30 anos do primeiro Rock in Rio e as memórias falsas do cérebro, por Flávia Oliveira

Enviado por implacável

Do O Globo

O cérebro, esse gaiato

Flávia Oliveira

Vexame maior para a geração que chegou à adolescência nos anos 1980, não fui ao primeiro Rock in Rio. Mas me lembro bem
 
Eu não fui à primeira edição do Rock in Rio. Sim, é verdade. Vexame supremo para a geração de cariocas que adentraram a juventude nos anos 1980, perdi o “Rock in Rio, a origem”. Não assisti ao longa que deu origem à série. Tinha 15 anos e nenhum dinheiro naquele início de 1985. Fiquei fora do festival dos festivais, versão brasileira de Woodstock, que ora completa 30 anos. A confissão, ainda que tardia, traz alívio. Já não é preciso desviar o olhar, sorrir amarelo movendo afirmativamente a cabeça, mentir.
 
Mas como são misteriosos os caminhos, não da amizade, como eternizou em verso Vinícius de Moraes, mas do cérebro, esse gaiato que nos acompanha. De súbito, vem a lembrança. Fui, sim. Engrossei o 1,38 milhão de espectadores dos dez dias de festival. Juro que um tênis fossilizado com meu DNA haverá de ser resgatado de escavações arqueológicas no futuro distante da Barra da Tijuca. Afundei no lamaçal até as canelas. Beijei na boca de um completo desconhecido, cabeludo e encharcado pelas chuvas torrenciais daquele janeiro. Comi um dos 58 mil hambúrgueres vendidos num só dia, façanha registrada no Guinness Book. Sei dos bilheteiros que, iniciado o primeiro show, abandonavam as roletas e se jogavam no rock’n roll.

 
Perdi a voz de tanto berrar “Love of my life” a um Freddie Mercury descamisado, legging branca e faixa vermelha a abraçar-lhe a cintura. Ajudei a ressuscitar a carreira de James Taylor, fazendo coro de “You’ve got a friend”. Celebrei a Nova República, cantando com Cazuza e Barão Vermelho “Pro dia nascer feliz”, pela eleição (indireta) do presidente Tancredo Neves, o primeiro civil após mais de duas décadas de ditadura, sem saber que ele jamais adentraria o Palácio do Planalto.
 
Eu não estava lá. Mas me lembro. De tanto ouvir histórias, ouvir gravações, assistir aos vídeos, sei de cor o Rock in Rio. Obra do cérebro, explica o professor Ivan Izquierdo, diretor do Centro de Memória da PUC-RS. O fenômeno, completa, tem até nome: memória falsa. Não tem diagnóstico, porque não está relacionado à patologia. É situação comum, que avança junto com a com a idade. O neurocientista, nascido na Argentina e radicado no Brasil há quase meio século, é dos mais importantes cientistas do país. “Todos estamos cheios de memórias fictícias; não é nenhum sintoma de nada. É um fenômeno muito humano. Ou talvez muito animal”, comenta.
 
A sensação de ter vivido, encarnado a experiência alheia tem a ver com os mecanismos de fixação das memórias. Elas se gravam, ao mesmo tempo, no hipocampo (estrutura dentro do lobo temporal) e em várias regiões do córtex cerebral. A cópia guardada no hipocampo, ensina o mestre, é a principal, a que reconhecemos como nossa. Os demais registros estão mais sujeitos a mudanças. Podem, por isso, ser alterados e misturados a novas experiências, com o passar dos anos. “São essas memórias que, um dia, passam a ser lembradas como próprias, ainda que, na verdade, não o sejam. Mas a gente as confunde com a realidade. E quanto mais vivemos, mais memórias falsas acumulamos”, sentencia Izquierdo.
 
Estão explicadas as lembranças tão reais do primeiro Rock in Rio, ao qual não compareci, mas registrei. E resolvidos tantos outros mistérios da vida brasileira. É provável que resida aí também o milagre do Maracanazo. Só o maroto cérebro seria capaz de transformar em milhões os 200 mil protagonistas do silêncio absoluto após o gol de Ghiggia, que deu ao Uruguai a Copa de 1950. Ainda hoje, eu fecho os olhos e ouço.
Redação

5 Comentários

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  1. Eu não fui por que era menor

    Eu não fui por que era menor e trabalhava de segunda a sexta como office-boy, e a maioria dos shows eram durante a semana, mas teve amigo que foi nos finais de semana e não parava de falar sobre isso, foi um dos melhores festivais de rock, muitos medalhões, mesmo os artistas menos conhecidos eram muito bons, como o b52´s, deveriam lançar um box com os shows como fizeram como o Live Aid e o Live 8.

    1. Talvez…

      No maracanazzo foram 200 mil transformados em milhões. No caso do guri do leblão é inverso: 200 milhões se transformaram em 200 mil.

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