Cinquentenário de morte de Manuel Bandeira – I

 

Cinquentenário de morte de Manuel Bandeira – I

por Gilberto Cruvinel

Iniciamos hoje a publicação de uma pequena série de artigos sobre o mais lírico e límpido  poeta brasileiro que obteve a acolhida emocionada e agradecida dos leitores com uma obra que ao falar de si, fala de todos, o mestre da técnica, o cultor da forma, assim como o iluminado de alumbramentos e de epifanias. Há cinquenta anos, em 13 de outubro de 1968, eternizava-se Manuel Bandeira.

A série inicia hoje com um artigo de memórias daquele que lhe foi contemporâneo, e também aluno, e por ele se sentiu estimulado a iniciar a carreira de tradutor de poesia. O poeta e tradutor Ivo Barroso nos conta o episódio do “sequestro” de Manuel Bandeira. Participará também desta homenagem o poeta, tradutor de poesia e professor de literatura Emmanuel Santiago. Arriscarei também algumas anotações sobre a poesia do maior amigo de Mário de Andrade, aquele de quem o autor de Macunaíma disse: “o Amigo que eu queria ter a meu lado na hora da minha morte.”

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O SEQUESTRO DE BANDEIRA

Ivo Barroso

Em 1954, o poeta Geir Campos tinha na Rádio Ministério da Educação um programa semanal chamado “Poesia Viva”, em que discorria sobre arte poética e grandes escritores, além de solicitar dos ouvintes que lhe enviassem seus poemas. Cada semana um deles era “premiado” com a leitura dos versos feita pelos locutores da emissora. Quando esses premiados alcançaram o número de doze, Geir os convocou para uma leitura personalizada em seu programa e prometeu fazer uma antologia reunindo os poetas escolhidos. Éramos: Albertus Marques, Alfredo Benvenuto da Silva, Edson Guedes de Moraes, Índia (Nídia) Rego, Jorge Cooper, Lia Feitosa de Castro, Maria Teresa Willaume, Marly Santos de Oliveira, Myrtes Riberte, Ruth Maria Chaves, Wilson Alvarenga Borges e eu. Como o livro, que seria editado pelo Serviço de Documentação do MEC, demorasse a sair, um dos premiados teve a idéia de reunir os doze poetas num clube para nos encontrarmos regularmente, a fim de palestrarmos e promover a edição de nossas “obras”. Tempos depois, em 1956, ocorreu-nos carregar com Manuel Bandeira até a nossa “sede social” (a casa de uma das nossas poetisas, Nídia Rego) onde, além de pedir seus conselhos, iríamos submetê-lo à tortura de ouvir os nossos versos e lhe fazer a clásica pergunta se devíamos continuar ou desistir. Bem humorado, o bom Manu, que tinha sido nosso professor de literatura hispano-americana na Faculdade Nacional de Filosofia, ali pertinho, nos recebeu em seu apartamento da Avenida Beira-Mar, 406, e se dispôs a ir conosco, de carro, até a Tijuca, onde um pequeno grupo nos esperava com suas laudas de poemas e alguns quitutes caseiros. Logo que chegou, fizemos ao poeta uma apresentação com estas palavras:

Caro poeta Manuel Bandeira:

Os jovens que o convidaram a esta reunião, incumbiram-me de expressar-lhe o nosso intuito e objetivo. Por isso, para que o senhor tenha uma ideia do lugar para onde foi “sequestrado” e da “tortura” que lhe intentaremos impor, devo dizer-lhe, inicialmente, que esta sala – o local do crime – é a sede do “Club dos 12”, gentilmente cedida pela sra. Índia Rêgo, dona da casa e nossa vice-presidenta. Em seguida, direi – para sua tranquilidade ou desespero maior – que os doze a que se refere o nome do club, não constituem nenhuma sociedade fechada, de propósitos sicários, mas um grupo de poetas daquela que poderíamos chamar de a “novississima geração”. Decerto, a esta altura, o senhor já deve estar rememorando os conselhos que o seu colega de grandeza o poeta Carlos Drumond de Andrade, em crônica naturalmente célebre, andou pontificando sobre a maneira mais estratégica de como se proceder em presença de escritores plumitivos. Mas, aqui, o senhor pode ficar com o espirito desprevenido, pois somos poetas de boa paz. Conhecemo-nos e formamos este clube, de intenções amigas, por inspiração do colega Edson Guedes de Moraes, nosso indispensável presidente, que nos agarrou à unha, um por um, num programa radiofônico dedicado à poesia, e mantido pelo Ministério da Educação, em sua emissora especializada. Ali obtivemos prêmios iniciais de classificação que muito nos incentivaram, principalmente depois que o Serviço de Documentação, do Dr. Simeão Leal, aceitou selecionar doze premiados para com eles editar uma antologia de novíssimos. Nós somos esses 12. Aliás, já somos esses 12 há algum tempo, mas a antologia não saiu até agora. É bom dizer que isso não representa uma reclamação e que não o trouxemos aqui para conhecer as nossas queixas; mas o fato é que não temos tido muita sorte e a antologia está sendo protelada de contínuo. Da última vez, quando os originais já estavam no prelo, a Imprensa Nacional foi forçada a interromper esse trabalho para enfrentar a árdua tarefa de produzir cédulas-únicas para as eleições passadas. Resultado: a antologia atrasou-se, mas em compensação, o Brasil, com isso, já teve vários presidentes*. Aí, para não perdemos o contato uns com os outros, fizemos o club. Editamos mensalmente um caderninho de poesia com as nossas últimas produções, no mimeógrafo, que é, por assim dizer, a imprensa dos escritores inéditos – e o distribuímos entre os sócios que já são muitos, e cujos trabalhos, selecionados, também aparecem naquelas páginas, juntamente com os doze.

