Izaias Almada
Izaías Almada é romancista, dramaturgo e roteirista brasileiro nascido em BH. Em 1963 mudou-se para a cidade de São Paulo, onde trabalhou em teatro, jornalismo, publicidade na TV e roteiro. Entre os anos de 1969 e 1971, foi prisioneiro político do golpe militar no Brasil que ocorreu em 1964.
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Crueldade versus dignidade humana, de Izaías Almada


[Imagem do designer André Almada, feita especialmente para esta coluna]

Excertos para um fim de semana

por Izaías Almada, no Blog da Boitempo 

Ainda sob os eflúvios da passagem do Papa Francisco pela América do Sul, cujos países escolhidos e os certeiros discursos proferidos contra os que se julgam donos do mundo ainda darão o que falar, abro essa minha coluna quinzenal prestando uma homenagem e dando o meu incondicional apoio aos cidadãos Fernando Morais, Alexandre Padilha, Gregório Duvivier, Maria do Rosário, Guido Mantega e Jô Soares que, por se mostrarem dignos brasileiros, foram, por isso mesmo, vilipendiados em seus direitos e até mesmo ameaçados fisicamente pelo fascismo caboclo emergente, esse fascismozinho caipira, mas nem por isso menos perigoso e que deve ser combatido no nascedouro.

Aproveito para estender, já não sem tempo, a mesma solidariedade aos companheiros José Dirceu de Oliveira e José Genoíno Neto, primeiras vítimas políticas de uma sórdida armação judiciária, onde muitos brasileiros foram pegos de surpresa e outros tantos aderiram docilmente a uma campanha de desconstrução de lideranças populares e subversão de preceitos constitucionais e leis do Código Civil numa escalada que – sob o pretexto mais do que hipócrita da “moralização” e dos “bons costumes” – vai colocando a democracia brasileira contra a parede.

Tudo indica (e a lista de exemplos com certeza não será pequena, muito pelo contrário) que o brasileiro, independente de classe social, credo religioso ou ideologia, não se dá muito bem com a democracia e sempre que pode gosta de transformá-la na “casa da mãe Joana”. Até que se instaure um novo regime autoritário. Os últimos 85 anos da nossa história não me deixam mentir.

A propósito, gostaria de reproduzir um parágrafo do discurso do Papa Francisco feito há uma semana em La Paz, dentro desse mesmo contexto:

“Este apego ao bairro, à terra, ao território, à profissão, à corporação, este reconhecer-se no rosto do outro, esta proximidade no dia a dia, com as suas misérias e os seus heroísmos quotidianos, é o que permite realizar o mandamento do amor, não a partir de idéias ou conceitos, mas a partir do genuíno encontro entre pessoas, porque não se amam os conceitos nem as idéias; amam-se as pessoas”…

Belas palavras diante do dedurismo institucional que graça pelos lados da República Independentista do Paraná (pomposamente agora chamado de delação premiada) e comportamental (essa do ‘eu não tenho nada com isso, a culpa é do PT e do governo’) que, mais do que impostores, causam tristeza no dia a dia e alguma ou muita impotência diante da arrogância de deputados e senadores medíocres, uma força policial que se coloca acima das leis e um judiciário parcialmente venal.

Talvez, por isso mesmo, valham a pena algumas reflexões no final de semana a partir de excertos de obras que se situam no extremo oposto da pobreza intelectual da atual oposição brasileira e não só:

1. Sobre a arrogância e o empolado saber de alguns intelectuais…

O polêmico e perseguido psicanalista austríaco Wilhelm Reich, quando do lançamento da terceira edição alemã de sua obra Psicologia de Massas do Fascismo, escreveu o seguinte no corpo do prefácio:

“Quem seguiu e viveu na prática a aplicação do marxismo pela esquerda revolucionária, entre 1917 e 1933, percebeu necessariamente que ela se limitou à esfera dos processos objetivos da economia e das políticas governamentais, mas não compreendeu nem estudou o desenvolvimento e as contradições do chamado “fator subjetivo” da história, isto é, a ideologia das massas. Acima de tudo, a esquerda revolucionária deixou de aplicar, de modo sempre renovado, o seu próprio método de materialismo dialético, de mantê-lo vivo para compreender cada nova realidade social, a partir de uma nova perspectiva”.

“O materialismo dialético não foi então usado para compreender novas realidades históricas, e o fascismo era um fenômeno que Marx e Engels não conheceram e que Lenin só vislumbrou nos seus princípios. A concepção reacionária da realidade não leva em conta as contradições do fascismo e a sua condição atual; a política reacionária serve-se automaticamente daquelas forças sociais que se opõem ao progresso; e pode fazê-lo com êxito apenas enquanto a ciência negligenciar aquelas forças revolucionárias que devem superar as reacionárias. Como veremos adiante, emergiram da rebelião da classe média baixa não só forças sociais retrógradas, mas também outras, de tendência claramente progressista, que vieram a constituir a base de massa do fascismo; essa contradição não foi levada em conta, e, também, não se levou em conta o papel das classes médias baixas até pouco tempo antes da subida de Hitler ao poder”.

