Com a ficção se tornando realidade, mais que nunca é hora de resistir, por Luis Nassif

Os fantasmas de Blade Runner e de tantos filmes de ficção que conseguiram, através da arte, antecipar o futuro, continuarão me assombrando. E trazendo mais forças para enfrentar os zumbis reais, que se aboletaram no poder.

De repente, a ficção chega à realidade. Os fantasmas com os quais o cinema teimava em nos assombrar, desde Blade Runner, se materializam nas expectativas trazidas pela coronavirus. Em breve, as ruas serão tomadas por multidões de desassistidos, zumbis caminhando sem rumo e sem assistência, levando pragas para os bem-nascidos.

Não adiantarão fuzis, seguranças por trás das casamatas dos condomínios. Do lado do governo e dos bem-nascidos, sempre serão vistos assim, homens-zumbis, não pessoas, não indivíduos, não cidadãos com vontade e emoção, com toda gama de emoções daqueles do lado de cá da trincheira e com uma solidariedade que só frutifica na necessidade.

Seu abandono será o alimento dos vírus que invadirão as trincheiras da classe média, virão pelo ar, como anjos vingadores, trazidos pela empregada doméstica que não será dispensada, pelos entregadores de comida, pelos seguranças, pelo motorista do Uber, pela babá vestida de branco. A coronavirus apenas antecipou a catástrofe provinda do fim da solidariedade e transformou a ficção em realidade.

De minha parte, tornei-me população de risco, pela idade e por uma cirurgia recente. E minhas meninas se tornaram potencialmente transmissoras, devido a casos registrados na USP e no Mackenzie.

Fico assim, isolado em casa, com a companheira guerreira, mas prenhe de saudades e de abraços e com a preocupação de pai e avô impotente, não apenas em relação à noite tormentosa, em que a coronavirus se instalou no país, mas em relação a um futuro tormentoso, a partir do momento em que vírus de toda espécie, provindos dos porões da ditadura, das tocas dos terraplanistas, dos Escritórios dos Crimes, das milícias e do crime organizado, passaram a comandar o país.

De repente, Bolsonaros 00, 01, 02, 03, 0n deixam de ser a humilhação, a desmoralização universal do país, e se tornam ameaças diretas ao futuro das minhas meninas, da minha família, da sua família, da família brasileira, responsáveis diretos pela insegurança que poderá acompanhar, daqui para frente, todas as gerações.

Como ficarão nossas crianças nesse país conflagrado e dirigido por um grupo cujo único objetivo é o poder absoluto, sem projeto, sem comando, sem respeito sequer ao princípio fundador das civilizações: o direito à vida?

O que serão das minhas meninas, dos filhos das minhas meninas, entrando na grande noite sem fim de um país à deriva? Daqui a algum tempo, não serão apenas zumbis caminhando sem destino, mas milícias armadas executando zumbis e aqueles que ousarem enfrentar o caos.

A companheira me lembra do final de Blade Runner, quando o replicante se despede:

– Todos esses momentos…se perderão…no tempo…como…lágrimas…na chuva. Hora… de morrer

Lágrimas são expressão individual da emoção e se perderão na chuva torrencial que juntará andar de cima e parasitas de uma sociedade que nunca conheceu a solidariedade social. Daqui de casa, preso pela quarentena, imagino os riscos dos que não conseguem se defender, os zumbis das periferias, os brasileiros de carne e osso, de coragem e emoção, sem recursos para interromper o trabalho e se resguardar, sem alternativas ao transporte coletivo abarrotado, sem condições de manter as crianças em casa e garantir o sustento com o trabalho.

Os fantasmas de Blade Runner e de tantos filmes de ficção que conseguiram, através da arte, antecipar o futuro, continuarão me assombrando. E trazendo mais forças para enfrentar os zumbis reais, que se aboletaram no poder.

Pelo futuro das minhas meninas, das meninas e rapazes do Brasil, mais do que nunca é hora de resistir.

