Wilson Ferreira
Wilson Roberto Vieira Ferreira - Mestre em Comunição Contemporânea (Análises em Imagem e Som) pela Universidade Anhembi Morumbi.Doutorando em Meios e Processos Audiovisuais na ECA/USP. Jornalista e professor na Universidade Anhembi Morumbi nas áreas de Estudos da Semiótica e Comunicação Visual. Pesquisador e escritor, autor de verbetes no "Dicionário de Comunicação" pela editora Paulus, e dos livros "O Caos Semiótico" e "Cinegnose" pela Editora Livrus.
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A necessidade do sacrifício humano em “O Segredo da Cabana”

 

O que acontece quando o filme clássico “A Morte do Demônio” (Evil Dead) de 1981 se encontra com “Matrix” e “Show de Truman”? Temos o surpreendente filme “O Segredo da Cabana” (The Cabin in the Woods, 2011), um instigante jogo metalinguístico em múltiplos níveis que vai da sátira ao gênero “slasher movies” às origens míticas da necessidade de antigos arquétipos e mitos serem revividos e renovados em diversos formatos, da antiguidade à indústria de entretenimento contemporânea. Por que ritos antiquíssimos de sacrifícios humanos precisam ser repetidos a cada filme? Por que jovens que fazem sexo sempre morrem com requintes sadísticos em cada roteiro hollywoodiano? É o que pretende responder o diretor Drew Goddard em “O Segredo da Cabana”.

Quando Sam Reimi escreveu e dirigiu “A Morte do Demônio” (Evil Dead, 1981) certamente não imaginava que a situação de cinco jovens em uma remota cabana tomada por demônios em uma floresta se tornaria um plot prototípico de todos os chamados “slash” ou “exploited” movies – onde sempre um assassino surge do nada para atacar um grupo com requintes de tortura, sadismo e perversão sexual.

Mais do que isso, talvez não imaginasse que nesse meio tempo o mainstream hollywoodiano embarcaria em uma fase “metafísica” de auto-desconstrução como em “Show de Truman” ou de desconstrução gnóstica da própria realidade como em “Matrix” e “Vanilla Sky”. O resultado foi o surgimento de toda uma geração de roteiristas e diretores (Charlie Kaufman, Christopher Nolan, irmãos Wachowsky, Tarantino etc) com uma visão metalinguística, desconstrucionista ou de distanciamento irônico em relação aos gêneros, fórmulas ou clichês do cinema comercial.

Somente é possível compreender integralmente o filme “O Segredo da Cabana” (The Cabin in the Woods, 2011) colocando-o dentro desse contexto de produções cinematográficas cada vez mais auto-referenciais e que, por isso, permitem muitas vezes a possibilidade de expressar agudas visões críticas no meio do mainstream hollywoodiano, como no caso desse filme.

 

O diretor e roteirista Drew Goddard já havia demonstrado isso em “Cloverfield” (2008), um meta-filme que brincava com os limites entre documentário/ficção e todos os clichês de filmes de monstros como “Godzilla”. Aqui em “O Segredo da Cabana”, com a liberdade de dirigir e escrever, Goddard vai mais fundo ao partir de uma situação que certamente já vimos em algum lugar: cinco estudantes universitários embarcam em uma van para passar um final de semana que promete muito sexo, diversão e drogas em uma cabana em algum lugar remoto. A última parada é, naturalmente, um posto de gasolina abandonado onde um caipira decrépito e demente parece saber de tudo e ri do destino reservado para eles na cabana à frente.  Eles representam os personagens arquetípicos dos filmes do gênero: a garota devassa, a virginal, o garoto intelectualizado e casto, o rapaz atlético e popular e o maconheiro engraçado que serve para dar o alívio cômico às sequências de massacre.

Mas nas primeiras sequências percebemos que há algo de diferente nesse “slash movie”: nos créditos iniciais são mostrados desenhos que representam rituais de sacrifícios antigos, depois vemos dois técnicos de meia idade trocando banalidades no que parecer ser mais um dia de trabalho em uma espécie de laboratório científico para depois a tela ser tomada pelas letras em vermelho sangrento com o título do filme. 

Na próxima hora e meia acompanhamos um vertiginoso exercício de metalinguagem e desconstrução do gênero, muito mais radical do que as paródias e paráfrases de filmes como “Todo Mundo em Pânico” (Scary Movies) ou “Zumbilândia” (Zombieland, 2010): mais do que ironizar clichês, Goddard vai querer explicar o porquê de sempre o grupo querer se separar quando ficar junto é mais seguro para enfrentar os caipiras zumbis; ou porque sempre a garota virgem sobrevive no final e porque o casal que faz sexo sempre tem uma morte horrível.