“Quando as contradições de cada novo processo não forem compreendidas, a prática revolucionária surgirá em cada setor da existência humana e consistirá numa identificação com aquelas forças que estão se movimentando na direção do verdadeiro progresso. Ser radical é, segundo Marx, “ir à raiz das coisas”. Quando se agarra as coisas pela raiz e se compreende o seu processo contraditório, então é certa a vitória sobre a política reacionária. Caso contrário, cai-se inevitavelmente no mecanicismo, no economicismo ou até na metafísica, e então a derrota é igualmente certa”.

“Deste modo, a crítica só tem sentido e valor prático se consegue mostrar onde as contradições da realidade social não foram levadas em conta. O que era revolucionário em Marx não era o fato de ter escrito exortações ou ter apontado objetivos revolucionários, mas sim de ter reconhecido nas forças industriais produtivas a principal força impulsionadora da sociedade e de ter descrito fielmente as contradições da economia capitalista”.

* * *

2…E de alguns tolos que se julgam príncipes.

Michael White, jornalista, escritor e consultor do Discovery Channel, em seu livro Maquiavel: um homem incompreendido observa na análise de O Príncipe (p.254) algumas intenções do autor em sua obra mais conhecida:

“Maquiavel teria fracassado como príncipe, porque não possuía a crueldade ou muitos dos outros atributos que considerava necessários para qualquer líder. Em O Príncipe, ele primeiro estabelece o que é requerido para um homem ser rei e, depois, declara a moralidade tradicional e a ética incompatíveis com um poder mundano genuinamente duradouro… Mas quais eram os talentos especiais que Cesare Borgia deveria possuir? Além de ser livre e impedido da moralidade, o que convertia um homem apropriado em um ‘super homem?”

“Para responder a isso, Maquiavel usou uma analogia com a raposa e o leão. Isso já era por si só subversivo, dados os usos que tradicionalmente se faziam a partir das características desses dois animais, mas Maquiavel escolhera as duas figuras bem e cautelosamente. A raposa, ele nos lembra, é considerada mestra em logros e astúcias, mas é incapaz de lutar muito bem. O leão, por sua vez, pode ser fisicamente forte, mas tem pouca astúcia ou habilidade para enganar. É só por meio da combinação das melhores características de cada animal que um governante pode permanecer no poder e controlar seus domínios. Aqueles que agem simplesmente como leões são idiotas”.

“As razões para isso são claras. Algumas situações requerem músculos, ao passo que outras devem ser tratadas com inteligência; os líderes que só sabem reagir de uma maneira são limitados e débeis e, por isso, não merecem liderar. Se todos os homens fossem bons, reitera Maquiavel, esse preceito não seria bom; mas como os homens são criaturas vis que não manterão suas palavras, você não deve manter sua palavra em relação a eles (…). Mas é preciso saber como disfarçar as próprias ações e como ser um bom mentiroso. Os homens são tão simples, e tão entregues às circunstâncias, que aquele que engana sempre irá encontrar alguém pronto para ser enganado”.

* * *

3. O pior cego é aquele que vê, mas…

Shakespeare, Rei Lear, Ato IVº, cena VI. O conde de Gloucester, cego, dialoga com o Rei Lear, já enlouquecido. Ambos traídos por seus filhos e filhas.

LEAR – Lembro-me muito bem dos teus olhos. Por que estás me olhando assim, de esguelha? Lê este desafio e repara, sobretudo, na caligrafia…

GLOUCESTER – Mesmo que cada letra fosse um sol eu não conseguiria vê-las.

LEAR – Lê.

GLOUCESTER – Como, com o buraco das órbitas?

LEAR – Oh! O que é que estás dizendo? Sem olhos na cara nem dinheiro na bolsa? O vazio da cara é mais caro, o da bolsa é mais claro. Mesmo assim, vês como vai indo o mundo?

GLOUCESTER – Um mundo sentido.

LEAR – Como, estás louco? Mesmo sem os olhos um homem pode ver como anda o mundo. Olha com as orelhas. Vê como aquele juiz ofende aquele humilde ladrão. Escuta com o ouvido, troca os dois de lugar, como pedras nas mãos; qual o juiz, qual o ladrão? Já viste um cão da roça ladrar para um miserável?

GLOUCESTER – Já, meu senhor.

LEAR – E o pobre diabo correr do vira latas? Pois tens aí a imponente imagem da autoridade; até um vira lata é obedecido quando ocupa um cargo (…) O usurário enforca o devedor. Os buracos de uma roupa esfarrapada não conseguem esconder o menor vício, mas as togas e os mantos de púrpura escondem tudo. Cobre o crime com placas de ouro e, por mais forte que seja a lança da justiça, se quebra inofensiva. Um crime coberto de trapos a palha de um pigmeu a atravessa. Não há ninguém culpado, ninguém – digo, ninguém! Eu me responsabilizo. Podes acreditar em mim, amigo, tenho o poder para lacrar os lábios do acusador. Arranja olhos de vidro e, como um político rasteiro, finge ver aquilo que não vês…

* * *

4. Sobre retidão e tolerância…

O professor e ensaísta Antonio Cândido de Mello e Souza em seu livro Recortes, precioso glossário da literatura brasileira contemporânea feita com a sempre simplicidade de estilo e profundo conhecimento dos temas abordados, apresenta em um dos artigos (p. 205), como refinado crítico e memorialista que é, rápido perfil de um anarquista dos anos 40 de nome Edgard Leuenroth, de quem pôde conhecer “a extraordinária fidelidade dos anarquistas daquele tempo”.