 

 

 

 

 

Luis Nassif

36 Comentários

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    1. Concordo plenamente. Crônica espetacular porque demonstra com clareza o caminho quase inevitável traçado pelas bestas que assolam um projeto de pais que insiste en resistir.

  1. Não somente resistir, mas também atacar. Nossos inimigos não conhecem nem reconhecem argumentos morais, portanto, temos que tomar as ruas e palácios. Somente assim a noite deixará de ser eterna.

  2. Um dos efeitos desta insanidade de termos (muitos) sociopatas no (des)governo deste riquíssimo país, mas inacreditavelmente pobre nação é a disseminação da sociopatia “cultural”.
    Foi assim com o nazismo de Hitler, que acrescentou à população natural de psicopatas milhares de sociopatas culturais, que assimilaram como verdadeiros e legítimos os comportamentos e atitudes que tantos seres humanos eliminaram sem razão compreensível, dó, piedade ou solidariedade.
    Para nosso alívio, é certo que Bozzo não é Hitler, braZil não é Alemanha, não chegamos (até agora) a uma ditadura de partido único e muitos eleitores deste estrupício já realizaram seu erro.
    Outros ainda estão em estado de negação, quando começam a perceber a realidade mas não a aceitam e tornam-se mais “intensos” ainda em seus comportamentos e atitudes.
    Um resquício disso infelizmente sempre sobrará na sociedade, assim como temos hoje ainda os incríveis órfãos e saudosos da ditadura e das “marchas pela família com deus pela liberdade” (aquela que logo em seguida foi, digamos, “relativizada”, para não dizer suprimida à la carte).
    Espera-se que isso passe, não sem os imensos danos já causados, alguns tomando longo tempo e enorme esforço para serem neutralizados e superados.
    E que desta horda sombria, o último a sair acenda a luz.
    Logo!

  3. Nassif, ou Luiz, como diz o primo, bonita crônica. Como vc, recluso e assistindo a estupidez e ignorância sendo expostos como valores a serem defendidos. E a citação do Blade Runner, como disse, uma obra de arte, mais que apropriada.
    Se me permite citar outra – Umberto Eco em O Pêndulo de Foucault – prá que mostrar a está turba o que é este governo, eles são muito céticos para acreditar na verdade.

  4. Bonito, Nassif. Eu penso nas favelas e cortiços desse país. Nas prisões, nos asilos e nas ruas onde estarão as vítimas maiores desta catástrofe humanitária. E estou triste pela Itália onde meu genro está confinado. Ontem ele me disse, o primeiro ministro italiano fez um pronunciamento pela tv anunciando a chegada de médicos chineses, cubanos e ora vejam, venezuelanos. Os “malditos comunistas “ foram os únicos países que ofereceram ajuda na crise humanitária italiana. O portal da Itália traz a bandeira desses países, agradecimento e a informação que a União Europeia virou as costas para a Itália nessa crise. Com o governo imbecil que temos nem com a ajuda dos comunistas poderemos contar.

  5. Nassif, gostaria de ouvir você comentando da cosmovisão abrâmica, que cria um não ser(o corpo castrado por vestes) em um não lugar (expulsão do “paraíso”) em luta contra seu próprio Deus na busca pelo fruto proibido: a vida eterna. Essa cosmovisão espelha a civilização. Povos originais são portadores milenares práticos de outras possíveis cosmovisões. Vivemos esse tempo de barbarie para que não questionemos a Inteligencia Artificial no
    horizonte. A humanidade precisa de outra cosmovisão. A humanidade precisa vencer a civilização. Urgente!

  6. Prezado Nassif,

    Não tenho bunker com estoque e precisarei sair de vez em quando com todo o cuidado.

