A política como arte poética

A Política como Arte Poética

No que tange à política, as emoções que inflam os nossos noticiários e a aparente irracionalidade de muitas das decisões que nela se dão demonstram o quanto a subjetividade pode ser usada para irrigá-la e mantê-la viva. Como bebedora das fontes da subjetividade, é possível que a política, em si, possa configurar uma forma de arte – a qual representa, por si só, um fluxo produtivo de subjetividade em busca de reconhecimento em direção a um público  – e por conta disso talvez traga, até nossa realidade, verdadeiras estéticas, as quais conformam seus sujeitos a partidos e ideologias políticas em um comportamento de agremiação parecido com Escolas de Arte.  

Se nas Artes muito usualmente encontramos modernistas se opondo a classicistas, por exemplo, na política vemos os ditos liberais em guerra contra conservadores, em um jogo de cena em que personagens não raramente trocam de papéis dependendo do momento histórico e de interesses pessoais dos envolvidosAlém disso, a cena política se vê repleta de plagiadores e de sujeitos desprovidos de criatividade que só fazem repetir fórmulas prontas conforme lhes convenha a vantagem pessoal ou necessidade. A fama e o reconhecimento que o artista quase sempre espera é da mesma classe de honrarias que muitos políticos buscam, e havendo algum ente desinteressado em qualquer um dos meios (artístico ou político), reflitamos que são muito mais exceção do que regra. A arte pela arteparece ser tão rara quanto a política pela política.

 Na essência, o político apresenta sua obra ao povo como o artista apresenta sua obra ao público, numa efusão de subjetividade que se objetiva e se reproduz, tocando as subjetividades individuais de um público que dará ou não sua aprovação. E o sucesso da política, como da arte, garantirá o aumento ou a redução do público ou dos votos.

Até aí, no entanto, nosso paralelo entre arte e política parece mera especulação filosófica, apesar de parecer claro que possa haver uma relação metafórica entre elas, umisomorfismo pelos motivos que já apontamos. Nesse sentido, a análise de um contextopolítico específico, em paralelo com uma estrutura observada em uma forma de arte, digamos, a Literatura, talvez possa fornecer pistas para reforçar a essa relação entre a política e a arte, ou ainda, a da política como forma de arte.

Aliás, pode ser ainda mais desafiadora, pela supremacia da linguagem verbal na atividade política da mesma forma que se dá na Literatura, a postulação de que haja uma Política como Arte Poética. E deve ser Arte Poética porque a Política não se faz de um texto em prosa, contínuo e uniforme, em que os elementos de coesão garantem certa unidade do discurso – nela, a pausa entre as palavras dos seus agentes, a pausa entre seus discursos e entre os eventos ajudam a preencher sentidos, e aumentar ainda mais as possibilidades de leituras. A Política poderia ser vista  como uma composição de discursos e atos (o que dá um ar de poema concreto a ela) entremeados por pausas e contextos que configurariam grandes poemas em construção, e os políticos seriam como poetas a elaborar peças para serem lidas publicamente.

À luz da Literatura, uma leitura da cena política desde os anos da presidência de Fernando Henrique Cardoso seguidos por oito anos de lulismo que agora avançam pelo primeiro ano de mandato da Presidente Dilma Rousseff parece corroborar com essa hipótese da política nacional como Arte Poética: ela deixa transparecer, muito claramente, o que Harold Bloom, crítico literário, chamou de Ansiedade da Influência. A Ansiedade de Influência como fenômeno da Crítica Literária aparece na política brasileira quando fazemos uma Crítica Política da transição entre o legado de Fernando Henrique Cardoso e o lulismo conforme veremos.

A Ansiedade da Influência

A idéia central de Bloom é a de que os poetas enfrentam um verdadeiro impedimento em seu processo criativo devido ao relacionamento ambíguo que eles necessariamente mantêm com poetas que lhes precederam. E admitindo a influência da experiência extraliterária em cada poeta, Bloom levanta que o autor é inspirado a escrever pela leitura da poesia de outros e por conta disso tenderá a produzir obras que derivem de outras já existentes. O resultado dessa influência seria a baixa qualidade da poesia pela falta de inovação e originalidade, o que relegaria o poeta ao esquecimento.