De Leuenroth conta uma pequenina história:

“A partir de 1946 a guerra fria motivou nos países subordinados aos Estados Unidos a caça aos comunistas. Por extensão, o aumento da repressão aos movimentos populares em geral. No Brasil, o Partido Comunista, depois de breve legalidade, foi fechado em 1947, com toda a sorte de violências paralelas. Inclusive restrição ou interdição de manifestações públicas que não agradassem ao governo. De modo que no Primeiro de Maio só o trabalhismo oficial pôde aparecer”.

“Nós, do Partido Socialista Brasileiro, que geralmente nos reuníamos a outras organizações para encorpar as atividades deste tipo, ficamos sós. Não tendo capacidade de mobilização suficiente para furar o cerco por conta própria, fizemos o que era possível: reuniões em nossa sede do Brás”.

“Numa delas, 1947 ou 1948, o presidente do ato anunciou que via com prazer na assistência o companheiro Edgard Leuenroth, e lhe deu as boas vindas”.

“Festejado por uma salva de palmas, Edgard se levantou, vibrante e risonho, com a sua franzina silhueta de uma distinção rara, e agradeceu. Disse que, como velho revolucionário, não quisera ficar em casa no Primeiro de Maio; e verificara que só no Partido Socialista poderia comemorá-lo dignamente; por isso, estava ali. No entanto, era dever de honestidade declarar que discordava essencialmente dos companheiros socialistas. Na qualidade de libertário, rejeitava a própria ideia de partido, assim como a luta para participar de organismos do Estado, do qual preconizava não a transformação, mas a abolição. Com serenidade calorosa, foi assim expondo as suas posições para justificar as divergências; e concluiu que, apesar destas, sentia-se bem entre os companheiros socialistas, aos quais agradecia a hospitalidade, que lhe permitira comemorar a maior data em que os trabalhadores afirmam os seus ideais e o seu ânimo de luta”.

* * *

Quatro textos, quatro maneiras de ver, sentir e prospectar o mundo, nenhuma delas com ódio, preconceito ideológico ou a reivindicar ares de donos da verdade, material escasso nos dias que correm, sobretudo no Brasil, onde o monopólio mediático, ao assumir o protagonismo de uma vergonhosa campanha contra o país, insere-se na categoria do novo colonialismo, tema também referido pelo Papa Francisco:

“O novo colonialismo assume variadas fisionomias. Às vezes, é o poder anônimo do ídolo dinheiro: corporações, credores, alguns tratados denominados ‘de livre comércio’ e a imposição de medidas de ‘austeridade’ que sempre apertam o cinto dos trabalhadores e dos pobres. Os bispos latino-americanos denunciam-no muito claramente, no documento de Aparecida, quando afirmam que «as instituições financeiras e as empresas transnacionais se fortalecem ao ponto de subordinar as economias locais, sobretudo debilitando os Estados, que aparecem cada vez mais impotentes para levar adiante projetos de desenvolvimento a serviço de suas populações…”

“Noutras ocasiões, sob o nobre disfarce da luta contra a corrupção, o narcotráfico ou o terrorismo – graves males dos nossos tempos que requerem uma ação internacional coordenada – vemos que se impõem aos Estados medidas que pouco têm a ver com a resolução de tais problemáticas e muitas vezes tornam as coisas piores”.

“Da mesma forma, a concentração monopolista dos meios de comunicação social que pretende impor padrões alienantes de consumo e certa uniformidade cultural é outra das formas que adota o novo colonialismo. É o colonialismo ideológico. Como dizem os bispos da África, muitas vezes pretende-se converter os países pobres em peças de um mecanismo, partes de uma engrenagem gigante”.

Tempos bicudos, mas é nestes que o homem costuma encontrar saídas para combater os instintos mais baixos da sua espécie. Sem isso, teríamos continuado a viver em cavernas.

Izaias Almada

Izaías Almada é romancista, dramaturgo e roteirista brasileiro nascido em BH. Em 1963 mudou-se para a cidade de São Paulo, onde trabalhou em teatro, jornalismo, publicidade na TV e roteiro. Entre os anos de 1969 e 1971, foi prisioneiro político do golpe militar no Brasil que ocorreu em 1964.

2 Comentários

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  1. Uma correção necessária

    Nassif, o título “Crueldade versus dignidade humana”, embora não seja nenhum achado extraordinário, é de minha autoria.

    Ele foi postado como sendo do autor da excelente matéria, Izaíais Almada. Não estou reclamando, apenas corrigindo.

    Oráculo.

     

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