Wilson Ferreira
Wilson Roberto Vieira Ferreira - Mestre em Comunição Contemporânea (Análises em Imagem e Som) pela Universidade Anhembi Morumbi.Doutorando em Meios e Processos Audiovisuais na ECA/USP. Jornalista e professor na Universidade Anhembi Morumbi nas áreas de Estudos da Semiótica e Comunicação Visual. Pesquisador e escritor, autor de verbetes no "Dicionário de Comunicação" pela editora Paulus, e dos livros "O Caos Semiótico" e "Cinegnose" pela Editora Livrus.
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“Agnosia” revela formas alternativas da mente no cinema

O filme espanhol “Agnosia” de Eugenio Mira e “A Origem” de Christopher Nolan foram lançados no mesmo ano de 2010. São dois filmes com versões diferentes para o mesmo tema: um thriller de espionagem industrial que envolve a invasão da mente de alguém para extraírem um segredo que envolve interesses corporativos. Um exercício de análise comparativa entre os dois filmes revela diferentes formas de representar a mente humana: se na Europa a Psicanálise e a psicologia da percepção possuem prestígio no meio artístico e intelectual, nos EUA a mente não é pensada como uma máquina desejante, mas informática onde dados são deletados ou inseridos. Enquanto “Agnosia” é um conto gótico inspirado em psicanálise, “A Origem” é o inconsciente traduzido pelas neurociências.

A análise comparada em cinema (o exercício de analisar diferentes visões de filmes e diretores sobre um mesmo tema) sempre dá surpreendentes resultados ao revelar as diferenças ideológicas e culturais de países ou de polos de produção cinematográfica.

Um exemplo evidente é o filme espanhol Agnosia (2010) do diretor Eugenio Mira e escrito por Antonio Trashorras. Assistindo ao filme, é impossível não comprarmos com o filme de Christopher Nolan A Origem (Inception, 2010), produção norte-americana lançada no mesmo ano da produção espanhola. Ambos exploram o tema da espionagem industrial: há um segredo de grande interesse industrial que está na mente de uma pessoa e que deve ser extraído.

Como já analisamos em postagem anterior, o filme de Nolan focava abordava a mente pelo ponto de vista das neurociências ao refletir a atual agenda tecnocientífica em fazer uma cartografia e topografia da mente com objetivos de manipulação e controle. Em A Origem não há inconsciente, simbolismo ou mundos oníricos. Há apenas a representação da mente como níveis, porões e regiões que poderiam ser topograficamente localizadas – sobre esse tema clique aqui.

Em Agnosia há também interesses corporativos de uma indústria de armamentos que objetiva extrair uma fórmula secreta da mente de um protagonista. Mas a abordagem é indireta e simbólica em um misto de psicologia a percepção e psicanálise. Nolan é pragmático como num thriller de espionagem, enquanto Eugenio Mira dirigiu um conto gótico e romântico onde a mente não é invadida, mas seduzida pelo amor e erotismo.

O filme

Agnosia é ambientado na Barcelona do século XIX e narra a história de Joana Prats (Bárbara Goenaga), uma jovem que sofre de uma disfunção neuropsicológica chamada agnosia que afeta a sua percepção. Ainda que a visão e audição estejam em perfeitas condições, sua mente não consegue interpretar os estímulos que recebe, tendo dificuldade em reconhecer pessoas e objetos e até a si mesma no espelho.

Mas Joana tem em algum lugar da sua mente um segredo: a fórmula da fabricação de lentes catadiópticas, poderoso acessório telescópico para armas de fogo por possibilitar miras precisas a distâncias muito superiores das armas convencionais. Seria uma revolução na indústria de armamentos.

A principal concorrente da indústria dos Prats trama um sinistro complô para extrair a valiosa informação aproveitando-se da confusão sensorial de Joana no momento em que um psiquiatra propõe uma revolucionária terapia envolvendo hipnose e a construção de uma “crisálida” – encerrar Joana em uma sala totalmente isolada dos estímulos do mundo exterior por três dias para tentar fazer regredir a agnosia.

