esqueçamos: lutar dia-após-dia em favor de todos aqueles que sofrem simplesmente por serem “diferentes”.

    http://igay.ig.com.br/2014-09-25/voce-quer-ser-mulher-entao-vai-apanhar-como-mulher-dizem-agressores-a-gabe.html

     

  5. Me engana

     Os evangélicos de bobo não tem nada.

    O que este pessoal ativistas dos direitos gays querem na realidade é ferrar os pastores e os padres que pregam contra os seus interesses.

    Se o estado e o direito são laicos como pode se pretender intrometer-se em assuntos religiosos?

     

    1. Casamento civil não é assunto

      Casamento civil não é assunto religioso. É um instrumento de um estado laico.

      Movimento LGBT não faz nenhuma demanda por casamento religioso, mesmo porque já há igrejas inclusivas que realizam casamento homoafetivo entre seus fiéis.

      1. direito adquirido

        Então eu sou analfabeto funcional.

        O texto todo deste tópico afirma exatamente que a legislação ja considera a união homossexual com plenos direitos civis, o autor do texto chegou a justificar a pósição do Willis, pelo menos tentou.

         

  6. Para os LGBTs, Marina inventa
    Para os LGBTs, Marina inventa a roda e fortalece o preconceito Por Janaína Oliveira, presidenta do Conselho Nacional de Combate a Discriminação e Promoção dos Direitos  O Brasil de 2014 é conhecido por ter um projeto de desenvolvimento que foi capaz de crescer e ao mesmo tempo distribuir renda. Uma convivência democrática civilizada, respeitadora das leis,  tolerante, deveriam ser a tônica destes tempos, pois o que está em curso melhora o consumo, melhora a renda, garante a sobrevivência das famílias, até aumenta lucros, a autoestima nacional, garante certos direitos a quem não possuía.A partir do governo Lula e com a construção do Programa Brasil Sem Homofobia, a temática passou a ser tratada por vários ministérios como: Cultura, Relações Exteriores, Direitos Humanos, Mulheres, Justiça, Saúde, Trabalho, etc. Durante o governo Lula, foi realizada a primeira Conferência Nacional LGBT, foi criada, em 2009, a coordenação de promoção dos direitos de LGBT e, em 2010, foi criado o Conselho Nacional de Combate à Discriminação LGBT. No governo Dilma as políticas para essa população tiveram continuidade, com a realização da segunda Conferência Nacional LGBT, a instituição da Política de Saúde Integral LGBT, o direito ao uso do nome social no Enem, a atualização da portaria que instituiu o processo transexualizador no SUS,a aprovação da resolução que define regras para o acolhimento de LGBT no sistema prisional  e a aprovação da primeira resolução sobre LGBT no âmbito do Conselho de Direitos Humanos da ONU com a atuação protagonista do Brasil.Nos governos Lula e Dilma os direitos humanos da população tomaram uma nova dimensão, deixaram de ser a pauta de um único ministério para ser uma pauta transversal do governo.Agora, Dilma se comprometeu publicamente com a criminalização da homofobia. Aí sim, a família brasileira estará protegida, pois será assegurado emprego, salário mínimo valorizado, habitação, acesso ao ensino técnico e superior, seja seu núcleo composto por heteros ou homossexuais.Já Marina Silva, em seu programa de governo, que ela mal sabe se fica ou sai, propostas como “garantir e ampliar a oferta de tratamentos e serviços de saúde para que atendam as necessidades especiais da população LGBT no SUS”, e “considerar as proposições do Plano Nacional de Promoção da Cidadania e Direitos Humanos LGBT na elaboração de políticas públicas específicas para populações LGBT”, não é nenhuma novidade e já está em andamento pelos governos Lula e Dilma.Agora, ao mudar seu programa  sob pressão de reles quatro tweets do pastor Malafaia, ela fez coro às lideranças religiosas, políticas e figuras públicas do jornalismo estimulam  o preconceito, que só fazem aumentar os casos de violência homofóbica.Um dos pontos altos desse circo foi o coordenador da bancada ruralista no Congresso Nacional, Luiz Carlos Heinze (PP-RS), aparecer em um vídeo publicado na internet utilizando como argumento de ataque ao ministro Gilberto Carvalho (Secretaria-Geral da Presidência) ele aninhar “negros” em seu gabinete, depois de já ser alvo de pedido de investigação por quebra de decoro parlamentar por outro vídeo, no qual diz que no governo da presidenta Dilma Rousseff “estão aninhados quilombolas, índios, gays, lésbicas, tudo o que não presta”. Além disso,  em março, houve uma reedição da infame Marcha da Família, com Deus e pela Liberdade  para “comemorar” os 50 anos da “revolução” e pedir intervenção dos militares no governo do país, um novo golpe de estado. A plataforma de “reivindicações” do “movimento” trazia como seu segundo ponto mais importante a denúncia de que o governo pretende “a instauração do casamento civil gay através de uma simples resolução, à revelia da constituição federal”, buscando desmoralizar uma luta de décadas por direitos civis e emparedar a presidenta DilmaAo se vergar a Malafaia, ela assina embaixo destes absurdos.Quem  defende o criacionismo, o fim da indústria, a entrega do pré-sal aos americanos e europeus, a flexibilização da CLT, naturalmente, é contra os direitos LGBTs. É favor de um país vendido aos mercados e com uma população conservadora. Por isso, a população LGBT do Brasil não pode ter dúvidas sobre em quem votar dia 05 de outubro. Um Brasil democrático, com cidadania plena e uma vida digna para todos, não importando credo, cor, raça, classe social ou orientação sexual, como preza Constituição, exige impor uma derrota acachapante sobre Marina Silva.

     

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