Como é necessário que o poeta forge uma visão original de poesia para que possa garantir sua permanência para a posteridade (isto é, garantir que jamais seja esquecido como poeta), a influência dos poetas que lhe precederam gera uma sensação de ansiedade: eis a Ansiedade da Influência.

 Com essa teoria, Bloom tenta explicar como uma pequena minoria de poetas fortes torna-se capaz de produzir obras originais apesar da pressão gerada pela influência de outros, em um processo  de desleitura da obra de poetas anteriores. Tal desleitura, como o Ágon da dramaturgia grega clássica, se caracterizaria por seis modalidades de apropriação:clinamen (inclinação para o lado oposto), tessera (mosaico), kenosis (esvaziamento), daemonization (contrasublimação), askesis (purgação) e apophrades (retorno ao ponto inicial).

Nas formas de apropriação poderíamos ver, claramente, a configuração poética da escolalulista em luta para permanecer na posteridade como poeta forte da Arte Poética da Política,apesar da ansiedade da influência do poeta forte Fernando Henrique Cardoso, já portador de um legado histórico, em seu encalço.

Vejamos como se deu a Ansiedade de Influência no lulismo, desde FHC presidente e candidato ao segundo mandato (e portanto já forte)  versus  Lula (que ainda se consolidava):

Ansiedade da Influência na Transição FHC  – Lulismo.

Na consolidação do lulismo no Brasil sob a égide do legado de FHC podemos abstrair algumas das modalidades de apropriação indicadas por Bloom:  

1- CLINAMEN: o candidato derrotado Lula versus o presidente FHC I*

Na Literatura, fala-se de clinamen quando o escritor mais recente tenta corrigir o escritor que lhe deixou legado, apontando que este deveria ter seguido por outro caminho, que é justamente a direção para a qual o mais recente se move. O candidato Lula derrotado na reeleição de FHC tentava, justamente, opor-se a inovações que este último havia posto em prática. O sucesso do plano real e o fim da hiper-inflação que assolou a vida dos brasileiros por muitos anos garantiu um plano de continuidade para FHC, e a probabilidade de ruptura e mudança de direção, o clinamen do poeta Lulamostrou-se uma estratégia mal sucedida para fazer dele presidente, e não foi com essa modalidade de apropriação que o poeta político Lula projetaria sua obra política para a posteridade.

2- TESSERA:  Lula candidato que sairia vitorioso e o presidente Lula I x FHC

A palavra tessera em grego alude a um mosaico, uma apropriação mista na qual fragmentos da obra do poeta anterior são completados e relidos pelo poeta mais recente, numa convivência entre completação e antítese. O Lulinha paz e amor que venceria as eleições de 2002 era um mosaico de Lula que manteria a política econômica do seu antecessor e re-elaboraria, sob nova forma, programas sociais bem sucedidos dos anos de FHC. O caráter de completação com ares antitéticos deste momento do lulismo talvez tenha sido o grande responsável pela vitória de Lula depois do segundo mandato de FHC, pois a crise econômica que o Brasil enfrentava trazia à tona a necessidade de mudanças, mas com a manutenção das conquistas anteriores. O Lulinha paz e amor trazia a possibilidade de manutenção do que era positivo dos anos FHC, mas com mudanças que poderiam fazer o Brasil sair da crise, numa montagem de propostas que se opunham aos anos FHC com outras que se completavam e se baseavam neles.

3- KENOSIS:  O candidato Lula I e Lula II x FHC

Na kenosis, o escritor faz uso de mecanismos que visam garantir descontinuidade e rupturacom o escritor que lhe precedeu. Basicamente, o poeta mais recente tenta o esvaziamentodo seu precursor. Neste sentido, o presidente Lula no fim do seu primeiro mandato já encaminhava seu “nunca antes na história desse país” como uma manifestação muito clara de ruptura com os anos de FHC. Dado o sucesso do primeiro mandato de Lula e seu carisma pessoal, a tentativa de um discurso de ruptura entre o lulismo e FHC  pode ser posta em prática através de discursos de esvaziamento dos méritos de FHC e da tomada da autoria de projetos que surgiram de releituras deste durante a etapa de apropriação do período anterior. Neste período, o lulismo parecia ter criado todo o Brasil a partir do zero, e tentava, pois, esvaziar o legado de Fernando Henrique Cardoso.