    Li o artigo abaixo e me decidi a permanecer em quarentena o máximo que conseguir.

    https://thesaker.is/how-to-treat-coronavirus-infection-covid-19/

    Se alguém conhece russo poderia traduzir direto para o português. Se tem médicos e pessoal da saúde também pode deixar seu parecer. Sou leigo mas me convenceu. Parmênides, acho eu, dizia que a persuasão acompanha a verdade.

  7. O futuro é o agora,nos fazendo andar desviando dos buracos e pedras para não cair de imediato, não sabemos se chegaremos no fim do caminho mas é preciso seguir com a esperança de poder encontrar alguém ou algo no final!
    Obs:O vídeo do Bolsonaro da convocação diz muito das técnicas de informação usadas por ele desde o começo,mostram qualidades q ele não tem e q são justamente os seus defeitos e maiores críticas,com isso querem esconder suas fraquezas e anular os seus adversários, não à toa se apropriam da bandeira Brasil mesmo diante de tanto entreguismo,puro diversionismo(Quem poderá ser contra o próprio País?),só querem a mentira certa na hora certa,sempre estão na ofensiva(técnica militar?) como forma de prevenção de ataques e para minar os oponentes, não param,senão o povo começa a pensar,olhar para o lado e…é preciso combater isso tudo com a verdade “certa”na hora certa, comunicação é tudo e se não querem “ouvir” problema é deles,relaxem,vamos lá se equilibrar na.corda bamba Brasil quase ditadura, é preciso ser mais eficiente!
    Obs2:Esse governo é de mimimi só “metem o louco”Guedes q o diga com suas reformas e aí o Brasil crescerá 1000 por cento, Bolsonaro e o seu respeito à democracia e não convocação a atos,o governo da madeira(de cara de pau ou porrete de madeira nas.costas.do povão,tanto faz!)
    Obs3:Nassif as Instituições estão com a cueca melada e eu tô perdendo a paciência já penso q o militares fechem logo essa bagaça,lembra como o Mourão iniciou o golpe de 64?Só no xaveco,agora tá acontecendo a mesma coisa, estão “cooptando”os melas cuecas do congresso só no xaveco,realmente é um golpe sem dar um golpe,um roubo sem arma !!!

  8. Necropoder vs biopoder, senão vejamos:

    Estamos submetido ao necropoder nos niveis: mundial (Trump), nacional (BozoNazi), estadual (witzel), municipal (Crivella).

    Os nossos inimigos estão no poder

    E ai a natureza, sabia que é, diz através do coronavirus: por causa da distancia entre as pessoas e coisas, e entre as Instituicoes e povo e outras distancia até então não percebida, vim para que chorem o amor derramado : ou leite derramado: tanto faz

  9. Nassif,
    Este é o meu sentimento desde há alguns meses, mais precisamente por ocasião da reforma trabalhista agora complementada com esta incrível reforma da Previdência.
    Numa situação de desemprego nunca vista e nenhum programa de governo para a economia nacional, situação sem comando que passou a provocar um vazamento diário de dólares diariamente para nada, a torrar a reserva de 500 bilhões de dólares criada pela “guerrilheira” DRousseff em ritmo alucinado, com o desinvestimento e fuga de capitais que já indicam muita dificuldade para os próximos anos, até porque a imagem do país no exterior consegue ser a pior possível, é por este conjunto de absurdos que não consigo ver qualquer perspectiva para aqueles com menos de trinta anos de idade.
    Pra a minha decepção, as tais reformas passaram sem que a sociedade tivesse sido capaz de reagir, como ocorreu na Argentina e Honduras. Pra mim, isto tudo é desesperador, pois há cerca de dez anos o brasilsil estava em magnífica forma, tão magnífica que foi preciso juntar forças para enfiar um golpe canalha pela goela de todos, com consequências que ainda não se sabe até onde poderão chegar.

  10. Tenho tido pensamentos sombrios nesses dias difíceis mas há também algo positivo no ar: bolsonaro já está desmoronando.

    É nítido e palpável um cansaço com o estilo bolsonaro.

    Força Nassif!

