Cinquentenário de morte de Manuel Bandeira – II, por Gilberto Cruvinel

Manuel Bandeira e Carlos Drummond de Andrade

Cinquentenário de morte de Manuel Bandeira – II, por Gilberto Cruvinel

Manuel Bandeira: Entra, Irene, você não precisa pedir licença.

No segundo artigo da série que homenageia os seus cinquenta anos de eternidade, procurei mostrar alguns elementos que formaram o universo poético de Manuel Bandeira desde sua infância em Petrópolis e no Recife  e a característica marcante de sua poesia que é sua adesão fervorosa ao real imediato. A série iniciou com o artigo do poeta e tradutor de poesia Ivo Barroso: O sequestro de Bandeira.

 

 

Desligamento do Poeta

Carlos Drummond de Andrade

 

A arte completa,
a vida completa,
o poeta recolhe seus dons,
o arsenal de sons e signos,
o sentimento de seu pensamento.

Imobiliza-se,
infinitamente cala-se,
cápsula em si mesma contida.

Fica sendo o não rir
de longos dentes,
o não ver
de cristais acerados,
o não estar
nem ter aparência.
O absoluto do não ser.

Não há invocá-lo acenar-lhe pedir-lhe.

Passa ao estranho domínio
de deus ou pasárgada-segunda.

Onde não aflora a pergunta
nem o tema da
nem a hipótese do.

Sua poesia pousa no tempo.
Cada verso, com sua música
e sua paixão, livre de dono,
respira em flor, expande-se
na luz amorosa.

A circulação do poema
sem poeta: forma autônoma
de toda circunstância,
magia em si, prima letra
escrita no ar, sem intermédio,
faiscando,
na ausência definitiva
do corpo desintegrado.

Agora Manuel Bandeira é pura
poesia, profundamente.

Carlos Drummond de Andrade , “Desligamento do Poeta”.

 

Manuel Bandeira deixou um guia para sua poesia que é o presente que todo leitor deseja: o poeta que conta os segredos de seu percurso, do seu itinerário. O itinerário poético de Bandeira é o Itinerário de Pasárgada, o local ideal do poeta, onde é possível o “exercício de todas as atividades que a doença me impedia: “E como farei ginástica… tomarei banhos de mar!” Pasárgada é “toda a vida que poderia ter sido e que não foi”.

Bandeira, nascido no Recife, filho do engenheiro Manuel Carneiro de Souza Bandeira, viveu os primeiros anos de vida em diversas cidades, Rio de Janeiro com quatro anos, Santos, São Paulo, Rio de Janeiro novamente e volta ao Recife com seis anos. E, a partir de 1896, com dez anos, o poeta volta com a família para o bairro de Laranjeiras no Rio. Neste estado, a família passou diversas temporadas em Petrópolis e é aí que estão as primeiras lembranças de infância de Bandeira.

   O poeta Manuel Bandeira em Petrópolis, 1949

São essas lembranças que Bandeira utilizou para construir o poema “Pasárgada” que não foi construído, construiu-se no poeta, “nos recessos do subconsciente, utilizando-se aquelas reminiscências da infância – as histórias de Rosa, a minha ama-seca mulata, me contava, o sonho jamais realizado da bicicleta etc.” Por isso, essas reminiscências são fonte inesgotável de emoção e, a certa altura da vida, Bandeira identificou “essa emoção com outra, a de natureza artística.” E desde esse momento, descobriu o segredo do seu itinerário   em poesia. O conteúdo emocional dessas lembranças de sua meninice era o mesmo de certos momentos de sua vida adulta: “alguma coisa que resiste à análise da inteligência e da memória consciente, e que me  enche de sobressalto ou me força a uma atitude de apaixonada escuta.”

Os primeiros contatos de Bandeira com poesia em forma de versos foram, segundo ele mesmo, provavelmente os contos de fadas, em histórias da carochinha. Se lembrava como, aos seis anos, o menino Manuel experimentava intensa emoção poética com a cantiga da menina enterrada viva no conto “A Madrasta”

Capineiro de meu pai 
Não me corte os meus cabelos, 
Minha mãe me penteou,

Minha madrasta me enterrou, 
Pelos figos da figueira

Que o passarinho bicou. 
Xô passarinho!

