Arquitetura e Neoliberalismo, por Marcos O. Costa

Arquitetura e Neoliberalismo: A Bienal de Veneza de 2014

Por Marcos O. Costa

Bienal de Veneza – Elements – Ceiling – Rem Koolhaas

arquitetura não arquitetos

Quando, em 1979 fui convidado a participar da primeira Bienal de Arquitetura de Veneza, realizada no ano seguinte, pensei que havia algum engano. Eu não conhecia o diretor, Paolo Portoghesi, e tampouco imaginava como poderia colaborar com o tema “A Presença do Passado”.

34 anos se passaram. Mais crucial  do que o impulso dado por Portoghesi àquele evento, foi a eleição de Ronald Reagan, o grande arquiteto do neoliberalismo, contexto no qual a arquitetura atua desde então. A economia de mercado erodiu o status moral da arquitetura. Ela divorciou os arquitetos do público, e os empurrou para os braços do setor privado – eles não servem mais a “você”, mas a um difuso “eles”.

Rem Koolhaas, Catálogo da Bienal de Veneza de 2014

 É desta forma que Rem Koolhaas inicia o catálogo da Bienal de Veneza de 2014, mostra que acaba hoje (23/11/14) e da qual foi o curador. A exposição vê a Arquitetura inserida em um contexto socioeconômico profundamente marcado pela presença, cada vez mais ostensiva, do setor privado como principal contratante das construções. A partir desta premissa a mostra busca definir o papel da Arquitetura diante do Neoliberalismo, que lhe influi diretamente e sobre o qual, aparentemente, ela pouco pode interferir. Surge então o tema da mostra: Fundamentals. Quais as fundações sobre as quais ocorre esta relação? O desenvolvimento tecnológico e a hiper valorização do indivíduo são, talvez, os pontos mais evidentes deste processo, mas não os únicos. Um esforço de pesquisa reuniu as mais importantes instituições de ensino, em busca de estórias que pudessem explicar a condição atual da Arquitetura. A exposição foi dividida em três partes: Monditalia, Elements e Exposições Nacionais.

As Exposições Nacionais foram organizadas, pela primeira vez, em torno de um tema único: Absorbing Modernity 1914-2014 (absorvendo a modernidade). Cada um dos 66 países participantes construiu sua hipótese para responder uma pergunta subjacente ao tema: teriam as identidades nacionais sido sacrificadas em nome da modernidade? As respostas foram extremamente desiguais. A mais comum foi a simples apresentação da evolução cronológica da arquitetura de cada um dos países. Em geral esta estratégia acaba perdendo a oportunidade de aprofundar o debate teórico proposto por Koolhaas. Infelizmente o pavilhão brasileiro faz parte deste conjunto. Dentre os que pude visitar, os pavilhões mais interessantes foram o da Estônia, o de Pequim e da França. A Estônia apresentou a instalação interativa Interspace em que se buscava discutir a relação entre o espaço público físico e o digital (ver http://www.enterinterspace.ee/). Uma imensa maquete do centro da cidade dominava o espaço da exposição de Pequim, uma das maiores de toda a Bienal. Ela mostra as transformações radicais que atingiram o local desde 1488 até 2014. Outro destaque foi a exibição do documentário Meishi Street (Mei Shi Jie), de 2006, do diretor Ou Ning. Ele forneceu uma câmera digital para Zhang Jinli, um dos proprietários de imóveis na rua Meishi, no bairro de Dashilar, que seria desapropriado por conta de obras das Olimpíadas de 2008. Um retrato cru(el) das políticas urbanas pouco democráticas da China. Já o destaque da França coube a outra maquete, desta vez a do cenário do filme Mon Oncle, de 1958 de Jacques Tati. No filme Tati critica diretamente a Arquitetura moderna através da história do Tio que mora em um bairro tradicional de Paris, e vai visitar o sobrinho que mora com sua família em uma casa modernista afastada da cidade.

Mas é com a Monditalia e a Elements que a Biennale 2014 será destacada ao longo da história da mostra veneziana, que é a mais importante da arquitetura no  mundo. Monditalia pretende tomar o país anfitrião como uma espécie de protótipo da condição contemporânea. Para tanto lança mão de uma interface com o cinema, a música, a dança e as artes plásticas italianas. A primeira parte da exposição faz um “scanner” do país através de gráficos e diagramas. Uma série de informações novas, construídas por inúmeras pesquisas por todo o mundo, permitem contemplar a arquitetura feita no “contexto” do neoliberalismo, a partir da Itália. Descobrimos que a Itália detém o  maior número de arquitetos per capita do planeta: um para cada 414 habitantes; que os promotores privados são responsáveis pela maior parte das encomendas arquitetônicas na Europa Ocidental; que os arquitetos italianos trabalham em grande parte com arquitetura de interiores. Muitos arquitetos para poucos. Um quadro onde o arquiteto perde importância na sociedade. Longe, muito longe, está o Renascimento, em que Michelangelo era símbolo do artista altivo, genial, que definia (novos) parâmetros para a sociedade em que vivia:

