Wilson Ferreira
Wilson Roberto Vieira Ferreira - Mestre em Comunição Contemporânea (Análises em Imagem e Som) pela Universidade Anhembi Morumbi.Doutorando em Meios e Processos Audiovisuais na ECA/USP. Jornalista e professor na Universidade Anhembi Morumbi nas áreas de Estudos da Semiótica e Comunicação Visual. Pesquisador e escritor, autor de verbetes no "Dicionário de Comunicação" pela editora Paulus, e dos livros "O Caos Semiótico" e "Cinegnose" pela Editora Livrus.
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Alucinações pós-digitais no filme “O Congresso Futurista”, por Wilson Ferreira

Se hoje discutimos o destino do cinema com a era da digitalização, o filme “O Congresso Futurista” (The Congress, 2013) já está bem à frente: em uma era pós-digitalização o cinema tal qual conhecemos deixaria de existir. A indústria do entretenimento apenas forneceria estímulos químicos e eletrônicos e o “espectador” criaria sua própria alucinação, transformando-se na celebridade que quisesse. Em uma espécie de versão feminina do filme “Quero Ser John Malkovich”, a atriz Robin Wright (“House of Cards”) interpreta corajosamente sua própria carreira num híbrido de “live-action” e animação mostrando o destino do ator num futuro onde as pessoas irão querer se exilarem numa espécie de Caverna de Platão produzida por alucinações químicas e solipsistas.

Hollywood produz sonhos e ilusões. Mas nem por isso deixa de viver as mazelas de uma indústria qualquer, com os costumeiros conflitos entre capital e trabalho – no caso do cinema, toda a estrutura que se arma em torno dos atores, a mão-de-obra do negócio: agentes, rompimentos de contratos, drogas, depressão, fracassos, amantes etc.

E se na indústria convencional o capital precisa controlar o trabalho por meio da automação e demissões, na indústria dos sonhos não é diferente: o desenvolvimento tecnológico digital não objetiva outra coisa senão controlar o trabalho dos atores até chegar ao ponto, num futuro bem próximo, em que o próprio ator será um personagem digital (propriedade do estúdio), dispensando o ator real que será despachado para o ostracismo.

Sem a sua “alma” (comprada pelo estúdio) o ator real estará proibido de atuar contratualmente, mesmo nos recônditos do planeta.

Esse é o ponto de partida do filme O Congresso Futurista (The Congress, 2013) dirigido pelo israelense Ari Folman (Valsa com Bashir, 2008), combinando elementos de live-action com cinema de animação. Desse pressuposto econômico sobre o Cinema, Folman passa para reflexões cada vez mais exigentes para o espectador.

O Congresso Futurista vê o espectador do cinema como um consumidor cada vez mais insaciável em um momento como o atual em que exige-se cada vez mais imersão e interatividade. Esse será o início do fim do Cinema tal qual conhecemos – em busca da experiência de imersão total, o cinema apenas fornecerá estímulos químicos ou eletrônicos e cada uma das nossas mentes produzirá a sua própria narrativa. Uma alucinação pessoal. Em outras palavras, a realização final daquilo que a Filosofia chama de Solipsismo: a crença de que o mundo externo é uma mera ilusão do próprio Eu.

O Filme

No filme a atriz Robin Wright (House of Cards) interpreta a si mesma, como fosse uma versão feminina do filme Quero Ser John Malkovich de 1999. Aos 44 anos ela é uma atriz que teve um início promissor com A Princesa Prometida (1986) e Forrest Gump (1996), mas que agora está no crepúsculo da carreira depois de muitos fracassos, escolhas erradas, temperamento difícil e uma insegurança atroz. Quem lhe dá esse banho de realidade é seu agente, Al (Harvey Keitel) que lhe convence a ouvir a proposta que Jeff Green, o CEO da Miramount (Miramax + Paramount?), tem a lhe oferecer.

Jeff oferece a Robin o seu último contrato: em troca de uma grande bolada de dinheiro, o estúdio a escaneará até transformá-la em um arquivo digital aplicável a qualquer produção cinematográfica. Todos ganhariam: a Miramount teria a eterna juventude da atriz e se livraria de todos os problemas da Robin real, enquanto a atriz teria uma milionária aposentadoria sob uma condição: jamais atuar na sua vida seja no cinema, TV , teatro ou até em uma festinha de colégio infantil.

Mas, e o livre-arbítrio do ator? Afinal, o desenvolvimento do ator não seria justamente o resultado de acertos e erros em uma vida? Sem muitas opções e precisando de tempo e dinheiro para tratar de uma doença degenerativa do filho adolescente Aaron (Kodi Smit-McPhee) Robin acaba aceitando.