Além dos contos de carochinha, também as cantigas de roda encantavam o poeta e algumas foram aproveitadas em seus poemas: “Roseira, dá-me uma rosa” (em “Evocação do Recife” no livro “Libertinagem”), “O anel que tu me destes” (em “O anel de vidro” no livro “Cinza das Horas”), “Bão, balalão, senhor capitão” (em “Rondó do Capitão” no livro “Lira dos Cinquent’anos”), “Mas para que tanto sofrimento” (em “Temas e Voltas” no livro  “Belo Belo”)

.

Rondó do Capitão
Manuel Bandeira

Bão balalão,
Senhor capitão,
Tirai este peso
Do meu coração.
Não é de tristeza,
Não é de aflição:
É só esperança,
Senhor capitão!
A leve esperança,
A aérea esperança…
Aérea, pois não!
– Peso mais pesado
Não existe não.
Ah, livrai-me dele,
Senhor capitão!

8 de outubro de 1940

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https://www.youtube.com/watch?v=Y8DkR8dWZGY]

Ney Matogrosso (no grupo Secos & Molhados) canta “Rondó do Capitão” de Manuel Bandeira

 

O maior incentivador e professor de Bandeira para cultivar nele a sensibilidade poética na infância foi seu pai, “grande improvisador de nonsense líricos, o seu jeito de dar expansão ao gosto verbal nos momentos de bom humor.” Segundo Ribeiro Couto, 

 o Dr. Manuel Carneiro da Souza Bandeira não era só engenheiro notável: era também, na intimidade,, um conversador adorável, com uma extraordinária veia humorística, sabendo dizer uma infinidade de versos e histórias populares com um perfeito dom de imitação prosódica

(Ribeiro Couto, Dois Retratos de Manuel Bandeira)

Outras impressões poéticas da primeira infância foram os  primeiros livros de imagem: João Felpudo, Simplício olha para o ar, Viagem à roda do mundo numa casquinha de noz.

Dos seis aos dez anos no Recife construiu-se para Bandeira sua mitologia. Os tipos com que ele conviveu, um Totônio Rodrigues, uma d. Aninha Viegas, a preta Tomásia, velha cozinheira da casa do avô Costa Ribeiro, tiveram para o poeta a mesma consistência heroica dos personagens de poemas homéricos. O espaço desta mitologia bandeiriana era formado pela “Rua da União, com os quatro quarteirões adjacentes limitados pelas ruas da Aurora, da Saudade, Formosa (atual Av. Conde de Boa Vista) e Princesa Isabel.” A Rua da União foi a Tróada de Bandeira e “a casa do avô, a capital desse país fabuloso.” Como sabemos da mitologia grega, a Tróada foi o ponto de encontro no Mar Egeu onde a armada dos reis helenos se juntou para atacar Tróia.

 

Rua da União…
Como eram lindos os montes das ruas da minha infância
Rua do Sol
(Tenho medo que hoje se chame de dr. Fulano de Tal)
Atrás de casa ficava a Rua da Saudade…
…onde se ia fumar escondido
Do lado de lá era o cais da Rua da Aurora…
…onde se ia pescar escondido

(“Evocação do Recife” no livro “Libertinagem”)

 

[video:https://www.youtube.com/watch?v=ShUcinuIW7A

Manuel Bandeira declama “Evocação do Recife”

.

A doença e a vocação de poeta

Em 1903, Bandeira vai para São Paulo para estudar na Escola Politécnica, onde, por influência do pai, iria fazer o curso de engenheiro-arquiteto. Em fins de 1904, Bandeira estava em férias em Itaipava, perto de Petrópolis. Ficou sabendo que estava tuberculoso. Abandonou os estudos, voltou ao Rio de Janeiro e começou uma vida de repouso e busca de cidades com clima propício para o tratamento do mal. Uma  mudança súbita e inesperada.

 

Sou bem-nascido. Menino,
Fui, como os demais, feliz.
Depois, veio o mau destino
E fez de mim o que quis.

.

Veio o mau gênio da vida,
Rompeu em meu coração,
Levou tudo de vencida,
Rugia e como um furacão,

.
Turbou, partiu, abateu,
Queimou sem razão nem dó –
Ah, que dor!
Magoado e só,
– Só! – meu coração ardeuu:

.
Ardeu em gritos dementes
Na sua paixão sombria…
E dessas horas ardentes
Ficou esta cinza fria.
– Esta pouca cinza fria.

