A construção da identidade do gaúcho

Por Sergiomedeirosr

Comentário ao post “Os motivos da Revolução Farroupilha

Eis o Homem..

                 Brotei do ventre da Pampa/ Que é Pátria na minha Terra… (Marco Aurélio Campos)                      

Enquanto na Europa… Maquiavel construía seu Príncipe para tentar unir a Itália….. aqui, nesta terra rude e bárbara, o pampa, um punhado de homens se uniu para construir uma identidade.

E que estranho é isso, as mesmas características desejadas para este príncipe (condottiere) que iria unir os povos habitantes da península itálica, liberdade, fortaleza, honra, respeito, força, palavra, dignidade,ousadia…eram, em certa medida, as mesmas que, aos poucos, foram sendo apregoadas como componentes dos habitantes da pampa.  Homens, pois, de uma terra sem príncipes, mas forjados sob princípios,  homens com um sentido de liberdade exacerbado, com uma generosidade ímpar, hospitaleiros para com os visitantes, bravos em defesa de sua terra frente aos invasores, prontos a morrer pelo seu sentido de justiça.

E vieram os jesuítas e se depararam com este povo simples..e o impregnaram de todo sentido de humanidade,  liberdade e   justiça que puderam.

E, a cada passo idealizavam e forjavam este homem, e, a cada novo aprendizado, este homem se reinventava, cada vez mais humano…

A isso, a esta substancia pura e selvagem, destas almas livres e generosas, a cada dia se lhes agregava mais e mais virtudes…

Com o tempo, consolidou-se junto aos habitantes deste remoto lugar da América do Sul, que aqui, neste território habitava um povo diferenciado, com princípios, com tradições próprias, com um sentido de irmandade baseado no companheirismo, na solidariedade, no bem comum, na hombridade, entendida como honra à palavra dada e à defesa comum…

Pois bem.

Recentemente, um escritor, de origem gaúcha,  em busca de subsídios para seu livro, escolheu se debruçar sobre a história dos primeiros gaúchos,  e, ao procurar em figuras históricas, as características que diferenciaram este povo, encontrou pessoas simples, sem a realização de grandes feitos heróicos e, pior, muitas vezes, culpados de vilanias e pequenos pecados.

Para sua sorte, não resistiu em espalhar sua descoberta.

Logo, em sua volta criou-se instantânea polêmica, uns a defenderem as pessoas referidas e outros a concordarem com as novas revelações.

Por algum tempo esqueceram-se que, as pessoas, feitas heróis de um povo, a partir de então, desvestem-se de seus reais atributos, se tornam mitos.

Acreditava estar reconstruindo a verdade, mas, imenso erro,  sua tentativa de busca de restabelecer a verdade, estava fadada ao fracasso.

É que, por um equívoco, certamente devido à soberba, buscava, em apenas um homem, o que é atributo de um povo. 

A pessoa sobre quem ele falava, um homem, vislumbrado em carne e osso e gestos, em sua singularidade, nunca poderia ter sido a gênese da alma, construção coletiva.

E, em sua ânsia, em sua tentativa de impor “a realidade”, não compreendia que sua vitória, a desconstrução da lenda, seria não a destruição de uma história inventada, substituída pela verdadeira, mas a retirada do imaginário de um povo, de uma figura altiva, livre, generosa e solidária, como sendo a origem do gaúcho.

Quis a história que tais tentativas não tivessem êxito e…

Ainda hoje,….a cada dia nascem gaúchos…que sabem que em sua origem há liberdade, solidariedade, força, justiça… e que lhes cabe … a cada um e a todos… manter viva essa idéia generosa…..saída da alma de todo um povo e que forjou a figura do “gaúcho”..  

 

Não poderia deixar de transcrever a poesia Eis o Homem de Marco Aurélio Campos, que expõe de uma forma excepcional a alma gaúcha… muitas vezes esquecida em sua própria terra…

 

Eis o Homem – Marco Aurélio Campos (Poema)

 

Brotei do ventre da Pampa, 
que é Pátria na minha Terra. 
Sou resumo de uma guerra 
que ainda tem importância. 

Diante de tal circunstância, 
segui os clarins farroupilhas
e, devorando coxilhas, 
me transformei em distância. 
Sou tipo que, numa estrada,
só existe quando está só.
Sou muito de barro e pó.
Sou tapera, fui morada.

Sou velha cruz falquejada
num cerne de coronilha.
Sou raiz, sol farroupilha,
renascendo estas manhãs.
Sou o grito dos tahãs
voejando sobre a coxilha.

Caminho como quem anda
na direção de si mesmo.
E, de tanto andar a esmo,
fui de uma a outra banda;
Se a inspiração me comanda,
da trilha logo me afasto
e até sementes de pasto
replanto pelas vermelhas
estradas velhas, parelhas,
ao repisar no meu rastro.

Sou a alma longa e tão cheia 
como os caminhos que voltam
quando as saudade rebrotam
substituíndo os espinhos
que, à perda de alguns carinhos
antigos, velhos aprontes,
nasceram muitos, aos montes,
desta minha vida aragana,
nesta andança veterana
de ir destampando horizontes.

Eu sou a briga de touros
no gineceu do rodeio.
Impropério em tombo feio
quando um índio cai de estouro.
Sou o ruído que o couro faz
faz ao roçar no capim.
Sou tim-rrim-tim-tim 
da espora em aço templado.
Trago o silêncio, guardado,
do pago dentro de mim. 

Fazendo vez de oratório, 
sou cacimba destampada, 
de boca aberta, calada, 
como à espera do ofertório; 
como vigília em velório, 
nesse jeito que é tão seu: 
tem muito de terra… É céu 
que a gente sente ajoelhando 
e, de mãos postas, levantando
o pago inteiro para Deus. 

Sou o sono do cusco amigo
meio dentro do borralho.
Sou as vozes do trabalho,
no amor, na paz – sou perigo.
Sou lápide de jazigo
perdida nalgum potreiro.
Sou manha de caborteiro,
sou voz rouca de acordeona
cantando, triste e chorona,
um canto chão brasileiro.

Sou a graxa da picanha
na bexiga enfumaçada.
Sou sebo de rinhonada
me garantindo a façanha.
Sou vozerios de campanha
que nos lançantes se somem.
Sou boi-ta-tá, lobisomem.
Sou a santa ignorância.
Sou o índio sem infância
que, sem querer, ficou homem.

Sou o Sepé Tiarajú,
o Uruguai, rio-mar azul.
Sou o cruzeiro do sul,
luz e guia do índio cru.
Sou galpão, charla, e chirú
de magalhanicas viagens.
Andejei por mil paisagens,
sem jamais sofrer sogaço.
Cresci juntando pedaços
de brasileiras coragens.

Sou, enfim, o sabiá que canta,
alegre embora sozinho.
Sou gemido de moinho
num tom tristonho que encanta.
Sou o pó que se levanta,
Sou terra, sangue, sou verso.
sou maior que a história grega.
Eu sou Gaúcho, e me chega
p’rá ser feliz no universo.

Luis Nassif

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