  11. Um pouco pessimista demais, mas reflete o momento de impotência dos brasileiros diante de duas grandes ameaças: o poder absoluto ou fascistóide e o vírus. Que a Fortuna tenha pena de nós.

  12. PARABÉNS pela crônica. Todo o seu trabalho é primoroso. Me considero um progressista. Trabalhei pela eleição tanto de Lula como de Dilma. Fui sindicalista, apesar de não concordar com a ingerencia partidária nos sindicatos. Mas tenho que concluir que estas porcarias que hoje ocupam o poder, lá esta8por força do voto da maioria da população. Dirão que foram manipulados e enganados, e o foram. Dirão que aproveitaram da falta de educação, e desta deriva a falta de discernimento, também concordo. Dirão que tangeram os eleitores como gado, na direção de um salvador da pátria, mais uma vez estarão certos. Mas de quem é a culpa? Deles? Não, a culpa é nossa, desta também medíocre e elitista esquerda, que se assenhorou da verdade, do entendimento das necessidades da massa. Com medo deixamos de formar novas liderancas, de dar educação para nosso povo, de educar politicamente as massas. Afinal um povo que pensa.pode tomar as rédeas de seu destino. A prova é que tivemos em nossas mãos a maioria das entidades representativas, e nada fissemos. Ou melhor, não fissemos muito diferente do que fazem hoje, manipulamos, tolhemos a palavra de quem de nós discordava, apesar de poder não educamos. Contínuo acreditando no Brasil, no seu povo, no utópico anarquismo (apesar de hoje optar pela social democracia com meio de um dia alcança-lo), mas desacredito das lideranças tacanha que nos levaram ao descalabro por que hora passamos.

  13. Triste. Muito triste mas, numa visão realista, é o que temos a esperar a curto prazo. Só nos resta torcer (e pedir) que Deus seja, realmente, brasileiro e a realidade não venha a ser tão catastrófica. Mas isso não nos permite aderir ao pânico nem nos dispensa de resistir.

  14. Que desespero, e porque sempre atacando a classe média ? Pelo que escreveu você é classe média. Então porque esse derespeito ? Há, você deve ser da universidade federal, que apoia os preceitos Granmaci ou estou enganado ? Ou você é Democrático de verdade ? Então porque não respeita a vontade da maioria ? Bolsonaro é o culpado do corona vírus ? Há você deve ser um esquerdalha que defende assaltantes do dinheiro público ? Não entendeu ainda que vocês perderam ? Que o PT/Cia não mais voltarão ao poder. Para de chorar e atacar a classe média, vai cuidar da tua saúde e ser mais democrático.

