Wilson Ferreira
Wilson Roberto Vieira Ferreira - Mestre em Comunição Contemporânea (Análises em Imagem e Som) pela Universidade Anhembi Morumbi.Doutorando em Meios e Processos Audiovisuais na ECA/USP. Jornalista e professor na Universidade Anhembi Morumbi nas áreas de Estudos da Semiótica e Comunicação Visual. Pesquisador e escritor, autor de verbetes no "Dicionário de Comunicação" pela editora Paulus, e dos livros "O Caos Semiótico" e "Cinegnose" pela Editora Livrus.
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Como envenenar psiquicamente um povo no filme “Os Demônios”, por Wilson Ferreira

por Wilson Ferreira

“Os Demônios” (“The Devils”), de Ken Russel, é um filme tão blasfemo, obsceno e relevante hoje quanto foi em 1971. Um terror religioso épico e uma contundente crítica do abuso do poder político. Um filme sobre fatos históricos ocorrido no século XVII (um padre condenado à fogueira acusado de bruxaria), filmado no século XX, mas que continua atual no século XXI: os tribunais eclesiásticos da Inquisição foram muito mais do que produtos do fanatismo religioso. Foram instrumentos de “lawfare” para a dominação política da Igreja. Em “Os Demônios” a Inquisição é um instrumento de uma estratégia mais ampla que hoje chamamos de “Guerra Híbrida”: como envenenar psiquicamente uma cidade através da sua maior vulnerabilidade: um Convento de freiras dominadas pela histeria de massa é o pretexto para derrubar a liderança do padre Urbain Grandier, opositor à monarquia absolutista de Luís XIII e do Cardeal Richelieu.

Concebemos a Inquisição e a caça às bruxas na Idade Média como um fruto da ignorância e do fanatismo religioso. Até onde o obscurantismo religioso pode levar o homem à intolerância, guerras e violência. 

Mas pouco se fala de como os tribunais eclesiásticos instituídos pela Igreja Católica a partir do século XIII foram deliberados instrumentos de lawfare– manobras jurídico-legais como substituto da guerra convencional visando objetivos políticos. O objetivo era combater a heresia religiosa – movimentos que na verdade foram reações à crescente corrupção moral do clero e a posse de riqueza extrema.

“Caça às bruxas”, às “apostasias” e “exorcismos” eram meros álibis para ocultar perante o povo os interesses políticos da Igreja que direcionavam o xadrez político das monarquias absolutistas. “Cuspir na cruz”, “blasfêmia”, “ações homossexuais”, “beijo indecente” entre outras figuras acusatórias nada mais eram do que instrumentos de lawfare: sob tortura, fazer o acusado confessar todas as acusações para justificar ações militares.

“Os Demônios” nos anos 1970

Baseado na história verídica de Urbain Grandier, padre católico que foi executado em 1634, sob acusações de bruxaria, o diretor Ken Russel produziu Os Demônios adaptado de uma peça de teatro de 1960 de John Whiting e do livro de Aldoux Huxley, “Os Demônios de Loudun”. 

Com uma forte marca da revolução sexual dos anos 1970, o filme mistura iconografia religiosa com suntuosas imagens de orgias e profanação ultrajante de símbolos católicos, o que despertou a ira de grupos religiosos na época e a proibição da exibição em diversos países. Mesmo com a imposição da Warner Bros. de uma série de cortes como, por exemplo, na sequência do “estupro” de uma estátua de Jesus Cristo.

Para finalmente o filme ser esquecido com o sucesso do lançamento no mesmo ano de Laranja Mecânica, de Kubrick, pelo mesmo estúdio da Warner Bros.

 Os Demôniosfoi promovido na época como um “terror religioso” (cuja violência gráfica e iconografia influenciaram filmes como O Exorcista), mas é um filme que dá a exata dimensão política dos atos de inquisição da Igreja: como o Cardeal Richelieu, primeiro ministro de Luis XIII, utilizou-se dos tribunais eclesiásticos para arquitetar o absolutismo na França e da liderança do país na Europa. E o seu alvo era a cidade progressista de Loudun, onde protestantes e católicos viviam em harmonia. Bem diferentes dos planos de Richelieu, que liderava uma sanguinária perseguição de protestantes como bode expiatório para a consolidação de um governo absolutista baseado a na aliança da Igreja e do Estado.

