As mil histórias de Modinha

Relembrando as crônicas:

As mil histórias da “”Modinha”

Prezado Luís Nassif,

Escrevo-lhe esta carta porque, ao contrário do que suas colunas supõem, as músicas não têm histórias únicas, lineares, enfeixadas em si mesmas.

A riqueza da música consiste em que há uma história em cada interação, em cada vida pessoal, em cada paixão perdida, em cada saudade evocada, que tinham uma música para eternizar o momento.

Alguns anos atrás, você escreveu que considerava “”Modinha”, de Tom e Vinícius, a música mais bela já escrita por Tom, e uma das mais belas da história.

Se fosse contar a história da música, do modo tradicional, diria que ela foi composta nos anos 50, gravada por Elizeth Cardoso e Lenita Bruno, primeiro, por Elis Regina, depois. Poderia lembrar como já o fez -do arranjo extraordinário de Léo Peracchi para o LP de sua esposa Lenita. Ou de Claus Ogerman, para o disco “”Terra Brasilis”.

E falar ainda da peça “”Orfeu da Conceição”, em que os talentos de Tom e Jobim explodiram de forma tão candente. Poderia lembrar da interpretação magistral do violão de Raphael Rabello, em 1986.

Se quisesse situá-la em contextos musicais, lembraria dos inspiradíssimos compositores que você vive citando e que, sob a paternidade absoluta de Villa-Lobos, aportaram de vários cantos do país ao Rio de Janeiro dos anos 30, 40, início dos 50, e criaram a canção brasileira, da qual Jobim foi o último representante.

Mas a “”Modinha”” é mais que isso, são milhares de histórias de amor, das quais a minha é apenas mais uma que certamente “”Modinha” inspirou, mas que morrerão com os milhares de amantes escrupulosos, ou egoístas, que levarão só consigo sua história de amor.

A história começa na cidade do interior, onde nasci, com um amor de fim de adolescência, que se tornou impossível pelas armadilhas que nossas jovens cabeças politizadas nos armavam.

Namorei, terminei em pouco tempo e curti minha dor-de-cotovelo ouvindo a “”Modinha”, de Tom e Vinícius, na voz de Lenita Bruno. Depois, foram 20 anos carregando os fantasmas do tempo, e carregando à maneira dos poetas românticos do século 19, cumprindo o ritual dolorido de, uma vez por ano, na data em que os conterrâneos espalhados por todo o país combinavam o encontro no berço natal, cruzar com a musa, olhá-la uma vez, ela retribuir o olhar, e eu voltar para a contemporaneidade da faina desumana da grande metrópole onde me fixei.

Foram 20 anos entremeados de noites solitárias, em que abria a janela do apartamento, olhava a noite impessoal da grande cidade, e colocava “”Modinha” ora no vitrolão, depois, no aparelho de CD.

Apenas a tecnologia ia sinalizando a mudança das eras e dos tempos, porque a noite continuava fria e intemporal.

Vinte anos depois, em um momento de desatino, procurei a moça, agora mãe de família, um retrato na parede, apenas um retrato, mas que eu precisava exorcizar.

Fui para sua cidade, também no interior, tivemos a última conversa. Ela falou das suas mágoas, eu falei das minhas, até que acordamos do sonho e nos demos conta que era uma fantasia, dolorida, porém fantasia.

Voltei de sua cidade para uma casa de praia, ouvindo na fita cassete a voz sofrida de Elis Regina, fazendo da “”Modinha” o seu réquiem pessoal. Durante quatro dias ouvi aquela fita obsessivamente, como quem crava um punhal na ferida. Depois de quatro dias, a paz chegou.

Com a idade, os fantasmas do tempo vão se diluindo, as cicatrizes vão se fechando e cria-se um vazio no lugar da antiga ferida. E eis que, do nada, ou das brumas das novas tecnologias de comunicação, surge uma nova musa. E, conversa vai, conversa vem, fico sabendo que ela morava a dez metros do local onde se deu a conversa derradeira, que enterrou meus fantasmas do passado.

Hoje estamos juntos, temos filhos, criamos uma nova história, com novas músicas e novas emoções.

“”Modinha” não entra mais na história porque -e ninguém é perfeito- minha nova musa não aprecia a música, talvez por ciúmes da velha história.

Desculpe se fui prolixo ou o aborreci com minha história de amor. Mas foi apenas para enfatizar o que explicitei no início dessa carta. A minha “Modinha” certamente é diferente da sua “Modinha”.

De seu leitor,

A.B.

Luis Nassif

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