A dialética da libertação no filme “O Golpista do Ano”

Todas as interpretações dos críticos sobre “O Golpista do Ano” (I Love You Phillip Morris, 2009) parecem se esquecer de uma frase dita pelo protagonista que é o grande mote do filme: “ser gay é realmente muito caro!”. A ironia social contida nessa frase refletiria uma espécie de “dialética da libertação” recorrente em cada movimento de contestação: dominação-rebelião-dominação. Assim como na História cada contestação a um sistema de dominação traria dentro de si a contra-revolução, da mesma forma o movimento progressista LGBT ironicamente se transformou no modelo ideal de consumidores em uma sociedade de consumo globalizada: consumidores perfeitos porque liquidaram simbolicamente a ordem patriarcal estática e anacrônica para os propósitos de um novo capitalismo caracterizado pela fluidez generalizada de valores, corpos e informação.

“A indignação contra a manipulação é o último scoop patrocinado pela ideologia” (Massimo Canevacci, Antropologia do Cinema)

Steven Russell (Jim Carrey) sempre foi homossexual. Mas todas as características desejadas de uma vida familiar bem sucedida ajudaram a encobrir isso: ex-oficial da polícia, honesto, pai de família exemplar, bem-casado e religioso. Mas um violento acidente de carro sacode sua vida o suficiente para decidir não mais sustentar a farsa e joga tudo para o alto para fugir no mundo e assumir seu verdadeiro Eu, que é ser um homem gay.

Muda-se para Miami onde conhece seu namorado chamado Jimmy (Rodrigo Santoro) e passa a viver um luxuoso “gay life style” desfilando com coloridas roupas de grife e conduzindo dois mini pinchers através de alamedas repletas de bares, restaurantes e lojas. E qual o único problema dessa nova vida? “Ser gay é realmente muito caro!”, conclui Steven.

Para sustentar tudo isso Steven embarca em uma vida de fraudes para conseguir dinheiro fácil. Começa simulando um acidente para ganhar uma indenização para depois partir para fraudes em cartão de crédito e assim por diante até parar na prisão.

Como um grande manipulador, Russell mantém seus privilégios na prisão com refeições à base de camarão e chocolate. Lá se apaixona loucamente por Philip Morris o que fará Russell manter sua trajetória de falcatruas querendo dar ao seu amor caros privilégios. Fora da cadeia falsifica um impressionante currículo para virar diretor financeiro e aplicar altos golpes em investimentos de curto prazo.

Ou seja, por conta do golpismo compulsivo Russell voltará à prisão diversas vezes, o que fortalecerá ainda mais os laços afetivos com Morris.

Várias interpretações foram feitas sobre a narrativa do “Golpista do Ano” que associa a amoralidade com a afirmação homossexual. Primeiro, e o mais óbvio, que o filme teria uma tendência à homofóbica.

Outra, que o filme é um pesadelo aos reacionários ao mostrar um mundo onde os gays teriam mais privilégios do que eles.

Há ainda aqueles que veem no filme um irônico libelo contra o teatro social que impediria todos nós de assumirmos nossos “eus”: Steven e Morris parecem que só foram realmente felizes na cadeia. Fora dela, Steven tem que assumir uma galeria de disfarces e papeis (jogar golfe com chefes e fingir ter uma noiva) que impediria a todos nós de sair do armário.

Mas todas as interpretações, preocupadas que estão somente com as questões de gênero, esquecem de uma simples frase que é o grande mote do filme: “Ser gay é realmente muito caro!”.

A “Dialética da Civilização”

Essa constatação de Steve Russell sintetizaria a grande ironia de “O Golpista do Ano”: o protagonista se liberta da questão do gênero sexual para cair na dominação da sociedade de consumo – ele introjeta a relação fetichista com as mercadorias (seu amor por Morris só pode ser expresso por meio do luxo e ostentação), a amoralidade (golpes onde os fins justificam os meios) e o hedonismo (liberto das preocupações futuras que envolvem filhos e família ele apenas se preocupará com o presente), as principais categorias do consumismo.