.(“Epígrafe” no livro “Cinza das Horas”)

 

O sonho de ser arquiteto foi turbado, partido e abatido pelo “mau destino”. Não fosse esse destino, o poeta seria arquiteto? A leitura ingênua e rasa diria sim, mas havia um destino maior e prévio ao “mau destino”: o de poeta, na observação precisa do poeta baiano Ruy Espinheira Filho (“Forma e Alumbramento”). “O menino que desejava construir casas e edifícios, já era, inconscientemente, o poeta Manuel Bandeira.” Destino definido por Mário de Andrade quando dizia que o artista é um fatalizado. A poesia em Bandeira vinha de longe, “desde as mais remotas emoções da infância”, como vimos.

Portanto, a condição de poeta se teria estabelecido em qualquer situação, tivesse Bandeira sido arquiteto ou não. Em entrevista a Homero Senna, Bandeira declarou:

 

– Acha que teria dado um bom arquiteto?

– Acho que sim, pelo menos do ponto de vista funcional.

– Mas pode-se dizer que tivesse vocação para essa profissão?

– Não creio que a arquitetura fosse a minha vocação. Em rigor, não sinto, nunca senti vocação para coisa nenhuma, o que considero uma infelicidade.

(Homero Senna, “Viagem a Pasárgada”, in “República das Letras”)

 

Quando o artista diz que se tornou artista porque não tem vocação para nada, esse “se tornar”, segundo Ruy Espinheira Filho, “não faz sentido, porque a condição de artista antecede a tudo. A arte não é uma inclinação, uma tendência, mas uma essencialidade. Assim Manuel Bandeira não se sentia com vocação para nada por já se encontrar repleto da sua própria condição de poeta.” Condição muito mais forte e acima de qualquer decisão de vontade.

 

O poeta “menor”

Criou-me, desde eu menino
Para arquiteto meu pai.
Foi-se-me um dia a saúde…
Fiz-me arquiteto? Não pude!
Sou poeta menor, perdoai!

(“Testamento”, in Lira dos Cinquent’anos)

 

Torno a repetir o verso de Banville: “Je suis um poète lyrique!”. Sim, sou sofrivelmente um poeta lírico; porque não pude ser outra coisa, perdoai …

                                           ( in Itinerário de Pasárgada)

 

A muitas vezes repetida afirmação de Bandeira como poeta menor não é, está claro, artifício de falsa modéstia. Antes é a referência aos temas mais subjetivos, ligados à vida cotidiana, ao lirismo das coisas do dia a dia por oposição aos temas relacionados às grandes abstrações filosóficas.

 

“o metal precioso eu teria que sacá-lo a duras penas, ou melhor, a duras esperas, do pobre minério das minhas pequenas dores e ainda menores alegrias.”

(“Poesia e verso”, in Manuel Bandeira, “Poesia e prosa”)

 

José Guilherme Merquior dizia que menor, em Bandeira, “só foi mesmo seu gênero predileto: a música de câmera do poeta curto, sem jeito de ode e sem fôlego épico. Neste formato, ele nos deixou algumas dezenas de textos (metrificados ou não) simplesmente perfeitos.”

Essa poesia não épica, de fôlego curto, no entanto, alcança uma transcendência surpreendente. Uma das componentes marcantes da poesia de Bandeira é, na crítica iluminada e iluminadora de Antônio Cândido, “sua adesão à realidade terrena, limitada, dos seres e das coisas, sem precisar explicá-los para além da sua fronteira; mas denotando um tal fervor, que bane qualquer vulgaridade e chega, paradoxalmente, a criar uma espécie de transcendência, uma ressonância misteriosa que alarga o âmbito normal do poema. O enterro que passa ante os homens indiferentes, conduzindo a matéria “liberta para sempre da alma extinta” tem a gravidade religiosa frequente nesse poeta sem Deus, que sabe não obstante falar tão bem de Deus e das coisas sagradas, como entidades que povoam a imaginação e ajudam a dar nome ao incognoscível.”

Quando o enterro passou
Os homens que se achavam no café
Tiraram o chapéu maquinalmente
Saudavam o morto distraídos
Estavam todos voltados para a vida
Absortos na vida
Confiantes na vida.