Com isso, tenho como apresentados os executores deste “estado de sítio”. Agora direi porque o escolhemos para “vítima”, ou melhor, para a primeira de nossas “vitimas”.0 senhor é hoje, poeta Manuel Bandeira, uma espécie de instituição nacional. Mas, instituição nacional “par droît de conquête”. O tempo vai passando, vão surgindo os chamados “valores novos”, as rodinhas literárias fazem um alvoroço danado, dizendo que o livro do Fulaninho é lindo, que o poema do outro rapaz é uma coisa genial, mas tudo besteira – quando a gente quer mesmo sentir a Poesia, aquela coisa muito viva e muito simplicicade, que nenhuma definição consegue satisfazer, conforme o senhor mesmo já nos disse; quando a gente quer sentir aquela espécie de sopro renovado, aquela chuva madura caindo muito boazinha nas tardes consumidas; quando a gente procura no eu de hoje a serena mansidão do nós-criança, e lembramos o tempo grande, o mistério quente das palavras antigas, uns certos caminhos ladeados de sombras, uns amigos apagados no pranto, uma tristeza incutida nas coisas – aí então a gente se volta para o velho Manu e vai buscar a “Consoada”, o “Vou-me embora pra Pasárgada”, o “Profundamente”, enfim todos aqueles milagres de palavras que conseguiram captar tantos momentos de inefável. Parece que há no senhor, em sua vida, em seu jeitão calado, em seus livros, em tudo que recebe o seu toque, uma efusão de poesia – mas de uma poesia permanente, sem intervalo entre os poemas, – como se lhe fosse dado esse dom de continuidade poética numa ação criadora que o acompanha em todo o seu modo de existir. Como se o senhor, possuísse o encantamento de transformar as coisas todas da vida, as bonitas e as feias, as comuns e as incomuns, em grandes momentos de beleza, transformando-se com elas, transmutando-se na própria beleza das coisas. Foi por isso, nosso grande Manuel Bandeira, que o convidamos a esta reunião. Acontece que escrevemos os nossos poemas, pretendemos a Beleza, mas estamos sempre insatisfeitos com aquela que conseguimos produzir. Muitas indecisões nos atrapalham e a nossa compensação única são aqueles momentos em que pensamos na possibilidade de nos transformarmos, deixando cair as tristes penas feias de nossas dúvidas.

Bandeira, com sua voz meio velada, e a característica tossezinha com que pontilhava suas frases mais longas, mostrava uma discreta simpatia diante dos nossos versos e de uns eventuais salgadinhos. Em tom absolutamente informal, como numa conversa entre amigos, absteve-se de dar conselhos ou fazer julgamentos, indicando-nos apenas a leitura de autores fundamentais, deles excluindo, por modéstia, a sua própria poesia, que era, aliás, o motivo de nossa grande busca e maior veneração. Disse que a seleção feita por Geir tinha sido já um batismo, um atestado de qualidade que nos distinguia entre centenas de outros jovens que escreviam versos. Que ele próprio tinha tido dificuldades em publicar seus livros, contando com a ajuda da família para a edição dos primeiros. Mas se a poesia era de fato um impositivo em nossas vidas, uma experiência inelutável, então saberíamos continuar sem a pressa de aparecer, sem o desejo imediato de reconhecimento, apenas pela necessidade íntima e profunda de nos realizarmos no poema. Em nenhum momento demonstrou estar cansado de nossa apegada companhia e só se levantou quando nos oferecemos a levá-lo de volta. Muito educado sempre, ouvi-o arrematar a “visita” com a frase: “Obrigado pelos versos e pelos salgadinhos.” (Eu nunca soube se uns estavam à altura dos outros, mas sei bem que foi uma palavra sua que me levou à suprema coragem de traduzir Shakespeare).

(*) O momento político de então era incerto e agitado: entre a morte de Getúlio (1954) e a posse de Juscelino (1956), tivemos 3 presidentes: Café Filho, Carlos Luz e Nereu Ramos.

 

 

 

 

 

Redação

2 Comentários

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  1. Poeta gaiato

    Olha ai no texto muito bem-humorado dos poetas a palava vice-presidenta da qual a “sabia” Carmem Lucia disse não estar correto o uso…

    Manuel Bandeira quera um coquin 🙂 anda comigo assim como Cecilia, Manuel de Barros e Drummond. 

    Para mulheres (e homens)

    Teresa, se algum sujeito
    bancar o sentimental em cima de você
    E te jurar uma paixão do tamanho de um bonde
    Se ele chorar
    Se ele se ajoelhar
    Se ele se rasgar todo
    Não acredita não Teresa
    É lágrima de cinema
    É tapeação
    Mentira
    CAI FORA.

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