Eu, o Mendigo e o Outro

Naquele dia eu acordei com raiva. Mas muita raiva, de mim e do mundo. Estava multiplamente insatisfeito. Comigo mesmo, com meu trabalho, com tudo. Enfim, eu tinha raiva e me sentia só. Mais só que uma antena no telhado. Desgostoso da vida e com vontade de mandar tudo às favas. Chovia fino, ventava, fazia frio, o trânsito estava péssimo e eu precisava sair para trabalhar. Tudo contribuía para aumentar minha agonia.
Saí de casa resmungando entre dentes, com um mau humor digno de corintiano que na véspera perdera mais um título. Andei os costumeiros três quarteirões que me separavam do ponto de ônibus distribuindo caras feias a quem cruzava meu caminho e tentando evitar a chuva que insistia em congelar-me. Quando finalmente cheguei à parada, tratei de ignorar a tudo e a todos, prestando atenção somente ao fluxo dos carros, de onde viria minha condução. Como o ônibus demorasse, fiz o que todo fumante faz nessa situação: acendi um cigarro, pois todo fumante sabe que é só acender um cigarro para que o ônibus apareça.
Não foi o que aconteceu. Ao levantar os olhos da brasa dei com os olhos dele. Do outro lado da rua, debaixo de uma marquise, o Mendigo repetia meu gesto, e enquanto soltava sua baforada, me olhava. Ficamos assim, olho no olho, por um instante. Logo me desvencilhei do incômodo e voltei aos meus botões. Raiva! E também raiva de estar com tanta raiva, e de sentir-me tão só naquela manhã fria de São Paulo.
Talvez por isso, para espantar a raiva, decidi olhar de novo para o outro lado da rua. Foi então que se deu início à cena que é o motivo desta crônica.
O Mendigo já estava também lá com os botões dele. Vasculhava um saco de estopa onde trazia suas coisas e do qual retirou uma garrafa de plástico cheia de café com leite. Retirou também um pedaço de pão, um copo e um pratinho descartável. Mas o que me fez esquecer a raiva foi o fato de ele estar falando sozinho. Sorria e falava sozinho enquanto enchia o copo. Continuou sorrindo e falando sozinho quando picou metade do pão e colocou no prato. Nesse ponto eu também sorria comigo mesmo, imaginando que, afinal de contas eu não estava tão mal assim, a ponto de falar sozinho. Cheguei a gargalhar em pensamento quando o Mendigo, sorrindo e falando sozinho, molhou de café com leite o pão picado no prato. Pensei que, depois de tudo, ele estava mais só do que eu, mais louco do que eu. Foi então que, dentre as dobras do cobertor que ele trazia no colo, apareceu o Outro. Falando e sorrindo o Mendigo colocou o cachorrinho em frente ao prato, tomou um gole do copo, e de novo olhou para mim. Fugindo daqueles olhos, dei o último trago no meu cigarro e voltei para casa sem me importar com a chuva. Chorando e falando sozinho.

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