Em 2006 voltei a Itália para uma derradeira tentativa de compreender. De longe o espaço  mais incômodo que experimentei nesta viagem foi o vestíbulo da Biblioteca Laurenziana, de Michelangelo. Este espaço é aterrorizante, quase um pesadelo. Nada funciona, tudo está “errado”. Mas a soma de todas as disfuncionalidades é fascinante. É como se a pele exterior do palácio fosse virada do avesso e utilizada para delinear um pátio interno – dobrado, condensado e mesmo amarrotado. Tudo é desproporcional nesta compressão desengonçada. O espaço é flagrantemente interior, mas estranhamente ele permite uma experiência de exterior, definido por quatro diferentes fachadas através das quais se pode entrar em quatro diferentes destinos. Podemos comparar a violência da intervenção arquitetônica de Michelangelo com a timidez disciplinar de alguns artistas contemporâneos? Michelangelo força cada elemento arquitetônico a novas formas e relações – ele não respeita regras e ridiculariza as “lições” que os arquitetos aplicam à sua profissão. Ele destrói e reimagina a parede, a janela, o corredor, a porta, em uma área pouco maior do que uma sala de estar, dominada por uma imensa escultura que pretende ser escada. Para os artistas e arquitetos contemporâneos a lição da Biblioteca Laurenziana é, talvez, de que o maneirismo é um prato que se come frio e em pequenas doses.

Rem Koolhaas

É fundamental também discutir a maneira como se ensina a Arquitetura. Radical Pedagogies (http://radical-pedagogies.com/), organizada pela Prof. Beatriz Colomina da Princeton University School of Architecture, analisa dezenas experiências pedagógicas adotadas por escolas de todo o planeta. Cada uma delas é interposta através dos conceitos de AÇÃO, REAÇÃO e INTERAÇÃO. A Monditalia termina com a instalação Sales Odity. Milano 2 and the politics of direct-to-home TV urbanism (Odisséia das Vendas. Milano 2 e a política do urbanismo TV a cabo). Mais do que em qualquer outra parte da Bienal aqui se escancara a problemática da arquitetura na sociedade neoliberal. Milano 2 foi o empreendimento lançado por Berlusconi nos anos 70 e que possuía cerca de 700 mil metros quadrados. A publicidade indicava que o espaço era “a cidade dos número um”. Um espaço cuja concepção nasce de forma concatenada com uma nova mídia: a TV a Cabo. Um espaço que prometia a superação dos problemas (poluição, violência, trânsito, etc…) da cidade de Milão. Ele é portanto uma máquina de segregação espacial, esta uma das principais características do desenvolvimento urbano atual. Segundo Andrés Jacque um dos autores da instalação, Milano 2 foi concebido para suprimir o contato entre vizinhos, evitando assim os conflitos. Para se comunicar com seus vizinhos você precisa de uma mídia.  Assim o urbanismo proposto minimizava a política e de certo modo serviu de laboratório para várias outras intervenções semelhantes ao redor do globo. O próprio Berlusconi define seu trabalho da seguinte maneira:  “Eu não vendo espaço. Eu vendo vendas”.

A terceira e última parte da Bienal é composta pela exposição Elements. Se Koolhaas buscou discutir os fundamentos da Arquitetura atual, era necessário decompô-la e observá-la ao microscópio. São  analisados elementos usados por todos os arquitetos, durante todos os tempos e em todos os lugares: o piso, a parede, o forro, a cobertura, a porta, a janela, a fachada, o balcão, o corredor, a lareira, o banheiro, a escada, a escada rolante, o elevador e a rampa.

Cada um deles foi objeto de intensas pesquisas que os redimensionaram e atualizaram seus conceitos. Os 15 elementos foram discutidos no âmbito, ambiental, social, econômico, político, estético e técnico. É possível notar ecos dos grandes tratados de arquitetura como Vitrúvio, Alberti ou Palladio. A exposição fireplace é, neste sentido, exemplar. O termo fireplace é desmembrado em dois: fire e place. A lareira sempre serviu para definir uma casa. Era comum afirmar que determinada cidade possuía determinado número de fogos, como uma maneira de indicar quantas habitações possuía. A modernidade transformou a lareira, ao redor da qual se cozinhava, e se falava dos assuntos da casa. O ato de cozinhar (fire) seguiu caminhos próprios que o levaram ao microondas e ao forno elétrico. Já o lugar do encontro, da conversa, chegou aos smartphones e suas redes sociais.

O plácido movimento da escada rolante tornou possível a transição do capitalismo industrial para o de consumo, pois permitiu o surgimento do shopping mall, assim como a transição da cidade para a metrópole, através da costura dos inóspitos e imensos espaços de circulação.

Esta capacidade que a Bienal de 2014 teve de conectar a Arquitetura ao seu tempo, faz com que esta edição do evento seja lembrada por muitos anos e não apenas pelos arquitetos, mas também por todos os interessados em compreender o início do século XXI. Poucas atividades humanas estão tão vinculadas aos desafios deste período como a arquitetura: como enfrentar as crises ambiental, política, social e econômica que se avolumam a cada dia? A arquitetura não resolve sozinha nenhuma destas questões. Mas ela pode construir caminhos alternativos que permitam a humanidade escolher qual futuro ela deseja.

 

Redação

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