  15. Nassif, com Bolsonaro participando e incentivando as (pequenas) aglomerações nazifascistas como as de ontem, que classificam a mídia que apoiou o golpe de “comunista” e pregam o fechamento do Congresso, tudo indica que o autismo coletivo que colapsa a nação irá crescer; favorecendo a consumação dos planos de Guedes para nos converter no maior campo de concentração planetário. Como as medidas provisórias que desde o início do ano asfixiam ainda mais o SUS não foram derrubadas, tudo indica que entre meados de abril e maio o coronavírus chegará ao seu clímax, atingindo os mais de 30 milhões de brasileiros com mais de sessenta anos — justamente os sobreviventes da ditadura de 64 que nos anos 70 enfrentaram a epidemia de meningite que dizimou milhares de crianças com até cinco anos de idade, numa época em que os militares ocupavam as redações dos principais jornais, impedindo a divulgação da existência da epidemia. Quando esta atingiu os jardins da zona Sul paulistana, porém, a elite reagiu e foi criada na Fiocruz o Instituto de Biotecnologias em Imunobiológicos (Bio-Manguinhos), que passou a fabricar as vacinas contra a meningite meningocócica que só no Governo Lula passaram a ser aplicadas em toda população, trinta anos depois de terem sido aplicadas nas crianças mais ricas, graças ao fato do Instituto Mérieux ter construído uma fábrica .para socorrer apenas os infantes mais ricos do Brasil. Neste 2020, porém, o que fazer se metade dos 45 mil leitos de UTI pertencem aos planos de saúde mais caros, ficando os 150 milhões de usuários do SUS com a outra metade? Como acreditar que o confinamento domiciliar dos enfermos resolverá a crise que se avizinha, sabendo-se que em nossas gigantescas periferias as submoradias se interpenetram umas às outras, impedindo qualquer isolamento da população de risco, até pelo simples fato do Governo estar  fechando escolas, creches e centros desportivos que abrigam nossos infantes e adolescentes, depois de dar uma semana de prazo para seus pais providenciarem babás, cuidadores e acomodações condignas sem idosos por perto? Como o Governo paulista proíbe aglomerações com mais de 500 pessoas, todas as escolas poderiam continuar abertas, em esquema de revezamento para evitar mais de 500 alunos nos refeitórios aonde a maioria recebe a refeição mais importante do dia, mas se o plano é economizar o dinheiro da merenda quem irá se insurgir contra o candidato tucano Dória à vaga do Bolsonaro? Este último, hoje, estaria sujeito a multa de até 600 mil euros na Espanha, por estar violando o confinamento anti-pandemia, ou ser preso por até um ano por colocar a saúde pública em risco, mas aqui entre nós ele passeou triunfante por uma esplanada dos ministérios semi-vazia, sem que ninguém o mostrasse do alto, ridículo e abjeto em mais essa canhestra tentativa de se firmar como caudilho popular. Enfim, Nassif, chego ao âmago de seu desabafo, que encampo: como recriar aquela resistência juvenil agora, setentões sem a grande mídia, expostos aos milhões de mortos-vivos comandados por Carluxo desde o palácio do planalto, inundando todo espaço da webb com seu chorume (quintessência da latrina), desalentando todos seus leitores a replicar suas infâmias? Se ao menos pudéssemos obrigar os artífices desse pesadelo a cumprir a CF e ganhar tanto quanto o presidente, quem sabe os promotores de justiça e juízes de direita recobrassem um pouco de dignidade ou vergonha na cara, pondo fim ao descalabro vigente que viabilizaram? Para quem passou a vida toda lutando por melhores leis em busca de dias melhores para filhos e netos (antes de sermos traídos por esse MP lesa-cidadania e Judiciário pró-milicianos), ver o TCU se arvorando em Tribunal, depois de ter sido avalista de toda corrupção que nos assola, equivale a criar enxurrada de pranto em meio à tempestade, principalmente por estarmos impotentes diante desses cadáveres insepultos que nos governam. Vida longa, meu querido irmão, pois nossa resistência será longa e solitária, até que os jovens de agora nos substituam nessa tarefa de criar um amanhã mais condigno para eles…

  16. Não lhes dê ousadia!
    Jamais. Garanto que se desesperarão o virem desafiando-os; impávido, decidido.
    “Ide por entre as cobras”.

  17. O medo do desconhecido e a semente do mal

    A tirania, seja individual ou coletiva, nutre o deliberado pavor que alastra como epidemia ao mesclar ódio fabricado e intolerância entre os que se encontram em posição subalterna ou em perigo iminente. As próprias vítimas ‘justificariam’ seus carrascos e algozes. Tudo é potencializado ao reforçar o estigma dos oprimidos quando são tratados como merecedores da condição aviltada (pois submissos e subservientes), mas não como pessoas dignas de justiça e respeito. Uma inescapável fatalidade inabilita qualquer ato de resistência, apenas resta aceitar ou acomodar-se à situação resignada da melhor maneira possível: eis a mensagem implicita.