 

 

Sob um discurso nacionalista, o cardeal pretendia botar abaixo o muro que cercava a cidade, cuja força era a liderança política e espiritual do padre Grandier. Por isso, ao invés de armas e soldados, Richelieu optou por aquilo que hoje chamaríamos de “guerra híbrida” – aproveitar-se dos pontos fracos daquela província (intrigas, luxúria, avareza, sacrilégios, medo e ganância) para envenenar psiquicamente o povo. E, finalmente, conseguir impor um tribunal da Inquisição na cidade para executar seu principal líder: Urbain Grandier. 

Ao lado do massacre dos gnósticos Cátaros, no século XII no sul da França, a morte de Grandier na fogueira foi uma das ações políticas mais infames da História.

O Filme

O filme é estrelado por Oliver Reed como o padre Grandier, com o típico sex appeal dos anos 1970 – espessa cabeleira e um farto bigode. Sua beleza e eloquência nos discursos inspira admiração em todas as jovens da cidade. Mas principalmente as jovens freira no claustro do Convento Ursuline e, em particular, a líder: a corcunda irmã Jeanne (Vanessa Redgrave). Ela alimenta eróticas fantasias com o padre, enquanto se masturba secretamente pelos cantos. Corroída pelo complexo da sua deformação física, culpa e luxúria.

Porém, essa mistura de poder e sedução inebria Grandier que peca principalmente pela falta de cautela: engravida a filha de um administrador da cidade, enquanto expulsa dois “médicos” com seus métodos primitivos para combater a peste negra que assola a região – além de hemorragias controladas, também picadas de vespas nas feridas dos doentes agonizantes.

 

  

Logo nas cenas iniciais, Os Demônios dá uma amostra o tom de loucura que Ken Russel dará à narrativa: o rei Luís XIII (Graham Armitage) entra em um palco como uma Vênus de Milo travesti, enquanto o Cardeal Richelieu (Christopher Logue) boceja entediado na plateia. Para mais tarde, o mesmo Luís XIII, desta vez com um enorme e cômico chapéu cowboy branco, fazer tiro ao alvo, no jardim do Palácio, com hereges protestantes fantasiados de pássaros negros – “bye, bye blackbird!”, gargalha o rei enquanto acerta mortalmente mais um “herege” …

A loucura se estende ao Convento de Ursuline, decorado inteiramente em um branco modernista que lembra tanto a estética dos filmes de Kubrick, quanto a atmosfera de um hospital psiquiátrico.

Irmã Jeanne é possuída por ciúme raivoso ao descobrir que Grandier está apaixonado e se casa com a jovem Madeleine (Gemma Jones), uma das candidatas a se tornar mais uma freira do Convento.

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Wilson Ferreira

Wilson Roberto Vieira Ferreira - Mestre em Comunição Contemporânea (Análises em Imagem e Som) pela Universidade Anhembi Morumbi.Doutorando em Meios e Processos Audiovisuais na ECA/USP. Jornalista e professor na Universidade Anhembi Morumbi nas áreas de Estudos da Semiótica e Comunicação Visual. Pesquisador e escritor, autor de verbetes no "Dicionário de Comunicação" pela editora Paulus, e dos livros "O Caos Semiótico" e "Cinegnose" pela Editora Livrus.

2 Comentários

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  1. O delicado equilíbrio

    Estava pensando, cá com os meus botões um dia destes, sobre quantas quedas a civilização não tem sofrido.

    Quando o ser humano parece atingir um patamar de estabilidade e civilidade, ele começa a ser corrompido.

    O mal ataca como uma virose e em poucas gerações destrói o que por vezes levou milênios pra se conquistar.

    Quem inspira essas “almas” a jogarem combustível na humanidade, atearem fogo e fecharem a porta?

    O mal tem um arquivo de acesso livre, e sempre disponível a quem queira praticá-lo.

    Isso quando já não vem instalado no vivente.

    É muito cansativo empurrar essa rocha pesada que é a vida ladeira acima, sabendo que ela se voltará sobre nós.

    De toda sorte é de se concluir que nada há de novo sob o sol mesmo.

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