Depois disso o filme salta vinte anos. Robin está retornando para o prédio da Miramount para participar de um estranho congresso onde discutirá uma possível renovação do seu contrato. Após dela ingerir o líquido cor-de-rosa de uma ampola, o filme transforma-se em animação 2D, onde os participantes assumem uma versão animada de qualquer personagem pop que desejarem.

Agora a Miramount chama-se Miramount Nagasaki (sutil ironia da realidade atual onde estúdios de Hollywood passam a ser controlados por transnacionais como a Sony japonesa ou a News Corporation australiana). Todos os participantes do congresso são os próprios personagens criados pela Miramount, com a capacidade de se transformar em diferentes celebridades pop.

Lá mais uma vez descobrirá que o cinema deu mais um passo na sua evolução tecnológica: vivemos agora a fase pós-digitalização onde a celebridade é ingerida através de uma ampola e o espectador cria seu próprio filme, ou melhor, sua alucinação. Com isso, Hollywood livra-se de mais um problema trabalhista: os roteiristas e desenhistas de computação gráfica – depois dos atores, eles tornaram-se um problema quando passaram a se apaixonar pelos próprio personagens digitalizados que editavam.

O fim do Cinema

É esse o ponto inovador em O Congresso Futurista: enquanto na atualidade o cinema tematiza os desdobramentos da digitalização (atores reais contracenando com personagens digitais, o fim da película etc.), esse filme apresenta um cenário mais à frente – o desaparecimento do próprio cinema no solipsismo do espectador por meio da alucinação química. Para quê contar histórias se o próprio espectador pode ingerir suas celebridades e imergir quimicamente na alucinação?

Se no conceito de ciberespaço criado pelo escritor William Gibson temos um ambiente criado de forma digital por meio de uma alucinação consensual criada diariamente pelos usuários (e dessa forma muitos analistas definem a atual experiência dos internautas), em O Congresso Futurista já vivemos para além disso – o pós-digital, uma era “químico-espacial”.

 

Wilson Ferreira

Wilson Roberto Vieira Ferreira - Mestre em Comunição Contemporânea (Análises em Imagem e Som) pela Universidade Anhembi Morumbi.Doutorando em Meios e Processos Audiovisuais na ECA/USP. Jornalista e professor na Universidade Anhembi Morumbi nas áreas de Estudos da Semiótica e Comunicação Visual. Pesquisador e escritor, autor de verbetes no "Dicionário de Comunicação" pela editora Paulus, e dos livros "O Caos Semiótico" e "Cinegnose" pela Editora Livrus.

3 Comentários

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  1. Esse fime é uma alucinação!

    Esse fime é uma alucinação! Tremenda viagem. e muito instigador.

    Realmente vale a pena assisitir. E ainda tem a Robin Wright num papel bastante corajoso: o dela própria “em decadência”….

  2. Bad Trip

    Uma vez conversava com amigos sobre artes plásticas e se poderia surgir um novo estilo revolucionário… A discussão surgiu da critica a arte contemporânea; o cansaço de ver obras absolutamente irrelevantes, feitas sem o menor esforço ou refinamento estético. Disso surgiu a idéia de que num futuro o artista ao invés trabalhar com tintas e telas, ferramentas primitivas que são as mesmas a séculos, poderia trabalhar com estímulos neurais produzidos por uma máquina com o objetivo de “pintar sonhos”.

    A idéia seria criar um conjunto de estímulos que seria aplicado diretamente ao cérebro do espectador para que ele tivesse um sonho, ou alucinação, e pudesse inclusive ter a sensação de tato, paladar e olfato além da experiência visual.  Seria o ápice da idéia de obra de arte; a possibilidade do artista transmitir uma experiência estética ampla e sem qualquer limite.

    Mas claro, isso não salvaria a qualidade da arte e não se evitaria produzir lixo, “bad trips” no caso.

  3. O futurismo de Fritz Lang em
    O futurismo de Fritz Lang em Metropolis é bem mais interessante e assustador. Um duplo eletro-mecânico interpreta a heroína para produzir confusão e sujeição a fim de manter intacta a estrutura injusta da cidade. Ela é ou pode ser considerada uma representação sofisticada do próprio cinema, que tem realizado a mesma tarefa infame há mais de um século. O filme de Lang não sai de moda e resiste a toda inovação justamente por causa de suas diversas leituras. Isto para não falar dos especuladores efeitos especiais feitos com recursos técnicos que seriam considerados primitivos agora que entramos na era da computação gráfica capaz de criar cenários e personagens humanos credíveis.

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