Um no entanto se descobriu num gesto largo e demorado
Olhando o esquife longamente
Este sabia que a vida é uma agitação feroz e sem finalidade
Que a vida é traição
E saudava a matéria que passava
Liberta para sempre da alma extinta.

(“Momento num Café”, in “Estrela da Manhã”)

A genialidade desse jogo entre a adesão ao real imediato e, ao mesmo tempo, a produção da transcendência poética se dá, como em nenhuma outra matéria e de  maneira tão fecunda quanto na visão do amor. Antônio Cândido nos mostra que o lirismo amoroso de Bandeira “engloba o jogo erótico mais direto e, simultaneamente, as  fugas mais intelectualizadas da louvação. E o leitor percebe que a fervorosa transcendência nasce precisamente do fato de abordar a ternura do corpo com tão grande franqueza.” É o avesso de uma atitude espiritualista. “ O nosso poeta recomenda à amada que esqueça a alma, porque ela “estraga o amor”.”

Se queres sentir a felicidade de amar, esquece a tua alma.
A alma é que estraga o amor.
Só em Deus ela pode encontrar satisfação.
Não noutra alma.
Só em Deus — ou fora do mundo.
As almas são incomunicáveis.

Deixa o teu corpo entender-se com outro corpo.

Porque os corpos se entendem, mas as almas não.

(“Arte de Amar”, in “Belo Belo”)

É essa adesão fervorosa à realidade material, nos ensina Cândido, que explica a espontânea naturalidade da poesia de Bandeira que tem a simplicidade do requinte. “O amor encarado a partir da experiência do corpo; o espetáculo do mundo visto pela descrição de seus aspectos imediatos – determinam uma familiaridade que o poeta manifesta em tons menores, quebrando a grandiloquência, “Sou poeta menor, perdoai!”, remetendo o peso do drama para os bastidores.”

“A Arte de Amar” e “Momento num Café” são exemplos de que o amor e a morte são trazidos, segundo o crítico, “ao nível da experiência diária, colorindo-se de uma ternura cálida, dando força comunicativa a um verso que nem sempre é fácil, mas que tranquiliza o leitor pela humanidade fraterna com que organiza a desordem e o tumulto das paixões, conferindo-lhes uma generalidade que transcende a condição biográfica.”

E como isto é possível ? ´Graças às virtudes da forma desta poesia, “baseada na capacidade de síntese, e mesmo de elipse, que condensam a expressão e a reduzem ao essencial, domando o sentimentalismo que por vezes rondou-lhe os primeiros livros. E assim, segundo Antonio Cândido, Manuel Bandeira se torna o grande clássico da nossa poesia contemporânea.

No próximo artigo, abordaremos a questão da arte versus artesanato e a questão dos temas poéticos para Manuel Bandeira. E nos deteremos naquele que foi talvez o grande tema da vida inteira do poeta pernambucano: sua relação com a morte.

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Fontes:

  1. Carlos Drummond de Andrade , As impurezas do branco, Rio de Janeiro: José Olympio, 1973.
  2. Manuel Bandeira, “Itinerário de Pasárgada”, São Paulo: Global Editora, 2012
  3. Julio Castañon Guimarães, “Por que ler Manuel Bandeira”, São Paulo: Globo, 2008
  4. Ribeiro Couto, Dois Retratos de Manuel Bandeira, Rio de Janeiro: Livraria São José, 1960.
  5. Manuel Bandeira, “Estrela da Vida Inteira”, Rio de Janeiro: Livraria José Olympio Editora, 1988.
  6. Ruy Espinheira Filho, “Forma e Alumbramento”, Rio de Janeiro: José Olympio: Academia Brasileira de Letras, 2004.
  7. Homero Senna, “Viagem a Pasárgada”, in “República das Letras”. Rio de Janeiro: Gráfica Olímpica, 1968, p.57.
  8. José Guilherme Merquior, “Manuel Bandeira: A Fonte de Todos”, in “Homenagem a Manuel Bandeira”, org. de Maximiano de Carvalho e Silva. Niterói, RJ: Sociedade Sousa da Silveira, Rio de Janeiro: Monteiro Aranha: Presença Edições, 1989.
  9. “Poesia e verso”, in Manuel Bandeira, “Poesia e prosa”, v.II. Rio de Janeiro: Aguilar, 1958.

 

 

Redação

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