Wilson Ferreira
Wilson Roberto Vieira Ferreira - Mestre em Comunição Contemporânea (Análises em Imagem e Som) pela Universidade Anhembi Morumbi.Doutorando em Meios e Processos Audiovisuais na ECA/USP. Jornalista e professor na Universidade Anhembi Morumbi nas áreas de Estudos da Semiótica e Comunicação Visual. Pesquisador e escritor, autor de verbetes no "Dicionário de Comunicação" pela editora Paulus, e dos livros "O Caos Semiótico" e "Cinegnose" pela Editora Livrus.
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“Aurora” inova as representações do inconsciente no cinema

É inevitável a comparação entre “Aurora” (Vanishing Waves, 2012) da lituana Kristina Buozyte com “A Origem” (Inception, 2010) de Christopher Nolan: enquanto a produção hollywoodiana abordava o mundo onírico pelo viés das neurociências (jamais a palavra “inconsciente” era citada), a produção lituana aborda o mesmo tema, mas fiel ao ponto de vista freudiano sobre a dinâmica do psiquismo, inovando as representações do inconsciente no cinema através de engenhosos efeitos inspirados em MC Escher e expressionismo alemão. Se Freud considerava o inconsciente como o “Isso” e o “Estranho”, “Aurora” mostra como uma neurociência atual munida de interfaces digitais e mapas neuronais tenta ignorar essa origem de toda atividade humana impossível de ser apreendida pela ciência racionalista.

Em postagem passada quando discutíamos o filme A Origem (Inception, 2010) observamos que a grande deficiência do filme de Nolan era abordar o tema dos estados imersivos de alteração de consciência e o mundo onírico dos sonhos sob um ponto de vista associado à engenharia do espírito das neurociências: embora tudo ocorresse no mundo dos sonhos, nunca se tocava na palavra inconsciente e o psiquismo era abordado pela possibilidade pragmática de manipulação neurocientífica comandada por interesses corporativos.

O que tornou A Origem num filme estéril e assexuado onde a presença feminina tornou-se masculinizada ou, então, um objeto abstrato tal como uma princesa de contos de fadas. Bem diferente é o filme da lituana Kristina Buozyte Aurora (Vanishing Waves) em que a narrativa revisita alguns conceitos das viagens no mundo dos sonhos de A Origem. Porém, em Aurora, o psiquismo do mundo dos sonhos é uma mix de surrealismo e de uma primitiva psicossexualidade que faria Freud ficar corado. Kristina se aproxima muito mais do funcionamento do psiquismo humano do que Nolan ao capturar como a experiência real do sonho pode ser assustadora e desagradável, mesclada com primitivas e incontroláveis fantasias eróticas. O que torna Aurora um filme diferenciado no gênero de ficção científica: uma erótica e surreal viagem mental.

Mas Kristina vai ainda mais fundo ao assumir a sua inspiração em filmes que fizeram verdadeiras trips nos estados alterados de consciência como Altered States (1980) de Ken Russell ou Solaris (1972) de Tarkovsky. Se em A Origem tínhamos a apologia das tecnologias neurocientíficas onde o subconsciente aparecia apenas como um obstáculo a ser deletado por engenhosas técnicas, em Aurora o inconsciente surge na exata acepção dada por Freud como o “Isso”, o “Estranho”, isto é, um magma de energias e associações impossíveis de serem deduzidas ou apreendidas pela cultura ou ciência.

O Filme

O filme acompanha Lukas (Marius Jampolskis), um cientista selecionado para participar de uma experiência de “transferência neuronal” que envolve a colocação dele em um tanque de privação sensorial com o seu cérebro conectado a sensores, através dos quais ele tentará fazer uma conexão mental com o psiquismo de uma paciente em estado de coma chamada Aurora.

Os cientistas estão à espera de qualquer indício vago de conexão, mas depois de uma falsa ligação inicial marcada por ruídos e biofeedbacks Lukas de repente salta para os mais obscuros recônditos do inconsciente. A partir daí, a maior parte do filme passará no interior das viagens alucinatórias de Lukas no interior do labirinto mental de Aurora.