O plano é “contaminar” a terapia envolvendo os criados da mansão, um sósia do noivo (Vincent – Félix Gomes – um jovem impulsivo que cresceu na mansão dos Prats) braço direito do pai de Joana na indústria de armamentos da família e os doutores responsáveis pelo tratamento. Penetrar naquela crisálida seria o equivalente a invadir a mente de Joana e, de alguma forma, seduzi-la e convencê-la a revelar o segredo industrial.

O Gótico e o Romântico

O filme demonstra o fascínio do autor do roteiro pelo início de uma literatura popular já perdida no tempo: a literatura gótica e os folhetins do século XIX em forma de seriados com tom misterioso e mórbido, intrincadas peripécias que giram em si mesmas, a perpétua busca do assombro e do maravilhoso.

Todos os componentes da literatura romântica estão em Agnosia, desde o pai íntegro, o padecimento da heroína enferma, as contradições dos seus desejos com a moralidade da época, fabulações sinistras e personagens decadentes e perversos.

A direção de arte é perfeita, mas o filme acaba se ressentido pelo excesso de estilização e maneirismo (no final há até uma sequência inteira fazendo um misto de alusões à cena da escadaria do filme Encouraçado Potenkin de Eisenstein e a escadaria da estação de trem do filme de Brian de Palma Os Intocáveis). Mas mesmo assim Agnosia vale à pena pelas representações da mente e inconsciente que a produção espanhola faz, significativamente diferentes daquelas feitas por A Origem.

Apesar de toda estilização e do pastiche (uma mistura de conto gótico, romântico, thriller de espionagem com um toque de ficção científica retro), o roteiro de Transhorras é bem fiel ao espírito da época e a sensibilidade do período para a questão da mente humana.

A mente do século XIX

As primeiras metrópoles europeias, o trem, a luz elétrica, a máquina a vapor e a industrialização começam a acelerar a vida urbana. Associada ao desenvolvimento da imprensa, a fotografia, cinema e meios de comunicação como telefone e telégrafo, nunca até então a percepção humana tinha sido bombardeada com tantos estímulos. Por isso tempo, memória e percepção do instante passaram a serem temas recorrentes na arte, literatura, filosofia e psicologia.

O impressionismo na pintura buscava registrar o flagrante do instante através dos efeitos da cor e da luz sobre os objetos; o filósofo Henri Bergson que via a percepção e a mente humana como uma câmera de cinema e a memória como um frame isolado; a hipnose e a descoberta do inconsciente e dos mecanismos da neurose de um psiquismo ao mesmo tempo reprimido pela moralidade vitoriano e superexcitado pela nova vida urbana.

A virtude de Agnosia é colocar a representação da mente humana em perspectiva ao espírito de época do final do século XIX, enquanto A Origem expressa a sensibilidade pragmática atual que vê a mente como um objeto a ser mapeado para manipulações, extrações e inserção de informações.

A protagonista Joana sofre de agnosia que, como descrito em uma linha de diálogo do filme, é como se o paciente tivesse perdido o filtro através do qual retém e seleciona os estímulos exteriores, permitindo à mente à organização da experiência como objetos, sons, pessoas, formas etc.

Como sugere o pesquisador francês Paul Virilio em livros como Guerra e Cinema e Estética do Desaparecimento, as disfunções neuropsicológicas como a afasia seriam a extensão na vida civil dos estados de afásicos dos soldados nas guerras modernas marcadas pela tecnologização e aceleração da percepção – Walter Benjamin falava dos soldados que retornavam da I Guerra Mundial em estado de choque e sem memórias. Para Virilio, a aceleração tecnológica da comunicação e informação militar (a Guerra do Golfo em 1990, por exemplo, transformou-se em um videogame para os pilotos norte-americanos) chegaria á vida civil, trazendo disfunções neurológicas pelo bombardeio perceptivo.

 

Wilson Ferreira

Wilson Roberto Vieira Ferreira - Mestre em Comunição Contemporânea (Análises em Imagem e Som) pela Universidade Anhembi Morumbi.Doutorando em Meios e Processos Audiovisuais na ECA/USP. Jornalista e professor na Universidade Anhembi Morumbi nas áreas de Estudos da Semiótica e Comunicação Visual. Pesquisador e escritor, autor de verbetes no "Dicionário de Comunicação" pela editora Paulus, e dos livros "O Caos Semiótico" e "Cinegnose" pela Editora Livrus.

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