Para Herbert Marcuse, todo 
sistema de dominação parece 
já conter a rebelião

Indo mais além, essa frase também resumiria o que poderíamos chamar de “dialética da libertação” presente em todos os movimentos de emancipação das chamadas minorias (LGBT – Lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transgêneros – feministas etc.) que poderia ser assim esquematizado: dominação-rebelião-dominação. A cada movimento de constestação a um sistema dominação (seja sexual, político, econômico etc.), a cada rebelião segue-se uma contra-revolução e no final uma restauração. A luta dos oprimidos parece sempre resultar logo depois num sistema melhor e mais amplo de dominação.

O pensador Herbert Marcuse em seu livro “Eros e Civilização” talvez tenha sido aquele que melhor explicou essa dialética perversa que ele descrevia como “dialética da civilização”:

“No nível social, às revoluções e rebeliões recorrentes seguiram-se contra-revoluções e restaurações. Das revoltas de escravos no mundo antigo à revolução social do nosso tempo, a luta dos oprimidos terminou no estabelecimento de um novo e melhor sistema de dominação; o progresso teve lugar através do aperfeiçoamento da cadeia de controle. Cada revolução foi o esforço consciente para substituir um grupo dominante por outro, mas cada revolução desencadeou também forças que ‘ultrapassaram a meta’ (…) em todas as revoluções parece ter havido um momento histórico em que a luta contra a dominação poderia ter sido vitoriosa… mas o momento passou. Nesse sentido, todas as revoluções foram revoluções traídas” (MARCUSE, Herbert. Eros e Civilização. R. de Janeiro: Zahar Editores, 1981, p.92).

Se o movimento LGBT postula direitos e a libertação em relação a entidades opressivas bem definidas e concretas como a ordem patriarcal, o preconceito e a intolerância de instituições locais, por outro lado ele é absorvido e celebrado por instituições mais abstratas de controle e dominação: o domínio do antigo pai repressivo foi expandido para o domínio da própria sociedade de consumo. Um poder mais racional porque liberado das antigas crenças religiosas e preconceituosas.

O consumidor ideal

Segundo dados do IBGE o consumo gay é em média 30% superior ao consumo heterossexual. O chamado turismo gay (de hotéis de luxo a cruzeiros) cresce a cada ano em cifras impressionantes: são mais de 4,5 bilhões de dólares por ano.

Donos de bom poder aquisitivo, fiéis às suas marcas preferidas e muito interessados em inovação, gastam até 30% mais em bens de consumo, 43% mais com lazer e 64% a mais com cosméticos dos que os heterossexuais, segundo pesquisa da consultoria InSearch. Potencial que se explica principalmente pela diferença no estilo de vida – como a maior parte deles não tem filhos, sobra mais dinheiro para viagens, roupas,lazer e investimento no desenvolvimento pessoal.” (“Universo Gay e o Mundo dos Negócios”, Época – 13/08/2012).

O sistema econômico atual é caracterizado pela fluidez e a circulação máxima de bens, corpos e identidades. Papel moeda, identidades rígidas e agências de socialização locais (família, escola e igreja) são anacrônicos em um sistema cujos fluxos tornaram-se forma dominante de produção de valor. Dinheiro eletrônico, capital volátil e atomização de indivíduos liberados dos laços familiares, de nacionalidade ou de gênero são hoje formas estruturalmente desejáveis e necessárias para a promoção de uma sociedade de consumo generalizada.

Preconceitos e intolerâncias são regressivos em termos civilizatórios, mas (e essa é a ironia) são igualmente entraves econômicos para o capitalismo de livre fluxo de valores e informação.  Por isso, as revindicações pelos direitos dos LGBT tem um duplo vínculo: simultaneamente é a quebra de um esquema de dominação patriarcal e, por outro lado, a transformação dessas “minorias” em novos tipos de consumidores – mais exatamente, modelos ideais de consumidores para uma economia globalizada, desapegados de qualquer vínculo familiar, patriarcal, nacional ou de gênero sexual.

Luis Nassif

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