Crítica de Bacurau ou Sobre os limites da antropofagia, por Érico Andrade

Bacurau é sobre a resistência. Mais ainda; sobre a sua urgência. É sobre como pessoas se reúnem para enfrentar uma ameaça externa, supremacia

Crítica de Bacurau ou Sobre os limites da antropofagia

por Érico Andrade

É possível enterrar o nosso passado? Soterrar aquilo que nos invadiu? Remeter a um tempo que não mais é o que nos atravessou com bala, violência e que instituiu o racismo? Como lidar com o legado do colonizador: branco e com uma língua estranha às pessoas locais. É interessante notar que as personagens “estrangeiras” de Bacurau, todas elas didaticamente brancas, representam, com as suas engenhosas tecnologias, o colonizador que por meio da técnica subjugou povos, diferentes, e se apropriou dos espaços, de tudo que ainda não estava identificado (música presente no filme) no seu mapa, para lhes conferir novos nomes. Domínio.

Bacurau é sobre a resistência. Mais ainda; sobre a sua urgência. É sobre como pessoas – poderíamos dizer tribos – se reúnem para enfrentar uma ameaça externa cujo interesse pela terra dos nativos se encerra num propósito de marcar a sua superioridade, a palavra correta é supremacia. Assim, se na história do Brasil as forças coloniais e do governo exibiam a cabeça de diversas pessoas engajadas com alguma forma de resistência (Canudos e Lampião são referências claras no filme), é para ir à forra que os diretores Kleber Mendonça e Juliano Dornelles fazem a população de Bacurau, sobretudo, um dos seus principais líderes, Lunga (referência ao ranzinza e grosso sertanejo Seu Lunga, mas com a roupagem de um caubói drag e destemido interpretado por Silvero Pereira) exibir com altivez a cabeça dos seus adversários para na cena subsequente enquadrar a população registrando o seu feito com os aparelhos de celular.

Essa dimensão catártica de Bacurau não pode obliterar uma preocupação que atravessa a história da arte brasileira, pelo menos desde a semana de arte moderna de São Paulo de 1922, qual seja, antropofagia. É com sangue na bata, de uma das invasoras, que Domingas (interpretada por Sônia Braga) oferece um cozido para o líder dos invasores. Ele resiste à iminente antropofagia que se desenhava e vira literalmente a mesa. Segue com o seu propósito mesmo diante de uma derrota presumida. Arrogância que não se desfaz nem nos seus últimos momentos de vida quando ele salienta que já matou muito mais pessoas antes de ser enterrado vivo.

A antropofagia é também estética quando os diretores fazem recurso ao western para universalizar o sertão brasileiro e visitam a obra de Tarantino para espraiar sangue na tela com o fito de acentuar a nossa catarse quando os invasores são atingidos pelos moradores de Bacurau. Toda narrativa do filme nos conduz a ter apreço pelo povo de Bacurau cuja história desconhecemos (apenas quando um dos invasores procura os habitantes é que temos acesso ao museu da cidade), mas com o qual nos identificamos por oposição aos invasores cuja língua estrangeira já nos faz ser mais distantes.

É nesse ponto que reside a justificativa da escolha estética dos diretores de tornar, poderíamos dizer, opaca a construção das personagens em favor de um foco na comunidade do pequeno vilarejo. De fato, a maior parte dos enquadramentos se demora pouco em cada personagem, especialmente no que elas falam, para enfatizar o caráter comunitário da resistência expresso na fotografia correta dos rostos de cada participante da comunidade.

Permanece, contudo, um vácuo quanto ao que move os habitantes de Bacurau para além da resistência. Se é catártico perceber como a comunidade se organiza – de modo unânime, apenas um casal, composto por um senhor e uma senhora toma a deliberação de sair da cidade e, claro, são mortos por sustentarem uma escolha individual – para enfrentar um inimigo comum com o mesmo grau de violência que lhe fora perpetrada, é ainda desafiador entender porque não conseguimos fugir ao modelo do ressentimento que conhece na vingança o seu destino mais próprio.

Nosso gozo parece ser ainda colonial e permeado pelo imaginário da violência na forma da cultura da punição. Nesse ponto, a antropofagia revela algumas de suas armadilhas porque incorporamos o modus operandis de outras culturas, que em certa medida são sempre canibais, sem antes subverter efetivamente a lógica do domínio. Razão pela qual o casal pergunta para uma das invasoras convalescente se ela deseja morrer num ato tanto sádico quanto permeado por uma vontade de poder própria das ações violentas.

Com Bacurau ficamos ainda no registro estético da vingança – próprio, aliás, do gênero escolhido para narrar o filme, o faroeste e abundantemente presente em Tarantino – para nos resignarmos a um papel que longe de combater o moralismo parece se alimentar dele. Trata-se, pois, de um punitivismo que, como nos ensinou Butler, “transforma o moralista em assassino”. Nessa perspectiva, a antropofagia esboçada em Bacurau fica um tanto comprometida e termina por operar num binarismo profundamente americano; portanto colonial onde ficamos felizes pela vingança sem radicalizar uma reflexão sobre outras formas de lidar com a opressão e o seu consequente ressentimento. Se há algo de atual no filme Bacurau, é a nossa dificuldade de lidar com as nossas diferenças.

 

Érico Andrade – Filósofo, psicanalista em formação, professor da Universidade Federal de Pernambuco
[email protected]

Redação

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