A crítica afirma que o filme é “irregular”, porém essa troca de “tons” ou “tempos” no filme corresponde aos níveis sucessivos de metalinguagem que Goddard vai aprofundando, alterando o significado daqueles cinco jovens da cabana: primeiro nível: o porquê dos comportamentos clichês de cada um deles; segundo nível: o meta-psiquismo dos arquétipos a que cada um deles corresponde; e terceira e mais profundo nível: o porquê da necessidade atávica de cada um desses arquétipos serem reencenados ad infinitum pela espécie humana desde os tempos imemoriais até Hollywood.

Primeiro nível: “slasher movie” se encontra com “Matrix” e “Truman Show”

Pode parecer que estou revelando um segredo, mas na verdade a cabana onde toda a tragédia rolará não é uma cabana comum: é controlada por um laboratório subterrâneo repleto de cientistas que monitoram através de telas cada segundo de ação dos jovens que, na verdade, não passam de cobaias onde suas escolhas são induzidas por situações simuladas. Há possibilidade de o experimento ter a ver com segurança nacional já que também vemos vítimas em cenários semelhantes em outras partes do mundo.

Mas acredite: isso é apenas o começo! Tudo parece ser um mix do reality show do filme “Show de Truman” e a simulação tecnológica de “Matrix”. Todos os técnicos, cínicos e indiferentes, fazem apostas sobre quem vai morrer primeiro ou qual tipo de entidade maligna (zumbis, tritão, demônios etc.) será despertado para dizimar o grupo.

De forma instigante, “O Segredo da Cabana” faz uma metalinguagem das ações dos personagens que seguem as exigências do gênero (a “experiência” do laboratório subterrâneo) com a própria indústria do entretenimento que codifica o livre-arbítrio dos atores dentro dos roteiros e clichês comerciais. Na verdade, nesse nível a dupla de cientistas geeks (Richard Jenkis e Bradley Whitford) é uma sátira da própria condição de dupla de roteiristas do filme diante das pressões comerciais para que as exigências do gênero seja cumpridas.

Segundo Nível: o meta-psíquico

Aos poucos, o filme começa a procurar metalinguagens tão profundas quanto o laboratório dos cientistas demiurgos. A cada morte previsível dentro dos clichês, vemos o sangue da vítima escorrendo através de canaletas subterrâneas até preencher um diagrama do arquétipo correspondente: a do atleta popular, da garota devassa etc. É a galeria dos arquétipos (símbolos do inconsciente coletivo) por trás de cada clichê comercial que são como revividos por meio do sangue em um ritual antiquíssimo.

Aqui os roteiristas estão conscientes de que, na verdade, manipulam materiais psíquicos, formas-pensamento da humanidade por trás de cada personagem-clichê. Por algum motivo, que ainda não sabemos, esse ritual tem que ser repetido por todo lado, em todas as partes do mundo (a globalização da indústria do entretenimento). 

Inadvertidamente, os jovens despertam zumbis ao lerem frases em latim de um antigo diário no porão, como poderiam também ter optado por demônios, monstros, palhaços assassinos etc. No subterrâneo ainda mais profundo está confinada uma verdadeira galeria dos maiores pesadelos humanos, prontos para serem aleatoriamente despertados pelo experimento da cabana. Tudo vem de subterrâneos (porões, laboratórios, entidades malignas) como o “Estranho” (“uncanny”) que aflora repentinamente do inconsciente.

Freud sustenta que as pulsões inconscientes proveem da inesperada erupção de medos que foram por muito tempo reprimidos. O inconsciente é o retorno do reprimido, a perturbadora fusão entre o conhecido e o desconhecido. De um lado essa pulsão reprimida é monstruosa, chocante, motivo pelo qual foi há muito tempo escondido no inconsciente. Essa mesma energia inconsciente deve necessariamente retornar por ser a força essencial da motivação e organização psíquica.

Mas a repetição irrefletida dos filmes de terror é neurótica e psicótica pela necessidade do clichê. Não há reflexão sobre o porquê da repetição, mas apenas a repulsa e a atração pelo “Estranho”: sentimos a repulsa pela erupção do estranho, mas, ao mesmo tempo somos atraídos pela revelação através de imagem e movimento daquilo que vem de suas próprias profundezas.

 

 

Wilson Ferreira

Wilson Roberto Vieira Ferreira - Mestre em Comunição Contemporânea (Análises em Imagem e Som) pela Universidade Anhembi Morumbi.Doutorando em Meios e Processos Audiovisuais na ECA/USP. Jornalista e professor na Universidade Anhembi Morumbi nas áreas de Estudos da Semiótica e Comunicação Visual. Pesquisador e escritor, autor de verbetes no "Dicionário de Comunicação" pela editora Paulus, e dos livros "O Caos Semiótico" e "Cinegnose" pela Editora Livrus.

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