    A artificialidade disso tem a ver com a deturpação da História. Mais do que nunca se faz necessário renegar a naturalização da violência, não aceitar passivamente como legítimo esse método de dominação coletiva; até porque a força bruta não admite ser refreada por ‘reles’ argumentos e o medo infligido a outrem não é ‘violência simbólica’. Os que fazem uso do medo para se impor são da mesma estirpe de todos os covardes, de todas tiranias que infestam a História; e proliferam hoje como ontem e sempre. A simultaneidade do mal existe em todo o Orbe, porém não é revelada a quem recolhe informações superficiais para alimentar suas conversas, mas não alimenta as reflexões. Enquanto isso o terror impera e se alastra, tal uma praga bíblica.

    Muitas pessoas vêm e vão como ondas a arrebentar nas pedras (sua sensibilidade é pré-direcionada aos centros de poder, estes exigem uma tácita devoção a seus ditames), é permanente sua explícita comoção…, mas só até o próximo susto. Até mesmo a compaixão pelo sofrimento alheio deriva conforme relativizações geográficas específicas. As tragédias cotidianas dos subúrbios do mundo, ou das cidades, não rendem manchetes nem formam espetáculos válidos, são meros sofrimentos de pobres, de pretos, de uns tantos miseráveis, lúmpen dos desvalidos que não comovem os ‘bem nascidos’ nem movem as rotativas dos jornais ou as câmeras da TV em transmissão direta e ao vivo. Nada a estranhar, afinal trata-se apenas de ‘semi-vivos’ a ocupar teimosamente um lugar indevido e atrapalhar as belas estatísticas, orbitando no limbo do desprezo e do opróbrio coletivo: como escórias desumanizadas.

    A liberdade não tem nem dá garantias e ainda impõe a assunção de responsabilidades por quem se faz livre, isso enobrece ao indivíduo e à sociedade. Há de ser consequente para arcar com o possível ônus tanto quanto colher o bônus decorrente dos seus atos; tudo aquilo que falseia, mente, engana só interessa ao egoísmo e à tirania. É comum que o discurso que legitima a segurança seja o mesmo que deprecia a liberdade. Onde se encontrar o meio termo será o ponto de equilíbrio, o rumo que norteará as reais possibilidades, mas existe mesmo este Shangri-lá?

    ………………………
    Valério Carvalho

  18. comovente,
    ‘Todos esses momentos se perderão nas lágrimas da chuva”.
    Vivemos mesmo num mundo distópico, fora do tempo.
    boa sacada tb é a frase anterior do personagem de rutger hauer
    – é uma experiência e tanto viver com medo, não é?
    Isso é o que é ser escravo.
    lembrei do poem a drummondiano congresso interrnaional do medo…
    um dos versos mostra a tragédia pior é o medo de ter medo!
    renato rovai teve uma ideia legal ao escrever acerca do ensaio sobre a cegueira,
    extraí essa parte:
    O Doutor diz ao Primeiro Cego: “Penso que não cegamos, penso que estamos cegos, Cegos que vêem, Cegos que, vendo, não vêem.”
    compartilho uma sacada de uma frase do livro de saramago :quanto mais cedo mais sou escravo (escracho) do tempo. .
    Quem sabe precisa se cuidar.
    Não sofremos tanto porque já vivíamos no inferno
    .tÓ NA PG.68.
    A cegueira pode ser contagiante mas certamente a arte ilumina.

    distopia tb no filme ‘a queda dos deuses’, de visconti, ascenção do fascismo, muitas semelhanças com coisas atuais bolsonáricas.
    e uma constatação meio óbvia: a mídia envenena todo o tempo a mente das pessoas.

  19. O mais dramático em tudo isto é que estamos governados a pelo menos quatro anos por governos ficcionais. Com planos de governo em todas as áreas que são apenas ficções ou tentativas canhestras de destruir a história e criar uma realidade. Nada criaram e muito destruiram. O coronavirus os obriga a ficar cara a cara com a realidade. Mas incapazes e incompetentes vão finalmente tornar a realidade uma ficção apocalíptica.

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