Embora Lukas tenha sido orientado pelos cientistas a se manter um observador imparcial durante as incursões psíquicas, ele rapidamente deixará para trás a ética profissional para dar início a um tórrido caso de amor em um mundo e sonhos psicodélicos incluindo uma praia paradisíaca, uma casa de óperas vazia e uma casa de madeira cuja arquitetura parece ser o resultado do cruzamento dos desenhos de MC Escher com a cenografia do filme O Gabinete do Dr. Caligari de Robert Wiene.

Lukas se entrega e começa a literalmente nadar no infinito oceano psíquico de Aurora e beijar e mergulhar no desconhecido: um mundo livre e sem culpas feito de erotismo, orgias, ao mesmo tempo infantil e primitivo como na sequência de uma festa imaginária onde os dois espirram um no outro vinho, sopas e amoras, mastigando no meio de seus rostos e saboreando a textura dos alimentos contra a suas peles.

Logo podemos entender porque Lukas começa a se viciar e a querer sempre mais, escondendo essas interações da equipe de cientistas que monitora as sinapses cerebrais do experimento. Eles nada podem saber do que ocorre já que apenas observam nas telas efeitos fractais mórficos de luz branca difusa e mapas neuronais que cintilam como corpos celestes no vazio. Lukas ficará tão dependente que prejudicará sua vida conjugal tornando insustentável a duplicidade da sua vida de vigília e as viagens oníricas. Torna-se obcecado em saber o motivo do estado de coma de Aurora (Jurga Jutaite, numa performance hipnótica e poderosa) e penetra cada vez mais fundo no buraco de coelho do inconsciente, procurando dar sentido às suas memórias e tentar trazê-la para o mundo dos vivos.

A impotência das neurociências

O viés neurocientífico de Nolan no filme A Origem acompanha a tradição cartesiana ocidental que simplesmente ignorou a antiguidade grega que dividia o ser humano em três partes: Soma (o corpo físico), Nous (o conhecimento e a inteligência pura) e Psiquê (a própria Alma ou a Alma materializada). Descartes opera a divisão entre extensão e pensamento (matéria e espírito), e a alma é afastada do discurso; o corpo e mente tornam-se as únicas realidades possíveis.

O pensamento passa a ser identificado com o espírito que só poderá ser localizado no cérebro (Descartes acreditava ser na glândula pineal), órgão privilegiado que comandaria e daria sentido a um corpo agora inerte e submisso. Por isso, para as neurociências o pensamento seria um conjunto de sinapses neuronais e as fantasias, desejos, pulsões do psiquismo seriam meras ilusões ou obstáculos primitivos que devem ser deletados. Tal como no filme de Nolan onde a “culpa” do protagonista deve ser eliminada de seus sonhos para poder cumprir uma missão.

Ao contrário, Aurora mostra a impotência de neurocientistas munidos de suas interfaces e mapas neuronais diante da energia primitiva e caótica do inconsciente da psique.  Os visuais que Kristina Buozyte e sua equipe de efeitos que evocam as paisagens oníricas distorcidas não são nada menos do que surpreendentes. O imaginário cinematográfico mais assombroso e verdadeiramente surreal já visto em anos. Os cineastas fazem um trabalho incrível ao recriar a experiência momento a momento do sonho, e com um talento especial para manter o espectador espacialmente fora de equilíbrio, com distâncias que parecem comprimir e expandir sutilmente de momento a momento em conjuntos que são constantemente alterados de forma difícil de descrever.

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Wilson Ferreira

Wilson Roberto Vieira Ferreira - Mestre em Comunição Contemporânea (Análises em Imagem e Som) pela Universidade Anhembi Morumbi.Doutorando em Meios e Processos Audiovisuais na ECA/USP. Jornalista e professor na Universidade Anhembi Morumbi nas áreas de Estudos da Semiótica e Comunicação Visual. Pesquisador e escritor, autor de verbetes no "Dicionário de Comunicação" pela editora Paulus, e dos livros "O Caos Semiótico" e "Cinegnose" pela Editora Livrus.

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