Wilson Ferreira
Wilson Roberto Vieira Ferreira - Mestre em Comunição Contemporânea (Análises em Imagem e Som) pela Universidade Anhembi Morumbi.Doutorando em Meios e Processos Audiovisuais na ECA/USP. Jornalista e professor na Universidade Anhembi Morumbi nas áreas de Estudos da Semiótica e Comunicação Visual. Pesquisador e escritor, autor de verbetes no "Dicionário de Comunicação" pela editora Paulus, e dos livros "O Caos Semiótico" e "Cinegnose" pela Editora Livrus.
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Carma, metalinguagem e Fernando Pessoa no filme Zoom, por Wilson Ferreira

por Wilson Ferreira

“Zoom” é uma expressão inglesa com um duplo significado: poder ser “zunir” (“to zoom past” como “passar zunindo” ) ou a lente fotográfica que pode aproximar ou afastar-se de um objeto cujo movimento de ajuste produz um “zunido”. O filme “Zoom” (2015, Brasil-Canadá) de Pedro Morelli explora esse duplo sentido do termo ao criar três universos meta-narrativos (literatura, HQ e cinema) onde os protagonistas ignoram as existências paralelas, sem saber que suas decisões se afetam mutuamente: uma desenhista faz uma HQ sobre um diretor de cinema que faz um filme cuja protagonista escreve um romance sobre a desenhista de HQ. Zoom explora o simbolismo carmico de “ouroboros”, a cobra que come o próprio rabo. E o misticismo do silêncio do poeta português Fernando Pessoa.

Grosso modo há duas maneiras de explorar a metalinguagem no cinema ou na TV: quebrando a “quarta parede” (os personagens conversam com o espectador quebrando a parede imaginária que separa o público da tela) ou revelando o próprio artificialismo da narrativa audiovisual – o cinema mostrando a si mesmo, seu próprio dispositivo e narrativa.

Essa segunda maneira muitas vezes explora conotações místicas ou mesmo gnósticas. É caso de filmes como Um Sonho Dentro de Um SonhoMais Estranho Que a Ficção e Sinédoque, Nova York. Se o dispositivo cinematográfico guarda uma grande analogia com a caverna platônica (a realidade como uma tela de cinema a qual assistimos prisioneiros em uma caverna), a metalinguagem que denuncia que tudo o qual assistimos é um “constuctu” arbitrário e artificial teria, potencialmente, um forte simbolismo gnóstico.

Zoom (2015) de Pedro Morelli, uma co-produção Brasil e Canadá, explora esse tema da metalinguagem de forma radical, conectando três narrativas que ocorrem em diferentes mídias (live-action, HQ e filme) onde seus personagens ignoram as conexões existentes entre suas narrativas. O que resulta em três histórias interligadas onde o desenrolar de uma determina o destino da outra, produzindo uma narrativa emaranhada e recursiva.

Inspirado nas estruturas impossíveis como as escadarias infinitas do ilustrador holandês M.C. Escher, Morelli vai aos poucos no filme dando um significado místico às conexões entre os diferente universos paralelos – o simbolismo da circularidade cármica como a cobra que come o próprio rabo (“ouroboros”) e o misticismo do poeta português Fernando Pessoa.  

Todos os subtemas presentes no filme (a crítica da busca da perfeição, a maneira como nos tornamos prisioneiros de tendências visuais, a submissão da arte ao mercado etc.) se unem a uma surpreendente cosmologia gnóstica final: diferentes mundos podem estar conectados e o que chamamos de carma são, na verdade, resultantes dessas mútuas influências. 

A consciência disso é o que chamamos de “iluminação” ou “gnose”, somente alcançável através do silêncio. A arte do silêncio, numa referência direta que o filme faz ao português Fernando Pessoa. Ele próprio, estudioso de textos místicos e gnósticos, cuja obra (os “heterônimos”) está permeada de referencias a esses seus estudos.

O Filme

Tudo começa com Emma (Allison Pill) que durante o dia trabalha numa pequena fábrica de bonecas eróticas. Todos esses corpos eróticos perfeitos pendurados ao seu redor devem ter contaminado sua mente, ao ponto de desejar ter enormes seios perfeitos, iguais aos da heroína das HQs que ela desenha em seu pequeno caderno.

