Wilson Ferreira
Wilson Roberto Vieira Ferreira - Mestre em Comunição Contemporânea (Análises em Imagem e Som) pela Universidade Anhembi Morumbi.Doutorando em Meios e Processos Audiovisuais na ECA/USP. Jornalista e professor na Universidade Anhembi Morumbi nas áreas de Estudos da Semiótica e Comunicação Visual. Pesquisador e escritor, autor de verbetes no "Dicionário de Comunicação" pela editora Paulus, e dos livros "O Caos Semiótico" e "Cinegnose" pela Editora Livrus.
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A “Paz Interior” do Kung Fu Panda

 

Fórmula do sucesso das animações atuais, Kung Fu Panda 2 explora simultaneamente temas infantis e adultos: para as crianças os arquétipos da separação e do abandono e, para adultos, o tema místico e religioso da “paz interior”, estranhamente associado ao ideário da autoajuda e da “Arte da Guerra” no melhor estilo do livro de Sun Tzu. Secretamente, a narrativa torna os dois temas complementares.


Fui com meus filhos em um shopping em São Paulo assistir à animação “Kung Fu Panda 2” dos estúdios da DreamWork. Não chega à excelência das animações da Pixar, mas também apresenta a grande virtude das animações atuais:  estórias que divertem e emocionam tanto as crianças quanto os pais. Talvez o principal fator da renovação das animações a partir do final dos anos 80 e, principalmente, a partir das animações digitais como “Toy Story”, seja a habilidade dos roteiristas explorarem simultaneamente arquétipos com forte poder de evocação para crianças e muita intertextualidade com referências ou alusões para adultos.


Assim como em “Madagascar” que fazia alusão à sequência final do clássico “Planeta dos Macacos” de 1968 (a sequência em que o leão Alex esmurra a areia da praia com raiva diante de uma estátua da liberdade de palha que virou cinzas), também em “Kung Fu Panda” há várias referências aos clichês dos filmes de Kung Fu dos anos 70. Uma estratégia de intertextualidade que faz a delícia de adultos ao reconhecerem em animações infantis elementos imagéticos da sua geração.


Já para as crianças é voltada uma forte exploração de arquétipos, principalmente aqueles que envolvem o drama da separação e abandono (como os arquétipos do Inocente, do Órfão etc.).


Perguntei para meus filhos e, mais tarde, para outras crianças: qual a parte da estória em que mais se emocionaram? Unânime, a sequência onde o protagonista Po (o Kung Fu Panda) relembra do momento em que sua mãe foi obrigada a abandoná-lo, ainda bebê, em uma caixa de rabanetes para salvá-lo da fúria dos soldados do príncipe pavão Lord Shen (ele queria matar todos os ursos pandas do reino para que não se confirmasse uma profecia de que um guerreiro preto e branco o derrotaria).


Ao contrário, para os adultos a sequência mais emocionante foi a da batalha final onde o herói Po  finalmente domina a técnica da “paz interior” e consegue desviar as balas dos canhões. A partir daí relembra o trauma da separação dos pais e chega à solução sobre a sua própria identidade: “a única coisa que importa é o que você escolheu ser agora”. Po faz um acerto de contas com o passado, alcança o equilíbrio e se torna um verdadeiro “dragão guerreiro”. Dessa forma, a moral da narrativa faz um estranho mix entre uma noção “desinteressada” ou “mística” como a da “paz interior” (na tradição esotérica e religiosa identificada com a iluminação espiritual) e o acerto de contas com o passado como uma noção associada ao ideário da autoajuda.



Vamos analisar essa dupla mensagem da animação “Kung Fu Panda 2”: os arquétipos da separação e abandono para as crianças e a noção de “paz interior” anexada ao ideário da autoajuda para adultos. Embora endereçada para públicos tão diferentes, essas duas mensagens são complementares em sua natureza arquetípica.


Separação e Abandono


A animação começa mostrando como o príncipe pavão Lorde Sheen ao ouvir a profecia de que seria derrotado por um ser preto e branco, manda matar todos os pandas. Seus pais, desapontados com o ato impensado, o expulsam do reino. Ele sai de lá jurando voltar para se vingar e dominar o país. Utilizando o avançado recurso dos chineses na exploração da pólvora para fazer os belos fogos de artifício, ele inventa a arma de fogo, mais especificamente, um enorme canhão, que coloca em risco a China e o kung fu. Cabe então a Po e seus companheiros derrotá-lo.


A tarefa não se mostra fácil, principalmente porque quando o Kung Fu Panda se confronta com Lorde Shen ele sofre um estranho “apagão” que está intimamente ligado ao seu passado de abandono e posterior adoção por Mr Ping.


Esses constantes blecautes e os flashbacks decorrentes (ele começa a se recordar vagamente de seus pais e das circunstâncias do seu abandono) o enfraquecem diante dos seus inimigos. Ele precisa saber, afinal, quem ele é para encontrar a “paz interior” e a força do dragão guerreiro.


Desde “Bambi” de 1942 de Walt Disney, personagens arquetípicos em torno do drama do abandono (o Inocente, o Órfão, o Aventureiro etc.) são recorrentemente explorados pelas animações de longa metragem voltadas para o público infantil. É a reencenação do drama arquetípico (presente em diversas narrativas míticas) da Plenitude-Queda-Sofrimento-Morte-Renascimento-Renovação.


No plano psíquico, essa narrativa mítica encontra as suas origens na própria experiência infantil da renúncia instintual pela qual passou ao abandonar a mãe na dissolução do drama edipiano. A pressão sociocultural para que a criança abandone a “sensação oceânica de prazer” no universo materno e ingresse no mundo simbólico do Pai (do trabalho, da Lei, da renúncia ao prazer) é dramatizado através de jogos e brincadeiras.


Freud no seu livro “Além do Princípio de Prazer” demonstra isso ao interpretar o jogo do “fort-da” onde uma criança repetidas vezes jogava seus brinquedos para longe (e emitia um sonoro “fort” – “foi embora” em alemão). Ao trazer de volta, falava um alegre “da” (“ali” ou “eis de volta”). No jogo a criança reencena o drama da separação da mãe. Essa necessidade desse jogo é interpretada por Freud como um “instinto de dominação”: se no drama edipiano ela era passiva, no jogo ela torna-se ativa ao reviver a cena.


Talvez isso explique a recorrente exploração desse drama arquetípico nas animações infantis. As crianças experimentam esse prazer lúdico em reviver o drama arquetípico das nossas origens, assim como o panda Po conseguiu relembrar o porquê dos seus pais o terem abandonado.


O desespero do seu pai adotivo para que Po não fosse para terras tão distantes da China para lutar contra um oponente tão perigoso e o seu retorno para casa completam esse jogo do “fort-da” freudiano: o herói que vai para terras distantes deixando o aconchego das suas origens, sofre, morre (Po é tido como morto pelos seus companheiros depois de vê-lo atingido por uma bala de canhão) e renasce renovado. A repetição desse drama psíquico talvez seja o âmago lúdico da atração infantil renovada por essas estórias.

 

Wilson Ferreira

Wilson Roberto Vieira Ferreira - Mestre em Comunição Contemporânea (Análises em Imagem e Som) pela Universidade Anhembi Morumbi.Doutorando em Meios e Processos Audiovisuais na ECA/USP. Jornalista e professor na Universidade Anhembi Morumbi nas áreas de Estudos da Semiótica e Comunicação Visual. Pesquisador e escritor, autor de verbetes no "Dicionário de Comunicação" pela editora Paulus, e dos livros "O Caos Semiótico" e "Cinegnose" pela Editora Livrus.

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