4- DAEMONIZATION:  Lula II em defesa da candidata Dilma x FHC

Na daemonization  descrita por Bloom, palavra que talvez possa ser entendida quase comodemonização em língua portuguesa, o novo escritor rejeita os méritos do escritor que o precedeu, direcionando o que há de sublime neste em direção ao que é contra-sublime. Essa demonização de Fernando Henrique Cardoso durante a campanha da então candidata Dilma Rousseff pode ser verificada pelo insistente ataque a certos aspectos dos anos FHC pela campanha lulista, fato que, captado pelo então candidato José Serra, foi absorvido como uma demonização de FHC pelo candidato de seu próprio partido – um erro de campanha estratégico quase que evidente. Não foi, pois, em vão, que vimos José Serra opondo-se veementemente em cadeia nacional às privatizações dos anos de Fernando Henrique, e distanciando-se dele em sua campanha. Serra absorveu a pressão da influência de FHC que provinha do discurso lulista e integrou-se ao processo de demonização que visava transformar o que havia de sublime na obra de FHC em seu contra-sublime.

A grande contradição deste período é o fato de Serra ter sido um candidato a presidente do mesmo partido de FHC adotando um discurso que colaborava com o processo que se dava para garantir a continuidade do lulismo. Esse candidato, inclusive, talvez estivesse enfrentando, como poeta político, sua kenosis pela Ansiedade de Influência dirigida ao legado também de FHC. 

5- ASKESIS: a presidente Dilma I  x FHC

askesis é um tipo de movimento de auto-purgação na qual o poeta objetiva um corte de excessos, dando um passo que supera seus limites humanos e imaginativos para se separar dos outros, incluído o precursor, mas mantendo o respeito a ele. Esse corte promovido pelo poeta, mesmo que sob a égide do respeito ao legado do poeta que foi seu precursor, acaba por diminuir o legado deste último, dando-o como superado.

Na política, que é nosso objeto aqui, parece ainda ser um pouco cedo para dissertar propriamente sobre a askesis no lulismo, mas é possível notar um movimento forte da presidente Dilma Roussef no sentido de demonstrar seu respeito e consideração pelo legado de FHC. Um bom exemplo desta movimentação foi a carta de autoria da presidente Dilma e dirigida a FHC, por ocasião de seu aniversário de oitenta anos, em que foram feitos elogios a ele, reconhecendo, claramente, diversos aspectos positivos de suas realizações.

Mas ainda que o legado próprio ao lulismo seja a obra de FHC, o legado individual à presidente Dilma, no entanto, não é apenas as realizações deste ex-presidente. Há a obra de Lula como precursora de Dilma em sua sombra pretérita, e talvez pudéssemos esperar  sobre a presidente os mesmos movimentos dessa Ansiedade de Influência de FHC sobre o lulismo na forma de uma Ansiedade da Influência de Lula sobre si.

Essa divisão entre  Dilma como presidente individual e o lulismo, como movimento, gerando alguma Ansiedade da Influência de Lula, só deve ocorrer, no entanto, se Dilma deslocar-se do centro executivo do lulismo em busca de protagonismo para construir seu próprio legado – um dilmismo. Se assim for, talvez possamos esperar da parte dela os mesmos movimentos que já apontamos ter havido na relação de  Lula, como personificação do lulismo, e FHC, e ainda uma Ansiedade da Influência causada por dois precursores de peso.

Particularmente falando, podemos já estar vivendo com Dilma a Ansiedade das Influências dos legados de Lula e/ou FHC. O desmonte dos ministérios que lhe foram deixados como legado pode ser um indício da primeira possibilidade (askesis?).

6-  APÓPHRADES: (Quem? Quando?)

Apóphrades representa o retorno ao ponto inicial, e alguns críticos referem-se a ela resumidamente como “o retorno do morto”. Prever como esse retorno ao ponto inicial, o “retorno do morto”, se dará na nossa situação política baseado no que temos de informação disponível atualmente é algo que deixaremos para ser feito por um vidente ou profeta. A dúvida principal, no entanto, é clara de enunciar: quem será o morto a voltar?

O espírito do poeta FHC – precursor do lulismo, ou o espírito do poeta Lula, precursor de Dilma Roussef?

Só o tempo dirá.

Para este momento, contentemo-nos com os versos que temos, e deixemos os políticos, ou melhor, poetas, trabalharem. E que a musa os inspire!

Luis Nassif

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