Frustrada e prisioneira da sua vida e de seu corpo, Emma inventa um galã latino em sua HQ: Edward (Gael Garcia Bernal) onde vive uma glamorosa vida de diretor de cinema, famoso por fazer filmes hollywoodianos de ação e sexo. Mas Edward também está frustrado com o que faz, e decide, à revelia do estúdio, fazer um filme de arte: está rodando um filme sobre Michelle (Mariana Ximenes) uma modelo bem sucedida, mas também frustrada porque todos apenas valorizam sua beleza física.

Michelle aspira ser uma escritora e decide se rebelar: foge para uma praia de pescadores no Brasil onde terá paz para escrever sua romance. E qual a narrativa desse romance? A própria história da frustrada Emma que vive às voltas com os corpos perfeitos das bonecas eróticas.

Mas o devir desses universos paralelos em diferentes mídias (Emma, na literatura; Edward, na HQ; Michelle, no filme) são perturbados. Emma decide fazer uma cirurgia plástica para ter super-seios gastando todas suas economias. Arrependida e revoltada (todos apenas olham apenas para seus seios, o que faz Emma se sentir numa situação idêntica às bonecas eróticas que fabrica), ela investe a caneta contra o seu galã de HQ Edward, diminuindo o tamanho de seu pênis e sua virilidade.

Edward contava com seu desempenho sexual para manipular a executiva do estúdio e poder fazer o seu filme artístico sobre o drama existencial de Michelle. Sem essa “arma” Edward não tem como seduzir a executiva e impor seu projeto artístico ao Estúdio. Assim, Michelle fica perdida na praia brasileira e sem inspiração. E ainda com seu marido/empresário no seu encalço para levá-la à força de volta aos seus compromissos comerciais. O que repercute de volta na própria vida de Emma que começa a descer ladeira abaixo.

O filme consegue articular as diferentes linguagens para cada uma dessas mídias/mundos paralelos: no universo de Emma a linguagem em live-action; no mundo de Edward a animação em rotoscopia; e no universo fílmico de Michelle, a estereotipagem proposital como fosse uma típica produção hollywoodiana – os clichês dos filmes de ação e os estereótipos brasileiros da selva, erotismo, praia etc.

A gnose de Fernando Pessoa

Uma citação retirada do Livro do Desassossego de Fernando Pessoa, presente em duas linha de diálogo, parece conduzir a narrativa: “Esculpir em silêncio nulo todos os nossos sonhos de falar”. 

É sabido que a filosofia hermética é uma das facetas mais importantes de Pessoa. Paralelo à sua obra poética, o poeta português fez uma constante reflexão mística-filosófica. Por exemplo, em Carta a Ofélia, Pessoa dizia que “o meu destino pertence a outra lei”. Para ele, a vitória sobre o mundo, a carne e o diabo dá-se no “Ego íntimo” para fugir da “simbologia confusa da vida”. E como regra para alcançar a Iluminação, Pessoa aconselha: “o silêncio”.

Nada mais Basilidiano (Basilides, filósofo gnóstico do início da Era Cristã): para ele, a forma de alcançar a gnose seria através do singular estado da consciência de “suspensão”: o esvaziamento da mente por meio do silêncio, anulando toda forma de linguagem, conceitos e simbolismos que criam a ilusão da realidade.

O salto de fé

Em nossas pesquisas sobre os arquétipos do Gnosticismo no Cinema, vimos que narrativas que exploram esse tema basilidiano apresentam o personagem do Viajante. Em linhas gerais, são personagens bem sucedidos social e materialmente. Mas sentem que há algo incompleto e errado nas suas vidas.

 

Wilson Ferreira

Wilson Roberto Vieira Ferreira - Mestre em Comunição Contemporânea (Análises em Imagem e Som) pela Universidade Anhembi Morumbi.Doutorando em Meios e Processos Audiovisuais na ECA/USP. Jornalista e professor na Universidade Anhembi Morumbi nas áreas de Estudos da Semiótica e Comunicação Visual. Pesquisador e escritor, autor de verbetes no "Dicionário de Comunicação" pela editora Paulus, e dos livros "O Caos Semiótico" e "Cinegnose" pela Editora Livrus.

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